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A prova nas ações do consumidor

(arts. 130 e 333 do CPC e arts. 6º, VIII e 51, VI do CDC)

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Pelas regras processuais comuns, inseridas no artigo 333, I e II do CPC, é do Autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito e do réu a obrigação da prova quanto aos fatos modificativos ou extintivos do direito do Autor.

O Código do Consumidor, por sua vez, traz entre seus dispositivos legais um específico – artigos 6, VIII – que insere entre os direitos básicos do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, desde que no entendimento do juiz, seja o consumidor hipossuficiente ou quando for verossímil sua alegação.

Este dispositivo, entre outras normas e princípios inseridos no CDC, trouxeram modificações ao sistema processual anterior e às regras do artigo 333 do CPC, sendo que o reconhecimento a estes princípios é inclusive obrigatório em alguns casos, como, por exemplo, no caso da veracidade e correção de informação ou comunicação publicitária, artigo 38 do CDC.

Tal entendimento vem se solidificando com o tempo, conforme ilustra recente julgado do STJ, a seguir transcrito:

CDC. PROVA. JUNTADA.

O Juiz pode ordenar ao banco réu a juntada de cópia de contrato e de extrato bancário, atendendo aos princípios da inversão do ônus da prova e da facilitação da defesa do direito do consumidor em juízo (art. 6º, VIII, do CDC e art. 381 do CPC). REsp 264.083-RS, Rel. Min. Ruy Rosado, julgado em 29/5/2001.

Antes de prosseguirmos no assunto, mister fixar-se alguns pontos doutrinários relevantes, que podem ser interpretados diferentemente, dependendo das partes no processo - casos comuns e/ou relações de consumo.

Qual o momento para fixação do ônus da prova?

A regra, ou a falta de regra específica, fez com que a maioria absoluta da doutrina concluísse por ser até a sentença, inclusive na própria sentença, o momento adequado para que o juiz decida sobre a fixação do ônus da prova. Ao menos até a sentença pode o juiz inverter o ônus da prova mas não está obrigado a assim proceder, independente dos prejuízos que pode causar, em alguns casos, ao processo e consequentemente às partes se não o fizer, ainda mais quando se tratar de uma relação de desigualdade, como ocorre nas relações de consumo, sendo mister reconhecer que este momento - em que se deve fixar o ônus da prova - pode ser interpretado distintamente se a relação processual for entre um fornecedor de serviço ou produto de um lado e um consumidor de outro.

De fato a tese mais adaptada ao texto da lei, ou a ausência do texto da lei, de fato nos parece ser a de que o ônus da prova, como regra de Juízo e não de procedimento, não exige momento próprio, nem obrigatoriedade para o juiz fixá-lo, tampouco invertê-lo, ficando reservado tal julgamento para a sentença, após produzida a prova e ante a ausência de convencimento do julgador, momento em que o juiz se socorre do artigo 333 do CPC para decidir, em regra, contrariamente a quem não se desincumbiu da prova.

Cita-se como exemplo ementa e parte do acórdão, da lavra do Desembargador Aldo Magalhães, que cai como uma luva para o que se pretende demonstrar, pois trata da inversão obrigatória do ônus da prova à luz de uma questão específica sobre matéria publicitária (art. 38 CDC), igualando-a aos casos gerais, diferenciados apenas pela discricionariedade do Juiz em atenção à regra do artigo 6, VIII, tratando inclusive do momento adequado para que Juiz se pronuncie sobre a inversão ou não do ônus da prova, conforme segue, lembrando que as sublinhas são nossas:

"Ementa

A incidência do artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor, que estatui recair o ônus da prova da veracidade e correção do informe publicitário sobre quem o patrocina, não depende de que o Juiz assim declare antes do início da fase instrutória."

...A vencida, na apelação sustenta que o processo é nulo por Ter sido aplicado o princípio da inversão do ônus da prova, sem que isso tenha sido objeto de prévia decisão na oportunidade do saneador;

O CDC, entre os direitos do consumidor, inclui o da facilitação da defesa, que abrange a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou for ele hipossuficiente"(art.6, VIII). A par desse direito de inversão do ônus da prova dependente da discricionariedade do juiz, o Código estabelece em seu artigo 38de forma peremptória e taxativa, que o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina."

Entender que o juiz, no caso do artigo 38, deve decidir previamente que o patrocinador da publicidade tem o ônus de provar a veracidade e correção do que nela se contém, eqüivale a entender que também deve previamente decidir que ao autor cabe o ônus da prova do fato constitutivo de seu direito e ao réu do fato impeditivo, modificativo do direito do autor, impondo num e noutro caso o insustentável entendimento de que o Juiz deve previamente proclamar que dará exato cumprimento ao que dispõem o artigo 38 do CDC e 333 do CPC.

Aliás, a distinção entre as duas disposições legais não escapou da doutrina, tanto que Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, comentando o artigo 38, anota: "O dispositivo refere-se ao princípio da inversão do ônus da prova que informa a matéria publicitária. A inversão aqui prevista, ao contrário daquela fixada no artigo 6º, VIII, não está na esfera da discricionariedade do Juiz. É obrigatória. Refere-se a dois aspectos da publicidade: a veracidade e a correção" (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Ada Pellegrini Grinover et alii, Forense Universitária, 3ª edição, pp. 216-217, onde inexiste o grifo).

Embora desnecessariamente, não custa acrescentar que a argüição de nulidade não seria procedente ainda que o ônus da prova tivesse sido invertido com base no artigo 6º, VIII do CDC. Primeiro porque preceito legal algum determina que o citado art. 6º, VIII, só pode ser aplicado quando o Juiz, antes do início da instrução probatória, tenha decidido ser o caso de sua incidência. Segundo, porque se a inversão do ônus probatório, no caso do artigo 6º, VIII, depende da verossimilhança da alegação do consumidor ou de sua hipossuficiência, forçoso é entender que o Juiz não pode decidir antecipadamente a respeito, posto que as citadas circunstâncias fáticas ao menos na maioria dos casos dependem de elucidação probatória, não comportando, portanto, decisão antecipada.

Fica consequentemente rejeitada a preliminar de nulidade...(RT, Vol. 716, pág.182) (TJSP, ap. 255.461-2/9-6 – 9ª Câmara, julgado em 06/04/95, relator Des. Aldo Magalhães, participação do Des. Celso Bonilha (pres.) e Ricardo Brancato com votos vencedores)

O poder instrutório do juiz, concedido através do artigo 130 do Código de Processo Civil, deve ser utilizado para garantir a igualdade de tratamento entre as partes, entretanto, mister ressalvar que quando se trata de relação de consumo, face ao reconhecimento da hipossuficiência inerente, em regra, ao consumidor, tal dispositivo, também em atendimento ao teor do artigo 6º, VIII do código consumerista recebe interpretação distinta à medida que o tratamento igualitário, nas relações de consumo, exige distinção.

A regra geral sobre o ônus da prova permanece sendo aquela do artigo 333 do CPC, entretanto, como dito acima, nas hipóteses do artigo 6º, VIII do código consumerista poderá haver a inversão em favor do consumidor, lembrando, que essa inversão se dá ope judicis e não ope legis, levando-se em consideração a idéia da facilitação da defesa do consumidor em juízo e a hipossuficiência tratada pelo artigo 6º, VIII, tanto no sentido econômico, representado pela capacidade financeira propriamente dita, como pela insuficiência técnica, muitas vezes patente no contexto pessoal do consumidor.

Esta inversão pode ocorrer em qualquer ação fundada no CDC, inclusive naquelas que seguem as regras comuns do processo civil e da responsabilidade civil subjetiva, dispostas no parágrafo 4º do artigo 14 do CDC, relativas aos profissionais liberais, cuja responsabilidade não decorre do simples fato do produto ou serviço (caput dos artigos 12 e 14) mas exige a apuração da culpa para imputar ao fornecedor qualquer sanção decorrente de sua responsabilidade pelo evento.

Uma das alegações muito utilizada por aqueles que defendem a obrigatoriedade prévia do Juiz inverter o ônus da prova é que tal dever decorre do princípio do contraditório e da ampla defesa, que exige que se dê às partes condições de defesa dentro do processo, não transformando uma regra de procedimento em armadilha processual.

Nesse ponto, contrapõe-se o fato de que nas relações de consumo a própria lei tratou de prevenir o fornecedor de produtos ou serviços de que a regra favorecerá o consumidor, não podendo este alegar cerceamento de defesa se apenas em sentença o juiz vier a inverter o ônus da prova, como, data venia às posições contrárias, processualmente é o que se pode exigir do magistrado, especialmente ante a falta de norma expressa que determine a obrigatoriedade ao juiz em ditar regras que muitas vezes, nem se tem como antever.

Nada impede que o juiz, mais cauteloso inclusive, dite às partes as "regras do jogo", declarando no saneamento do processo quem, na sua visão, é o detentor do ônus da prova, entretanto frisa-se mais uma vez, o ônus da prova é regra de juízo e a exigência processual, inclusive nas ações de consumo, onde a inversão é plausível, é que o magistrado utilize-se dessa regra apenas em sentença, após a dilação probatória, para sua orientação quando houver um non liquet sobre a matéria fática.

Nas relações de consumo, ante a necessidade de se socorrer da regra em comento, bastará ao juiz verificar se o consumidor é de fato hipossuficiente e se há verossimilhança nas suas alegações, momento em que, presentes tais requisitos, estará "obrigado" a inverter o ônus da prova em favor do consumidor.

Tal exigência, inobstante haver alterado ou dado nova distribuição processual às regras da inversão do ônus da prova, em princípio não devem ser tidas como conflitantes entre a regra da lei consumerista e o artigo 333 do CPC, mas subsidiárias, pois nas relações de consumo segue-se uma regra específica, exigindo-se requisitos novos, inexistentes no processo antes do CDC, que são a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência do consumidor, mantendo-se no geral a regra de Juízo do CPC.

A guisa de ilustração transcrevemos abaixo um exemplo dado por José Geraldo Brito Filomeno, capaz de demonstrar a diferença de postura das partes no processo civil dependendo da relação ser de consumo ou não:

Um automóvel com grave defeito de fabricação nas rodas de liga leve capota e causa sérios danos pessoais ao usuário. Simplificando a história, nas regras do artigo 159 do CC c/c art. 333 do CPC, este usuário teria que provar o dano (fácil constatação) o nexo de causa entre o dano e o ato do fabricante/montador do carro e a ele ficaria a incumbência de demonstrar que não agiu com culpa no evento, que não estava correndo, que não estava alcoolizado, que o acidente deu-se em virtude de problemas na roda, etc., enfim, a diferença após o código do consumidor é que, pela ótica e princípios inerentes à defesa do consumidor em juízo, bastará a apuração do dano e da constatação que a roda de liga leve apresentou defeito. A culpa é presumida e caberá ao fabricante demonstrar que o defeito inexistia, ou que a culpa foi exclusiva do consumidor.

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Em remate, importante frisar nessa questão, é que a inversão do ônus da prova não significa que o consumidor foi presenteado com o direito de atuar no processo com meras alegações, ainda que infundadas, passando ao fornecedor o ônus de provar o inverso.

O direito às provas permanece inalterado, restando à disposição das partes para livremente, dentro do controle formal do juízo, serem produzidas a seu critério, podendo se dizer que o que efetivamente mudou é a probabilidade de, se preciso for, inversão do ônus da prova em favor do consumidor, o que exige do réu, fornecedor de serviços e produtos, obrigatoriamente mais cautela dentro de um processo nas condições que a nova lei de consumo lhe impôs.

Ademais, muito embora exista indiscutivelmente essa tendência em se punir o fornecedor processualmente inerte, ante a ausência de prova desconstitutiva do direito do consumidor/Autor, exige-se, deste consumidor, requisitos mínimos para fazer valer essa "vantagem processual" instituída pelo CDC (verossimilhança das suas alegações e prova de sua hipossuficiência).

Convém, ao final, trazer decisão contrária ao consumidor que tornou por seu descuido impossível a produção de determinada prova, o que confirma a flexibilização da prova e da inversão do ônus da prova no processo civil combinados com os princípios do código de defesa do consumidor, traduzidos na seguinte ementa:

Ementa

Embora seja do fabricante o ônus de provar a ausência de defeito de fabricação do equipamento, cabe a seu adquirente preservar as condições fáticas para realização da prova pericial ou utilizar-se da medida cautelar prevista no art. 846 do CPC.

Acórdão

...(omissis)

Portanto, forçoso é a indagação: como periciar o que não mais existia?

Deste modo, cabia à autora-apelante, ao invés de produzir um laudo unilateral, valer-se da cautelar ad perpetuam rei memoriam prevista no art. 846 do CPC. Se não o fez, não ministrou condições para que a requerida apelada, depois desfigurado o ambiente, e após o desaparecimento da coisa, provasse a inexistência do apontado defeito de fabricação e sua consequente irresponsabilidade pelo evento danoso.

Aceitar, no caso, como absoluto, o princípio legal da inversão do ônus da prova, além de não previsto no código de defesa do consumidor é o mesmo que negar o direito de defesa por absoluta impossibilidade de produzi-la. E, na espécie, como se viu, a prova pericial não se realizou por ato imputável à própria autora, que não foi previdente na preservação das condições para sua realização." (Apelação civil. 217.645-4, TAMG, relator Juiz Kildare Carvalho, julgado em 07.08.1996)

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Eduardo Galdão. A prova nas ações do consumidor: (arts. 130 e 333 do CPC e arts. 6º, VIII e 51, VI do CDC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2489. Acesso em: 19 abr. 2024.

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