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Os efeitos jurídicos do memorando de entendimento no Brasil

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19/08/2013 às 08:30
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4. A RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL: DA NEGOCIAÇÃO À EXECUÇÃO DO MEMORANDO DE ENTENDIMENTO

Historicamente têm sido reconhecidas duas grandes espécies de responsabilidade civil: a extracontratual, quando entre o causador do dano e a vítima não havia qualquer tipo de relação jurídica de natureza contratual; e a contratual, quando é causado no âmbito de uma preexistente relação de natureza contratual entre as partes.[20]

Nesse contexto é que surge a problemática da responsabilidade civil pré-contratual. Na fase das tratativas não há ainda vínculo jurídico contratual entre as partes, de modo que não há prestação a ser cumprida entre elas. Esse simples fato poderia levar o exame de situações em que uma das partes das negociações causa danos à outra para a esfera da responsabilidade civil extracontratual.[21]

No Brasil, a doutrina majoritária reconhece o caráter extracontratual da responsabilidade pré-contratual. Nesse sentido já tinha se pronunciado Eduardo Espínola[22], no que foi acompanhado por Caio Mário da Silva Pereira[23], Martinho Garcez Neto[24], Sílvio Rodrigues[25], Antonio Junqueira de Azevedo[26], Maria Helena Diniz[27], Clóvis do Couto e Silva[28], Carlos Alberto Bittar[29], Lindbergh Montenegro[30] e José Alexandre Tavares Guerreiro[31].

Contudo, Regis Fichtner Pereira[32], respaldado por uma boa parte da doutrina, defende que a responsabilidade pré-contratual tem natureza específica, sui generis. Isso porque, a investigação das circunstâncias em que o fato danoso ocorre e principalmente dos deveres que são cometidos às partes durante o desenrolar das negociações contratuais, faz com que as regras e os princípios da responsabilidade civil extracontratual não se amoldem aos fatos peculiares às atividades conduzidas na fase pré-contratual. O contato havido entre as partes, em decorrência de estarem negociando com vistas à formação da relação jurídica contratual, não se assemelha ao simples contato social, que é característico das hipóteses de responsabilidade civil extracontratual. O contato que as partes desenvolvem com a finalidade de discutirem as bases de um eventual negócio jurídico a ser constituído é contato qualificado. Embora não haja ainda relação jurídica contratual – afastando a cogitação de responsabilidade civil contratual – entre as partes há, não obstante, deveres jurídicos qualificados, que fazem surgir entre elas uma relação jurídica especial, cuja configuração afasta os preceitos da responsabilidade civil extracontratual.[33]

Em razão dessas considerações, surgiu a necessidade de se criar, ao lado da responsabilidade civil contratual e da responsabilidade civil extracontratual, um sistema próprio de regras de responsabilidade civil para os danos que uma pessoa causa a outra durante o desenvolvimento de negociações tendentes à formação da relação jurídica contratual. Surge, portanto, no âmbito das relações jurídicas existentes durante a fase das negociações contratuais, uma terceira espécie de responsabilidade civil. À terceira espécie ou terceira via de responsabilidade civil tem sido dada a denominação de responsabilidade civil pré-contratual.[34]

Regis Fichtner Pereira[35] entende que a responsabilidade civil pré-contratual tem quatro hipóteses típicas, nas quais pode se configurar: a) quando tenha havido a ruptura injustificada das negociações contratuais; b) quando durante o desenrolar das negociações um dos contraentes venha a causar danos à pessoa ou aos bens do outro contraente; c) quando tenha ocorrido o estabelecimento de contrato nulo ou anulável e um dos contraentes conhecia ou deveria conhecer a existência do vício no negócio jurídico; d) quando, mesmo instaurada a relação jurídica contratual, das negociações preparatórias tenham surgido danos a serem indenizados. Segundo o Autor[36], os requisitos para a configuração da responsabilidade civil pela ruptura das negociações contratuais são: a) a existência de negociações; b) a culpa, entendida como violação do princípio da boa-fé; c) o dano; d) o nexo causal.

Assim, partindo do pressuposto que o MoU é um documento preliminar, entendemos[37] que, uma vez firmado o MoU – no decorrer de uma negociação - acerca de alguns pontos, ou elementos, de um futuro contrato, a negociação somente poderá ser rompida justificadamente, motivadamente, sobretudo se a razão do rompimento estiver vinculada aos pontos nele acordados. A grande questão, porém, reside em se definir o que seja justo motivo para a ruptura do acordado no memorando de entendimento. Trata-se, sem dúvida alguma, de um conceito jurídico indeterminado, cuja presença ou não somente pode ser avaliada no caso concreto. A mera reconsideração de aspectos que já tinham sido definidos no memorando de entendimento, não preenche o requisito de justo motivo para a sua ruptura. Por outro lado, se o contraente passa a considerar que o contrato projetado não atende mais aos seus interesses, em razão de um elemento que tenha surgido supervenientemente, tem ele a faculdade de encerrar as negociações, sem que possa ser responsabilizado por quaisquer prejuízos que venham a ser suportados pela parte contrária.[38] Nesse caso, o risco de perda de tempo e dinheiro, inerente às negociações contratuais, se materializou, sem que se possa imputar à parte contrária qualquer conduta não consentânea com o princípio da boa-fé.

Assim, entendemos que a ruptura do acordado no âmbito de um memorando de entendimento poderá ensejar responsabilidade civil pré-contratual, a qual somente será afastada se houver justo motivo para a ruptura do acordado e desde que não haja culpa da parte que deu causa ao rompimento do memorando de entendimento, pautada no descumprimento dos deveres de boa-fé objetiva.

Em suma, ainda que motivada a ruptura, poderá a parte que causou a ruptura, conforme o estabelecido no MoU, ser obrigada a ressarcir a outra parte pelas despesas em que se viu obrigada a incorrer na condução da negociação. Por outro lado, em caso de ruptura injustificada ou ruptura justificada, porém com culpa da parte que deu causa ao rompimento, em razão do descumprimento dos deveres de boa-fé objetiva, poderá a parte responsável não somente responder pelas despesas que a outra parte se viu obrigada a incorrer na condução da negociação mas também por outros danos que eventualmente tenha sofrido ou que venha a sofrer a parte contrária, como danos à reputação comercial ou industrial e perdas de outras oportunidades (custo-oportunidade).

Cumpre frisar que o escopo de documentos preliminares como o memorando de entendimento é também de impedir ou evitar negociações paralelas, ainda que isso não esteja previsto expressamente em seus termos.

Nesse sentido, partindo para um exemplo prático, se duas ou mais empresas celebram um memorando de entendimento e uma das partes desiste da realização do mesmo em razão de uma negociação paralela melhor, mais lucrativa, com outra empresa, é possível se verificar uma justificativa para tal ruptura, contudo, é necessário também se verificar se houve o cumprimento dos deveres de informação e lealdade, oriundos da boa-fé objetiva, para se confirmar se haverá responsabilidade civil pré-contratual nesse caso. Ou seja, é essencial que a parte que ensejou a ruptura do memorando de entendimento em razão de uma negociação paralela tenha agido em conformidade com os deveres de boa-fé objetiva, nesse caso, respeitando o dever de confidencialidade ínsito ao caso, bem como o dever de informação, informando as outras partes que celebraram com ela o memorando de entendimento sobre a referida negociação e, finalmente, o dever de lealdade, dando-as direito de preferência, ainda que o mesmo não tenha sido previsto no documento celebrado, concedendo-as a oportunidade de negócio – em primeiro lugar - segundo os termos da negociação realizada em paralelo.[39]

Seguindo em outro exemplo prático, quando duas ou mais empresas estrangeiras e brasileiras estipulam – por meio de um memorando de entendimento – que pretendem envidar esforços a fim de realizarem oferta conjunta em licitação para outorga das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural em determinados blocos localizados no Brasil e que, nesse sentido, caso uma delas tenha interesse em realizar oferta para algum dos blocos constantes de tal licitação, sujeitar-se-á à aceitação da(s) outra(s) empresa(s) e as partes, então, deverão discutir acerca de outro documento específico (Joint Bidding Agreement) para detalhar os termos da oferta em conjunto das empresas naquela licitação, ainda que no referido MoU as partes estipulem a isenção de responsabilidade por danos diretos ou indiretos causados à(s) outra(s) parte(s), incluindo-se a isenção dos lucros cessantes e danos emergentes e a perda de negócios, poderá, ainda assim, haver responsabilização da(s) parte(s). Isto porque, primeiramente, mesmo quando há isenção de responsabilidade por acordo das partes, a cláusula de não indenizar não suprime a responsabilidade que somente a lei pode excluir[40], ela apenas limita o dever de indenizar inter partes[41].

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Ressalte-se, ainda, que, o Código Civil Brasileiro[42] garante que, havendo dolo ou culpa grave da parte que provocou o dano, haverá responsabilização civil da mesma, ainda que haja a cláusula de não indenizar. Isso porque, o Código Civil não admite condições puramente potestativas, ou seja, que sujeitam uma parte ao arbítrio de outra. Assim, uma cláusula limitadora de responsabilidade das partes não terá aplicabilidade, caso haja o inadimplemento contratual por uma das partes, que tenha agido com dolo ou culpa grave. [43]

Nesse sentido, caso haja a prática – por quaisquer das partes - de conduta que afronte os deveres de boa-fé objetiva, tais como os mencionados acima: dever de colaboração ou cooperação entre as partes, lealdade, solidariedade, informação etc., a qual se acrescenta os demais elementos gerais da responsabilidade civil aquiliana (extracontratual), ou seja, a culpa, o dano e o nexo causal, poderá haver o dever de reparação pela parte que provocou o dano, ainda que haja cláusula de limitação de responsabilidade das partes. Em outras palavras, havendo cláusula de não indenizar entre as partes, prevista no memorando de entendimento, como no caso exposto, o dever de reparar o referido dano, inter partes, estará limitado aos termos da referida cláusula apenas se restar demonstrado que a parte que provocou o dano não agiu com culpa grave ou dolo, pautado no descumprimento dos deveres de boa-fé objetiva. Do contrário, ainda que exista cláusula de exclusão de responsabilidade entre as partes, haverá o dever de reparação do dano causado como se não houvesse a referida cláusula. Outrossim, não será admitida cláusula supressora de responsabilidade entre as partes, na medida em que, como visto acima, o Código Civil Brasileiro não permite condições que privem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitam ao puro arbítrio de uma das partes.

Nesse contexto, a reparação de dano causado por descumprimento do acordado no âmbito de um memorando de entendimento com cláusula de exclusão de responsabilidade entre as partes, estará vinculada à comprovação de culpa grave ou dolo, pautado no descumprimento dos deveres de boa-fé objetiva da parte que provocou o dano. Tendo em vista a dificuldade da prova de culpa grave e dolo, existem autores que defendem que a preservação da boa-fé e a proteção da confiança daqueles que negociam e celebram os contratos (ou pré-contratos) não se constitui em direito disponível, que possa ser afastado pela autonomia da vontade das partes, refletida no contrato. Em tal situação, impõe-se a aplicação das regras gerais, segundo as quais a lei estabelece que o objeto da obrigação de indenizar é medido pela integral reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o descumprimento.[44]

Seguindo esse entendimento, os deveres de boa-fé objetiva afastariam a cláusula de limitação de responsabilidade das partes, na medida em que tais deveres estão previstos em Lei, leia-se Código Civil Brasileiro, e, portanto, são limitadores da autonomia privada.[45] Tal entendimento encontra respaldo no Enunciado 24 do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aprovado na I Jornada de Direito Civil (2004), segundo o qual “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”. Complementando, o Enunciado 363 do CJF/STJ dispõe que: “Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação”.

Lembre-se que o maior intuito da celebração de um memorando de entendimento é o de afastar a possibilidade de negociação com outras empresas. Assim, a previsão de cláusula de limitação de responsabilidade das partes com o fim de afastar a responsabilização das partes caso as mesmas realizem outras negociações em paralelo, sem dar a(s) outra(s) parte(s) o direito de preferência, vai de encontro a um dos objetos principais do memorando de entendimento, qual seja, o de evitar que negociações paralelas com outras empresas prejudiquem a negociação estabelecida no memorando de entendimento. Essa cláusula afastaria o dever de reparar o dano causado pelo não cumprimento do memorandum of understanding em razão de negociação paralela com outra(s) empresa(s). Desse modo, haveria um nítido comportamento contraditório das partes que celebraram o memorando de entendimento ao prever a citada cláusula de limitação de responsabilidade das partes, eis que o efeito jurídico de tal documento estaria vinculado ao mero alvedrio de uma das partes, o que é vedado pelo Código Civil Brasileiro (art. 122). Isto porque, qualquer das partes poderia cumprir o estabelecido no memorando de entendimento, ou, simplesmente, desistir de cumpri-lo em razão de outra negociação melhor e a parte que sofreu o dano arcaria com os prejuízos sem o direito de ressarcir-se pelo dano causado pela outra parte.

Nesse caso, a cláusula de limitação de responsabilidade desnaturaria o memorando de entendimento, eis que esvaziaria os efeitos jurídicos do referido documento, de modo que o direito à reparação do dano causado, afastado pela mencionada cláusula, deverá prevalecer como se não houvesse tal cláusula.

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Sobre a autora
Angela Lima Rocha Cristofaro

Advogada formada pela PUC/RIO, com pós-graduação em advocacia pública pela Escola Superior da Advocacia Pública (convênio UERJ/PGE-RJ) e pós-graduação em direito empresarial, com concentração em negociação e negócios de petróleo e gás, pela FGV-RIO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTOFARO, Angela Lima Rocha. Os efeitos jurídicos do memorando de entendimento no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3701, 19 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25097. Acesso em: 27 abr. 2024.

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