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Cidade grande, mundo de estranhos: Escola de Chicago e “comunidades guarda-roupa”

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04/07/2013 às 09:35

Resumo:


  • A Escola de Chicago aborda a relação entre criminalidade e vida urbana, destacando a influência de fatores como industrialização e imigração.

  • Zygmunt Bauman analisa a modernidade e a insegurança gerada pela liberdade, resultando em laços frágeis e busca por comunidades efêmeras.

  • A desorganização social e a precariedade dos laços são pontos em comum entre a Escola de Chicago e Bauman, refletindo na sensação de insegurança e isolamento nas grandes cidades.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A cidade submete o indivíduo a estímulos, conduzindo à impessoalidade, à liberdade, ao anonimato e ao distanciamento tanto físico quanto emocional. Assim, a cidade rompe os mecanismos tradicionais de controle dos comportamentos. Os cidadãos da atualidade perderam a capacidade de manter discussões públicas, preferindo algo que é muito diferente, as discussões meramente travadas em público.

Resumo: A presente pesquisa pretende abordar algumas conclusões construídas pelos pensadores da Escola de Chicago, relacionando-as às reflexões do sociólogo Zygmunt Bauman quanto às novas dinâmicas de relacionamento na modernidade, e suas consequências no aumento da criminalidade e na constante sensação de insegurança, que leva à busca de comunidades, ainda que meros simulacros delas. A Escola de Chicago parte da noção de que a cidade é seu laboratório, de modo que relaciona o aumento da criminalidade em virtude principalmente da industrialização, imigração e migração, observadas especificamente na cidade de Chicago. Trata-se de afirmações da chamada Ecologia Criminal, que relaciona o crime aos ambientes e suas formas de ocupação e organização. Zygmunt Bauman também analisa os relacionamentos humanos na modernidade, a influência do aumento da liberdade, trazendo com ela a insegurança e o isolamento que leva à busca de novas comunidades, efêmeras como são efêmeros os vínculos no que ele chama de modernidade líquida. O crime também é influenciado pela precariedade dos laços e muitos dos crimes que desencadeiam o que Bauman designa como “comunidades guarda-roupa”, são cometidos justamente por indivíduos que demonstram a dificuldade de adaptação com a fragilidade dos vínculos e possibilidades de frustrações.

Palavras-chave: Criminologia, Escola de Chicago, Modernidade Líquida, Desorganização Social


1 INTRODUÇÃO

“Sometimes I feel like I don't have a partnerSometimes I feel like my only friendIs the city I live in, the city of angelsLonely as I am, together we cry”[1]

 Estudar Criminologia é buscar melhor conhecer, entre outros temas relacionados, os meios formais e informais de combate ao crime.

 Trata-se de uma ciência que, mediante métodos usados pelas ciências sociais, procura abordar o fenômeno do crime, não apenas do ponto de vista jurídico, mas principalmente a partir de uma abordagem macrossociológica. As definições tradicionais da Criminologia afirmam que seu objeto de estudo abrange a conduta desviante, seu autor, a reação e influência da sociedade para tal conduta e o tratamento dado à vítima.

 É possível hoje incluir em tal objeto também as interações entre crime e cultura, observando-se as maneiras como um implica e constitui o outro, falando-se então em Criminologia Cultural[2]. Esta abordagem sugere uma nova forma de interpretação do crime e da violência, pelo filtro das manifestações culturais e que também pode se dar a partir do tratamento dado a tais fenômenos pelos meios de comunicação social.[3] Daí a inclusão no texto de breves trechos de músicas de autores brasileiros e estrangeiros, referindo-se ao que Bauman chama de “mal estar na pós modernidade”.

 Assim é que o presente estudo pretende, ainda que de forma superficial, abordar algumas das conclusões da Escola de Chicago, que se volta aos mecanismos tradicionais de controle e a criminalidade facilitada pela vida urbana, relacionando-as às reflexões do sociólogo Zygmunt Bauman, tratando da ausência do sentimento de pertença e comunidade, naquilo por ele designado como “modernidade líquida”.

 O indivíduo pós-moderno debate-se entre as exigências de produtividade e motivação constantes, o que lhe impossibilita o estabelecimento de vínculos duradouros, gerando a sensação de solidão, ainda que em meio à multidão. Na realidade, a multidão é uma ameaça de que é necessário prevenir-se, isolando-se cada vez mais, porém, o mesmo isolamento sustenta a precariedade dos vínculos, facilitadora dos atos “anti-sociais”, o que alimenta a sensação de insegurança. As promessas de vida nos grandes centros[4] nem sempre se cumprem, restando a frustração.

 Os sentimentos e angústias experimentados então por homens e mulheres ocupados e apressados nas grandes (e cada vez mais também nas pequenas) cidades, são bem expressados por artistas, eventualmente também mencionados no presente trabalho, ao lado dos autores da Sociologia e da Criminologia.

 A acolhida em comunidade que falta ao ser humano na atualidade, torna-o inseguro e frágil às frustrações e perdas, ávido pelo simulacro de comunhão proporcionada pelas redes sociais e por tragédias, crimes ou separações expostas pelos meios de comunicação. E, não raras vezes, os crimes que geram o transitório sentimento de comunidade são cometidos justamente por indivíduos que sucumbiram à precariedade e “liquidez” dos laços a partir da modernidade.

 Assim, a pesquisa aqui iniciada parte de uma breve análise da Escola de Chicago, suas premissas históricas e metodológicas e suas conclusões, passando pela análise da modernidade no pensamento de Zygmunt Bauman, chegando ao conceito de “Comunidades Guarda-roupa” sugerido por Bauman em uma de suas obras. Por este caminho o trabalho se aproxima da “cidade grande, mundo de estranhos” (KRUPAT apud FREITAS, 2002, p. 35).


2 ESCOLA DE CHICAGO

“Não existe amor em SP

Os bares estão cheios de almas tão vazias

A ganância vibra, a vaidade excita

Devolva minha vida e morra afogada em seu próprio mar de fel

Aqui ninguém vai pro céu”[5]

 A chamada Escola de Chicago é apresentada como uma das primeiras correntes de pensamento dentro da Criminologia, que parte de abordagem macrossociológica e não mais biopsicológica do fenômeno da criminalidade.

 É interessante conhecer um pouco do contexto da cidade de Chicago e da Universidade que ali era fundada, para se compreender os métodos de que lançaram mão seus pesquisadores e as conclusões a que chegaram. Segundo Howard Becker uma das formas de se aproximar da sociologia é conhecer um pouco da história de suas instituições e organizações[6]:

A terceira história da sociologia é a das instituições e organizações, dos locais onde o trabalho sociológico foi realizado, porque nenhuma idéia existe por si mesma, em um vácuo; as idéias só existem porque são levadas adiante por pessoas que trabalham em organizações que perpetuam essas idéias e as mantêm vivas. (BECKER, 1996)

 De acordo com o mesmo autor, “por um bom tempo, estudar sociologia nos Estados Unidos era estudar a cidade de Chicago.”

A Universidade de Chicago foi fundada em 1890, a partir principalmente de investimentos de John Rockefeller, conforme relatam autores como Wagner Cinelli de Paula Freitas, Sérgio Salomão Shecaira e principalmente Howard Becker, que decidiu incentivar a criação de uma universidade na cidade de Chicago. Foi a primeira universidade norte-americana a ter um departamento de sociologia e foi chamada de Escola de Chicago por Luther Bernard, em 1930.

 Na época da fundação da universidade, Chicago era a terceira maior cidade dos Estados Unidos e experimentava a continuidade de tal crescimento, com a expansão da indústria, redução da taxa de mortalidade, mudanças nas relações de produção e significativa chegada de imigrantes europeus e de outras regiões norte-americanas, o que ocasionava um grande déficit na oferta de vagas de empresa e também na área habitacional. O mencionado contexto acabava por proporcionar ambiente propício para o aumento dos conflitos sociais,  consequentemente, do crime e sua repressão (FREITAS, 2005). É o que afirma Sérgio Salomão Shecaira (2004, p. 140): “A expansão da classe média e trabalhadora, com a vinda de grandes levas de imigrantes e migrantes para as cidades que se transformam em centros industriais dinâmicos, cria um diversificado ambiente intelectual, dentro do qual evoluíram as ciências sociais.”

 Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade (1997, p. 269), apresentam a Escola de Chicago, afirmando que o crescimento vertiginoso do espaço urbano, com o processo de industrialização:

[...] colocou a cidade e os seus modelos de convivência e interacção no centro das preocupações dos teóricos e moralistas dos fins do século XIX e princípios do século XX. Pelas suas dimensões sem precedentes, pela sua heterogeneidade étnica e cultural, pelo anonimato e atomismo da sua interacção, a cidade moderna caracteriza-se pela ruptura dos mecanismos tradicionais de controlo (família, vizinhança, religião, escola) e pela pluralidade, praticamente sem limites, das alternativas de conduta.

 Diante dos problemas observados na cidade, que era o laboratório dos pesquisadores da Universidade de Chicago, seus autores estavam interessados em trabalhos pragmáticos, que pudessem contribuir de alguma forma para a superação dos problemas enfrentados pela população, a partir de suas próprias ações e aptidões, reforçando os mecanismos tradicionais de controle. Foram autores de tradição de pragmatismo, observação direta das experiências e análise de processos sociais urbanos.

 De acordo com Howard Becker, é comum designar como uma escola, um grupo de autores que pensam de forma razoavelmente semelhante, o que é verificado por outros pensadores, anos após a produção dos primeiros. Porém, no que se refere à Escola de Chicago, o autor considera tratar-se não apenas uma escola de pensamento, mas principalmente uma escola de atividade, que “consiste em um grupo de pessoas que trabalham em conjunto, não sendo necessário que os membros da escola de atividade compartilhem a mesma teoria; eles apenas têm de estar dispostos a trabalhar juntos” (BECKER, 1996).

 Howard Becker, na palestra aqui utilizada como referência, faz então uma espécie de genealogia das conclusões da Escola de Chicago, apresentando seus principais autores, ideias e influencias, o que a finalidade do presente trabalho não permite aprofundar. Importa ressaltar apenas que autores, tais como Robert E. Park, Herbert Mead, Everett Hughes, entre outros, deram grande relevo à análise da cidade, tida como seu verdadeiro laboratório, aonde seria possível observar as interações repetitivas entre as pessoas.

 A Ecologia Criminal, expressão também utilizada para se referir ao pensamento da Escola de Chicago, “é o próprio princípio ecológico que, aplicado aos problemas humanos e sociais, postula a sua equacionação na perspectiva do equilíbrio duma comunidade humana com o seu ambiente concreto” (DIAS;ANDRADE, 1997, p. 270). Explica Davi de Paiva Costa Tangerino (2011, p. 115): “ecologia é o estudo dos seres vivos, não como indivíduos, mas como membros de uma complexa rede de organismos conexos’, e pode ser dividida em vegetal, animal e, de acordo com os sociólogos de Chicago, humana”.

 A cidade submete o indivíduo a estímulos, conduzindo à impessoalidade, à liberdade, ao anonimato e ao distanciamento tanto físico quanto emocional. Assim, a cidade rompe os mecanismos tradicionais de controle dos comportamentos, pois “os contatos da cidade podem ser face a face, mas são, não obstante, impessoais, transitórios e segmentários” (WIRTH apud FREITAS, 2002, p. 34).

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 De acordo com os mencionados autores, “a cidade não é somente um amontoado de homens individuais e de convenções sociais decorrentes do agrupamento humano”, ela é um estado de espírito (SHECAIRA, 2004, p. 151).

 Conforme concluiu Jock Young “a cidade é excludente e inquietante em virtude dos modelos de dominação, da falta de reconhecimento ou respeito social, pois freqüentemente as duas coisas estão entrelaçadas, porque apresenta paisagens de injustiça; de desequilíbrio e desigualdade” (citado por SILVA, 2009, p. 15).

 Dado o enfraquecimento do controle exercido pela família, escola e religião, quanto maiores as cidades, o controle deixa de acontecer na esfera privada, prevalecendo o controle na esfera pública. Há direta relação entre a organização do espaço e a criminalidade, sendo o crime um produto social da vida urbana.

 Surge então uma das principais correntes teóricas oriundas da Escola de Chicago, a Ecologia Criminal. Da ecologia os autores buscam os conceitos de simbiose e de invasão, dominação e sucessão. Concluindo que o crime não depende unicamente do indivíduo, mas muito mais do ambiente e grupos a que pertence.

 Em tal análise do ambiente constroem então a Teoria das Zonas Concêntricas, que busca demonstrar de que forma as cidades geralmente estão organizadas, apontando que haveria uma zona central, por eles denominada loop, ao redor da qual se espalha o restante da cidade em círculos concêntricos, sendo que a criminalidade diminui do centro para as margens. Verifica-se que há diversas cidades dentro da cidade.

 A primeira zona seria então o loop, espaço eminentemente comercial, aonde circulam as mercadorias, valores e serviços. São os espaços mais barulhentos, de trânsito problemático, com emissão de constante poluição, fumaça e mau cheiro. A zona logo subsequente, zona II, é justamente aquela que tem maior caráter criminogênico. Quem ocupa esses locais aí está por não ter outra opção, precisam colocar-se próximos a seus locais de trabalho por sua impossibilidade de arcar com os custos de deslocamento, caso vivessem em locais mais distantes.

 Na zona II o contato pessoal é precário, uma vez que ninguém pretende permanecer definitivamente nestes locais, ocupam então casas em pior estado, situação transitória, habitadas por estranhos. Nas palavras de Georg Simmel, "o estranho não é a pessoa que chega hoje e se vai amanhã, mas aquele que chega hoje e, embora possa nunca se ir, vive um estado permanente de possibilidade de partida" (SIMMEL apud FREITAS, 2002, p. 76).

 Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade (1997, p. 275) assim descrevem tal espaço:

A segunda é uma zona intersticial e de transição, tanto em sentido estático como dinâmico. Está permanentemente sujeita à invasão resultante do crescimento da zona central e, por isso, à constante degradação física. Está também sujeito á força centrífuga de seus habitantes, sempre dispostos a abandoná-la logo que tal lhes seja possível. Sendo, por tudo isto,  a zona menos desejada, ela é a única acessível às novas camadas de imigrantes, os mais pobres, por definição.

 A zona II é que mais se ressente do crescimento da cidade, sendo a que mais recebe a chegada dos imigrantes e demais pessoas em busca de uma oportunidade nas indústrias. A oferta de imóveis não atende a demanda, fazendo surgir os cortiços, Lucy M. Hall, comentando a situação dos cortiços afirma que à entrada de tais locais deveria haver uma placa dizendo: “toda esperança abandona você que entra aqui” (apud FREITAS, 2002, p. 25).

 Segundo Davi de Paiva Costa Tangerino (2011, p. 127):

A reunião, nas áreas degradadas, de determinados sujeitos, perdedores dos processos ecológicos, notadamente no tocante ao da competição, fará das mesmas áreas naturais criminógenas, cujo componente central é a desorganização social, causa por excelência da criminalidade no pensamento da Escola de Chicago.

 As casas não são necessariamente piores do que as casas do campo, mas o campo tinha inúmeros diferenciais positivos, tais como a amplitude dos espaços abertos e o convívio mais saudável com a natureza (FREITAS, 2002, p. 26).

 A situação de desorganização, característica da zona mais próxima aos loops, é a situação de ausência de laços de solidariedade, relações transitórias, vigilância baixa, o que proporciona ambiente favorável ao aumento da criminalidade. São como que “espaços marginais, off-limits, nos quais não podem viver, nem se fazer ver” (BAUMAN, 2009, p. 26).

 Conhecer tal organização do espaço urbano e a distribuição da criminalidade em tal espaço, é tarefa da Criminologia, “investigar, mediante uma análise totalizadora, tem por objetivo discernir sobre a etiologia do fato real, sua estrutura interna e sua dinâmica. Não há política criminal séria (seja ele preventiva ou repressiva) sem que se tenha um verdadeiro domínio da realidade sobre a qual se vai intervir” (SHECARIA, 2004, p.149).

 Evidente que este é apenas um possível recorte da realidade, que não inclui em sua análise a questão das cifras negras, que certamente influenciariam a construção de qualquer mapa da criminalidade real e como está distribuída dentro de uma cidade. Mas não se pode esquecer a contribuição dada pela Escola de Chicago e que certamente a continuidade de estudos semelhantes foi o que levou às abordagens sobre as Subculturas Criminais, aplicadas principalmente à delinquência juvenil.  Ainda, “a explicação do crime passou cada vez mais a buscar-se na divergência entre a cultura dominante (ideologicamente igualitária) e a estrutura sócio-econômica de classes, que reparte desigualmente as oportunidades de acesso” (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 282).

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

 Há portanto, grande convergência entre as premissas da Escola de Chicago e demais escolas que tratam da sociologia criminal.


2 MODERNIDADE LÍQUIDA

“Nas grandes cidades do pequeno dia-a-dia

O medo nos leva a tudo, sobretudo a fantasia

Então erguemos muros que nos dão a garantia

De que morreremos cheios de uma vida tão vazia

Erguemos muros[7]

 As conclusões delineadas pela Escola de Chicago, notadamente quanto às relações entre a vida urbana e a criminalidade, continuam ainda hoje relevantes e passíveis de análise, “continuam a explorar-se as potencialidades da tese central da escola de Chicago sobre o carácter criminógeno da cidade, mas em termos completamente novos, correspondentes às transformações entretanto registradas no processo de urbanização” (DIAS; ANDRADE, 1997, p. 284).

 É exatamente este tipo de análise que o presente trabalho pretende demonstrar que se encontra nas ideias do sociólogo Zygmunt Bauman e suas reflexões sobre as transformações que os indivíduos enfrentam na modernidade, que se coadunam com a abordagem contemporânea do tema, conforme Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costra Andrade (1997, p. 285):

Ao questionar-se hoje o carácter criminógeno do fenômeno urbano não terá, pois, grande sentido privilegiar as áreas naturais e os seus equilíbrios ecológicos. Mais do que isto, importa dar o devido relevo ao dinamismo da sociedade contemporânea, à sua mobilidade horizontal e vertical, aos seus modelos de acção, interacção e aprendizagem, ao seu pluralismo – em síntese, à sua anomia.

Bauman atende aquilo que recomenda Richard Quinney (TAYLOR;WALTON; YOUNG, 1980, p. 221) aos estudiosos da sociedade e do crime:

Nós não compreendemos adequadamente nossa existência contemporânea. Nossa compreensão do presente, assim como do passado, é mistificada por uma consciência que, unicamente, serve para manter a ordem existente. E se nós nos dispomos, de algum modo, a remover a opressão da época, devemos compreender criticamente o mundo ao nosso redor.

A modernidade entre outras conquistas trouxe a ideia de emancipação do indivíduo, situando-o como sujeito de direitos, superando o momento de mera servidão e de atitude de objeto para demonstração do poder do Estado. Tal sujeito, assim consciente de sua liberdade, deseja impor limites à intervenção do Estado em sua vida, limites que devem ser obedecidos uma vez que a fonte de legitimidade do poder estatal é o próprio indivíduo. O sonho moderno era a hipótese de que tudo poderia ser resolvido pela ciência e pela razão.

 Para garantir o exercício de referida liberdade, teria sido celebrado o Contrato Social, marco da passagem da barbárie à civilização, abandono do estado de natureza e início da sociedade civil. Ao Estado, fruto do contrato, cabe assegurar os direitos que não foram entregues pelos cidadãos, para sua formação. De acordo com Salo de Carvalho (2012):

Os projetos político e científico da Modernidade, no qual se inserem os discursos das ciências criminais – conjunto disciplinar integrado pelas ciências penais dogmáticas (direito penal e processo penal) e não dogmáticas (criminologia) –, têm como objetivo central a busca da felicidade através da negação da barbárie e da afirmação da civilização.

 A possibilidade do Estado punir os atos que desestabilizem o convívio, adviria do consenso que deu origem ao contrato social, mediação entre a barbárie do estado de natureza e a harmonia obtida com a sociedade civil. Observando-se a convivência nas grandes cidades seria possível verificar ali o fundamento no Contrato Social? Salo de Carvalho continua sua reflexão:

A expectativa das comunidades científica e política em relação à ciência jurídico-penal não é outra, portanto, que a de desenvolver instrumentos capazes de erradicação do resto bárbaro que insistentemente emerge na cultura. As violências, manifestas em inúmeras e distintas condutas desviantes, impedem a constituição da civilização. O fenômeno da violência representa, portanto, um dos últimos obstáculos a ser extirpado para que o projeto civilizatório se torne pleno.

 No entanto, conforme o que já se comentou sobre as conclusões da Escola de Chicago e se retira também do pensamento de Zygmunt Bauman, com a desorganização social, precariedade do convívio, provisoriedade dos laços e superficialidade dos contatos, que apenas se estendem enquanto perdura a conveniência, os indivíduos são lançados novamente à barbárie. Pergunta Bauman (2000, p. 9): “Se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não esteja a capacidade humana de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo? [...] é importante saber por que o mundo em que vivemos continua a nos enviar esse sinais evidentemente contraditórios”;

 Afinal, a própria civilização gera barbárie:

A premissa básica que orienta esta fala, portanto, é a de que as ciências criminais, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a reafirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto. Assim, apesar do nobre fim (fim da violência), o sistema penal colocou em marcha tecnologia de uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custo de vidas humanas (CARVALHO, 2012).

 Uma das liberdades conquistadas pela burguesia no início da modernidade, certamente foi a livre iniciativa econômica, restringindo-se a intervenção do Estado em tal área, permitindo a concorrência cada vez maior. Vigorando as premissas da liberdade, igualdade formal e legalidade, os indivíduos são lançados ao mercado, oferecendo sua força de trabalho, tal como se também ela fosse uma mercadoria. No relacionamento deixado ao sabor da “mão invisível do mercado”, seres humanos passam a ser facilmente substituíveis por outros, que produzam e consumam mais. Assim, nada tem garantia de permanência (exceto a pobreza): “Quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados” (BAUMAN, 2009, p. 21).

 A mudança nas relações de produção desencadeiam mudanças também na dinâmica das famílias, notadamente no papel exercido pelas mulheres, também elas trabalhadoras e cada vez mais responsáveis pela manutenção da família, agora não apenas em seu papel de principal educadora, mas também no aspecto financeiro.

 Surge uma profunda crise de pertencimento, ausência de raízes e aquilo que Bauman chama de casais CSS, ou seja, casais semi separados.

 Dado o maior acesso à informação, comunicação e transporte, torna-se cada vez mais fácil abandonar raízes, “quanto mais o ser humano aperfeiçoa a divisão social do trabalho, tanto menor é sua dependência de seu hábitat” (TANGERINO, 2011, p. 117). Homens e mulheres permanecem juntos, continuam em um emprego, residem em um local, enquanto isto lhes for oportuno e conveniente, não há grandes vínculos com que se responsabilizar, tudo é rápido, imediato, passageiro, em uma “sociedade de cartão de crédito, que elimina a distância entre a espera e o desejo”.

 É mais comum sentir-se todo o tempo entre estranhos, enfrentando-se o sentimento de solidão, na multidão. Vive-se em rede, mas não em comunidade.

A liberdade prometida e gozada pela modernidade acabou por gerar a ausência de vínculos e a precariedade dos compromissos. Não há verdade e nem o esforço pela compreensão de longas narrativas. Não há compromissos duradouros. O indivíduo é atirado então “Modernidade Líquida”, em que nada tem garantia de permanência.

 Da liberdade, oriunda da crença moderna de que cada um é senhor do seu destino, surge o medo da perda de segurança. Muita liberdade obrigatoriamente gera insegurança, daí a constante sensação de medo, comenta Bauman que “a forte tendência a sentir medo e a obcessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras” (BAUMAN, 2009, p. 13). Este medo seria oriundo da ausência do Estado e sua desregulamentação:

A insegurança atual é semelhante à sensação que provavelmente teriam os passageiros de um avião ao descobrirem que a cabine de comando está vazia, que a voz amiga do piloto é apenas uma mensagem gravada. A insegurança sobre como ganhar a vida, somada à ausência de um agente confiável, capaz de tornar essa situação menos insegura ou que sirva pelo menos de canal para as reivindicações de uma segurança maior, é um duro golpe no coração mesmo da política de vida (BAUMAN, 2000, p. 28).

 Aqui se encontra mais um ponto em comum entre o legado da Escola de Chicago e o pensamento de Bauman, conforme apontado por Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade (1997, p. 286), entre os aspectos que se situam na continuidade do pensamento da referida escola, “outro é que vem sendo posto em evidência pela investigação vitimológica e pela literatura sobre o medo do crime e a tendência crescente para responder a este medo com formas privadas de auto-tutela e defesa”.

 As casas então são construídas não mais como espaços de convívio, mas com o intuito de evitar o encontro e manter “os de fora”, à distância. É necessário manter distantes os “indivíduos que precisam ser impedidos de criar problemas e mantidos à distância da comunidade respeitosa das leis [...]. Existem, em muitas áreas urbanas, casas construídas para proteger seus habitantes, e não para integra-los nas comunidades às quais pertencem” (BAUMAN, 2009, p. 25).

  Nas palavras de Marcelo Yuka (1999):

As grades do condomínio/ São para trazer proteção/ Mas também trazem a dúvida/ Se é você que está nessa prisão/ Me abrace e me dê um beijo/ Faça um filho comigo/ Mas não me deixe sentar na poltrona no dia de domingo/ Procurando novas drogas de aluguel/ Nesse vídeo/ Coagido/ É pela paz que eu não quero seguir admitindo.[8]

 Esta busca pelo isolamento e segurança, é o que Bauman chama de “mixofobia”, o enorme medo de misturar-se. Porém, “não se pode partilhar uma experiência, sem partilhar um espaço” (BAUMAN, 2009, p. 43).

 Evita-se o convívio para se afastar dos vínculos e compromissos. Evita-se criar laços pelo medo do desfazimento destes mesmos laços: “mesmo quando podem sentir os vínculos que as unem aos outros, as pessoas não querem vivê-los porque têm medo de participar, têm medo dos perigos e dos desafios que a participação implica, e têm medo de sofrer”.  (BAUMAN, 2009, p. 45), afinal, “identificar-se com...’ significa dar abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar”. (Identidade)

 De acordo com Luiz Felipe Pondé (2009), sobre as reflexões de Bauman, o século XX foi o pesadelo da modernidade, que pretendia uma Estado organizado e um capitalismo controlado, o que não ocorreu. A preocupação constante com a eficácia e a produtividade retiraram as pessoas das discussões morais, relativizando todo sentimento de pertença, diante de uma tamanha diversidade cultural, sendo que, de acordo com o mesmo autor, hoje o que remanesce em termos de identidade, é apenas o estilo. A consciência pós-moderna instala-se então como mal estar. Já não se acredita em nada, nem na razão.

 Verifica-se, no convívio urbano, pessoas constantemente cercadas de outras pessoas, porém, as queixas e o sentimento de solidão e isolamento apenas aumentam. A cada dia mais “conectados”, os indivíduos sentem-se distantes, estar conectado não é o mesmo e não gera a mesma sensação de acolhimento e pertença gerada pela verdadeira comunidade.[9]

Fazer comunidade é muito diferente de se estar em rede. Da rede é possível conectar-se ou desconectar-se de acordo com as conveniências. Em comunidade desenvolvem-se vínculos, compromissos, responsabilidades. Em comunidade há a identificação com o problema do outro, que passa a ser meu. Em comunidade há o medo da perda, afinal, “os laços humanos são uma benção e uma maldição” (BAUMAN, 2011).

 Há algumas décadas atrás dificilmente um indivíduo se encontraria realmente sozinho. Os núcleos familiares eram muito mais extensos, congregando familiares ao redor de grandes mesas, cercadas de filhos, netos e outras pessoas próximas. Mariana Barros Barreiras (2008, p. 297), em artigo que aborda o tema do controle social, partindo do bairro em que residia, qual seja, o bairro da Casa Verde, Zona Norte de São Paulo, comenta de forma simples como em comunidades menores existe maior controle entre as pessoas:

Quem cresceu por ali sabe muito bem que, naquela área, é quase impossível estar sozinho. E que aquele que te vê chegando, bêbado em casa, por exemplo, não é um mero figurante do mundo que desaparecerá ao dobrar a esquina. Aquele é fulano de tal, amigo de sicrano, que mora no sobrado amarelo da Rua ‘X’. Não queremos com  isso dizer que os casaverdenses são menos propensos a praticar atitudes desviadas perto de casa do que os paulistanos residentes em bairros mais desenvolvidos. Apenas quisemos ilustrar quão desconfortável e ao mesmo tempo quão apaziguante é a sensação de estar entre conhecidos. Temos uma identidade a zelar no bairro. (grifo nosso)

 A retirada dos grupos tradicionais de convívio resulta muitas vezes no maior desapego em relação a convenções e vínculos. Abandona-se uma cidade, um emprego ou um relacionamento, com muita facilidade. Não há um nome ou uma história a se preservar. É possível se atestar tal afirmação, por exemplo, com a menor ênfase que se dá hoje aos crimes contra a honra, demonstrando a irrelevância que se dá à opinião alheia.[10] Mariana Barros Barreiras (2008, p. 316) cita Nils Christie: “nossa honra não é tão importante quando as demais pessoas que nos circundam não são significativas para nós. Estamos destinados a estar sozinhos ou rodeados de pessoas que podemos abandonar, pessoas desprovidas de influência sobre nós”.

 Assim é que é possível verificar que a Escola de Chicago aponta temática semelhante às reflexões de Zigmunt Bauman.

 Ao tomar a cidade como laboratório, como já anteriormente mencionado, os pesquisadores da Escola de Chicago apontam que o convívio nos grandes centros urbanos proporciona distanciamento, anonimato e enfraquecimento dos mecanismos tradicionais de controle. A insegurança impele os indivíduos ao isolamento, o isolamento torna os vínculos cada vez mais precários, vínculos geram maior insegurança e crescente isolamento...

A ausência de vínculos mais estáveis como a família, religião, emprego, comunidade, ocasiona legiões de pessoas sem referenciais, sem limites, sem responsabilidades. Não há mais um passado, uma história, um nome a zelar, um grupo a quem responder por seus atos. Somos todos aquilo que os Beatles chamaram de “Nowhere Man”:

He's a real nowhere man, Sitting in his nowhere land, Making all his nowhere plans for nobody. Doesn't have a point of view, Knows not where he's going to, Isn't he a bit like you and me? Nowhere man, please listen, You don't know what you're missing, Nowhere man, the world is at your command. He's as blind as he can be, Just sees what he wants to see, Nowhere man can you see me at all? Nowhere man, don't worry, Take your time, don't hurry, Leave it all 'till somebody else Lends you a hand (LENNON, MACCARTNEY, 1965).[11]

 Esta situação poderia ser equiparada ao que outros sociólogos denominaram situação de anomia[12]. Trata-se da desorganização dos valores, pela ausência de normas ou até mesmo pelo excesso de regras, já não sendo possível determinar a que sistema de valores ou conjunto de regras se deve aderir. Jorge de Figueiredo Dias e Manual da Costa Andrade (1997, p. 274), referem-se à desorganização social, dizendo que “não passa de uma fase de um processo dinâmico de mudança, alternando, por isso, com fases de organização social”. Sobre o tema, Davi de Paiva Costa Tangerino (2011, p. 133), menciona Joseph Roucek:

Quando as agências de controle social perdem o poder, o comportamento do grupo torna-se instável e imprevisível. Se a sociedade está em mudança, a falta de padrões de conduta pode ser o resultado do conflito entre as novas e as recém desenvolvidas regras de conduta. Esse conflito de padrões, leva à desorganização social.

 Diante de tudo isso, em busca do sentimento de comunhão com outros indivíduos, o que resta é aquilo que Bauman denominou como sendo a “comunidade guarda-roupa”, que serão abordadas a seguir.

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Sobre a autora
Patricia Manente Melhem

Professora na Faculdade Campo Real - Guarapuava - Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELHEM, Patricia Manente. Cidade grande, mundo de estranhos: Escola de Chicago e “comunidades guarda-roupa”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3655, 4 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24879. Acesso em: 22 dez. 2024.

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