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Caso pataxó:

o MP, a imprensa e a justiça

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Leio espantado, os frágeis argumentos do Ministério Público, em torno do impedimento da Dra. Sandra de Santis para presidir a sessão de julgamento dos menores envolvidos no caso da morte do índio Pataxó, Galdino. Mais uma vez, parece que a imprensa será utilizada para decidir previamente um julgamento perante o Tribunal do Júri – permitam-me a redundância – popular.

Rousseau, em sua obra O Contrato Social, já dizia que a vontade do povo pode ser deturpada por argumentos espúrios. É o que se vê in casu, o Ministério Público, órgão encarregado de zelar do ordenamento jurídico (art. 127 da Constituição Federal) se vale de caminhos ardilosos, porque não dizer, sujos, para desacreditar a Dra. Sandra de Santis e sua decisão anterior.

O fato é que não existe qualquer impedimento na Constituição Federal, em qualquer convenção ou tratado de Direito Internacional ou em qualquer norma interna, no sentido de que o Juiz da instrução não possa decidir. Em Direito Processual Penal, em regra, não há o princípio da identidade física do Juiz, o que é por muitos criticado, eis que, por tal princípio, o Juiz que produz as provas – faz a instrução processual – deve decidir. No entanto, atento a essa realidade, o Código de Processo Penal (CPP), prevê que o Juiz pode proceder diligências, interrogar novamente o réu etc. (art. 502).

No procedimento dos crimes dolosos contra a vida, existem duas fases, quais sejam juditio acusatitionis (juízo de acusação) e juditio causae (juízo da causa). Na primeira fase, o Juiz singular, no caso a Dra. Sandra, forma seu Juízo de convencimento racional acerca da existência de elementos mínimos para levar o feito ao juiz da causa, que é o povo, representado pelo Tribunal do Júri. Ao final da primeira fase, a dúvida enseja a sentença de pronúncia, ato pelo qual o Juiz singular manda o processo para apreciação do Juiz da causa, um colegiado que representa o povo (CPP, art. 408).

Somente a certeza impede a sentença de pronúncia. Pode o Juiz singular ter certeza de que o réu praticou crime doloso contra a vida, mas não pode expressar tal certeza, para não contaminar a razão do povo. No entanto, pode o Juiz ter outras certezas, estas devem ser consignadas na decisão, mas retirando a competência do povo para o exame da causa, quais sejam:

- não existirem indícios de ser o acusado o autor do fato, não existir prova da autoria, devendo extinguir o processo por meio de uma sentença de impronúncia (CPP, art. 409);

- ter ocorrido o fato com excludente de ilicitude (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal etc.), devendo absolver sumariamente o réu (CPP, art. 411); ou

- não se tratar de crime doloso contra a vida, fazendo operar a desclassificação ou a mutatio libeli – esta é a modificação dos fatos da denúncia (CPP, art. 384) – devendo encaminhar os autos para o juiz criminal competente, eis que o Tribunal do Júri só deve apreciar os crimes dolosos contra a vida e os outros a ele conexos. Assim, não estando envolvido crime doloso contra a vida, não pode o processo ir ao povo (CPP, art. 410).

Quanto à alegação do referido impedimento, é absurda, senão o próprio povo seria impedido para julgar os fatos. Com efeito, na segunda fase, a lei determina que se refaça a instrução perante o Juiz da causa – o Tribunal do Júri –, o que permite a dedução lógica que, perante o Tribunal do Júri há o princípio da identidade física do Juiz, ou seja, quem faz a instrução, durante a sessão plenária, necessariamente, deve decidir.

No caso, conheço bem os autos – e para falar de um processo é necessário que se conheça bem dele –, o que me dá legitimidade para dele tratar. Assim, em primeiro lugar, chamo a tenção para o fato de que nem o Promotor Francisco Leite, nem o Diaulas terem oficiado nos autos, portanto, sem legitimidade para falar deles. Talvez eles digam que também não consto, mas tomei conhecimento do processo por meio da pobre mãe de dois envolvidos, que vê um órgão encarregado de zelar da ordem jurídica, descumprindo-a para prejudicar seus filhos.

Creio ser essencial falar, mesmo que superficialmente, sobre o conceito de justiça, que é filosófico. Platão já dizia que "justiça é a felicidade do povo". Kelsen, um dos maiores nomes da jusfilosofia de todos os tempos – escreveu três livros sobre justiça, quais sejam: O Problema da Justiça, O que é a Justiça? e Ilusão da Justiça –, chegou a conclusão de que não existe um conceito geral de justiça. Esta é individual. Assim, devemos ter um parâmetro, que é a lei. Nesse contexto é que desenvolvo nossa conclusão.

De outro modo, o STJ violou sua própria Súmula nº 7, ao determinar que o processo fosse ao Tribunal do Júri, tendo em vista que a distinção entre dolo eventual, do qual são acusados os réus e culpa consciente, tese da defesa, só é possível por meio da análise da prova, sendo que a referida súmula preceitua que o simples desejo de que se faça o reexame da prova não enseja o recurso especial – o qual, no caso, foi o recurso interposto e por ele apreciado.

Pior é saber que o STJ é o guardião da legislação infraconstitucional, mas negou, somente nesse caso, vigência ao art. 410 do CPP, corretamente aplicado pela Dra. Sandra. Ainda mais grave, é verificar o Ministério Público (MP) armando uma farsa para iludir o povo e obter uma condenação espúria. Com efeito, o afastamento da Dra. Maria José (Promotora de Justiça que acompanhava o caso) se deu porque ela, efetivamente, não tinha condições para acusar os rapazes perante o Tribunal do Júri, pois ela estava exageradamente envolvida com os fatos, chegando a se expor ao papel ridículo de colocar vestes silvícolas no dia do julgamento do recurso por ela interposto. Isso, sim, impede que ela oficie no feito. Dessa forma, toda argumentação do MP é mera decorrência do oportunismo de quem deseja unicamente fama.

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O Dr. Diaulas constantemente aparece na imprensa, defendendo teses polêmicas. Ele oficia na Provida, defendendo cirurgias para mudança de sexo. Agora, surge repentinamente na Promotoria do Tribunal do Júri emitindo opiniões, o que leva à certeza de que deseja unicamente fama, mesmo que ela custe o excesso na constrição da liberdade dos rapazes. Da mesma forma, o Dr. Francisco Leite, que já foi candidato a Deputado Distrital e oficia em Promotoria muito distante de Brasília, procura seu espaço na mídia, o que é péssimo.

Assassino, na Itália, é quem pratica homicídio doloso. Assim, a imprensa, quando chama os acusados de assassinos, os julga antecipadamente, sendo que a isenção do povo, essencial para a análise dos fatos, resta prejudicada. De outro modo, essa campanha fraudulenta, que ora se desenvolve, nada mais é que mera indução do povo a uma concepção equivocada e precipitada dos fatos, que – ratifico – deve ser feita com imparcialidade.

Assim, conforme expusemos, no julgamento que se iniciará no dia 06/11/2001, é possível que não vejamos a justiça desejada – assim tomada como o respeito à lei -, uma vez que os entes envolvidos (MP e imprensa) não procuram preservá-la, afetando a vontade do povo, que será o Juiz da causa.

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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Caso pataxó:: o MP, a imprensa e a justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2500. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Título original: "O MP, a imprensa e a justiça".

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