No Regime Geral de Previdência Social (RGPS) brasileiro, desde o Decreto nº 35.448/54 (Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadorias e Pensões) até o Decreto nº 89.312/84 (Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS), refletia-se a tradição civilista do homem como pater famílias (ex: art. 233 do Código Civil de 1916) e, em consequência, a esposa era dependente previdenciária do marido, mas este (em regra) não era dependente dela.
Por exemplo, o art. 12, I, do Decreto nº 35.448/54, limitava os dependentes à esposa e ao marido inválido, além das filhas solteiras até os 21 anos, ou inválidas, e dos filhos até os 18 anos de idade ou inválidos. Do mesmo modo, o art. 10 do Decreto nº 89.312/84 inseria, entre os dependentes: (a) a esposa, o marido inválido e a companheira mantida há mais de 5 anos (inciso I); (b) o dependente designado, sem restrição para o sexo feminino, mas, para o sexo masculino permitia apenas o menor de 18 anos, o maior de 60 anos e o inválido (inciso II).
A Constituição de 1988 modificou essa tradição ao dispor que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§ 5º do art. 226), o que gerou reflexos em todos os ramos jurídicos, inclusive no Direito Previdenciário. Especificamente no RGPS, o art. 201, V, da Constituição, determinou que homens e mulheres fossem reciprocamente considerados como dependentes previdenciários: “V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º”. Mais do que isso, ao apartar a categoria “dependentes” dos cônjuges ou companheiros, atribuiu a estes uma relação de presunção que sobrepõe, mesmo, a dependência, ou gera para eles uma presunção dela.
Regulamentando a norma constitucional, o art. 16 da Lei nº 8.213/91 (e o art. 16 do Decreto nº 3.048/99) divide os dependentes dos segurados em três classes distintas: (a) cônjuge, companheiro e filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos, inválido, ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente (dependentes preferenciais); (b) os pais; (c) o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos, inválido, ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente.
Contudo, entre a promulgação da Constituição (05/10/1988) e a entrada em vigor da Lei nº 8.213/91 (25/07/1991) permaneceu vigente a CLPS, que não incluía o marido e o companheiro como dependentes previdenciários da esposa ou da companheira, o que criou polêmica sobre a data a partir da qual o marido ou companheiro tem direito à pensão por morte da mulher. Essa discussão está baseada no questionamento a respeito da efetiva autoaplicabilidade do art. 201, V, da Constituição: (a) de um lado, entende-se ser a referida norma autoaplicável, logo, o marido ou companheiro tem direito à pensão por morte, desde que o óbito da esposa tenha ocorrido a partir de 05/10/1988[i]; (b) de outro, defende-se a não aplicabilidade imediata do dispositivo constitucional, razão pela qual o homem só tem direito ao benefício em face do falecimento da mulher a partir da entrada em vigor da Lei nº 8.213/91, em 25/07/1991[ii].
Decorre, ainda, da discussão em torno da autoaplicabilidade da norma constitucional, outra questão importante: a necessidade de prévia fonte de custeio para a criação, majoração ou ampliação de prestação securitária, também determinada por outro dispositivo da Constituição. De acordo com o art. 195, § 5º, “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.
No julgamento do RE 385397, em 29/06/2007, o Supremo Tribunal Federal modificou seu entendimento e decidiu, por unanimidade, que o art. 201, V, da Constituição, é autoaplicável, muito embora estivesse se tratando, naquela hipótese, de regramento referente a Regime Próprio de Previdência:
“I. Recurso extraordinário: descabimento. Ausência de prequestionamento do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, tido por violado: incidência das Súmulas 282 e 356.
II. Pensão por morte de servidora pública estadual, ocorrida antes da EC 20/98: cônjuge varão: exigência de requisito de invalidez que afronta o princípio da isonomia.
1. Considerada a redação do artigo 40 da Constituição Federal antes da EC 20/98, em vigor na data do falecimento da servidora, que não faz remissão ao regime geral da previdência social, impossível a invocação tanto do texto do artigo 195, § 5º - exigência de fonte de custeio para a instituição de benefício -, quanto o do art. 201, V - inclusão automática do cônjuge, seja homem ou mulher, como beneficiário de pensão por morte.
2. No texto anterior à EC 20/98, a Constituição se preocupou apenas em definir a correspondência entre o valor da pensão e a totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, sem qualquer referência a outras questões, como, por exemplo os possíveis beneficiários da pensão por morte (Precedente: MS 21.540, Gallotti, RTJ 159/787).
3. No entanto, a lei estadual mineira, violando o princípio da igualdade do artigo 5º, I, da Constituição, exige do marido, para que perceba a pensão por morte da mulher, um requisito - o da invalidez - que, não se presume em relação à viúva, e que não foi objeto do acórdão do RE 204.193, 30.5.2001, Carlos Velloso, DJ 31.10.2002.
4. Nesse precedente, ficou evidenciado que o dado sociológico que se presume em favor da mulher é o da dependência econômica e não, a de invalidez, razão pela qual também não pode ela ser exigida do marido. Se a condição de invalidez revela, de modo inequívoco, a dependência econômica, a recíproca não é verdadeira; a condição de dependência econômica não implica declaração de invalidez.
5. Agravo regimental provido, para conhecer do recurso extraordinário e negar-lhe provimento” (RE 385397 AgR/MG, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/06/2007, DJe 05/09/2007).
Em seu voto, o relator afastou o argumento da necessidade de fonte prévia de custeio sob o fundamento da aplicabilidade imediata e independente da fonte de custeio dos benefícios previstos na Constituição. Em outras palavras, apenas benefícios criados pela legislação infraconstitucional necessitam da prévia fonte de custeio, conforme já havia decidido o próprio STF em outras questões previdenciárias, como na pensão por morte integral para dependentes de servidores públicos:
“- Pensão por morte do servidor público. Aplicação do artigo 40, § 5º, da Constituição Federal.
2. Esta Corte já firmou entendimento segundo o qual esse dispositivo, que é autoaplicável, determina a fixação da pensão por morte do servidor público no valor correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos que ele percebia. Precedentes.
3. Inexigibilidade, por outro lado, da observância do artigo 195, § 5º, da Constituição Federal, quando o benefício é criado diretamente pela Constituição.
4. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE 220742/RS, 2ª Turma, rel. Min. Néri da Silveira, j. 03/03/1998, DJ 04/09/1998, p. 18).
Em seguida, o acórdão do RE 385397 passou a ser aplicado ao RGPS em julgamentos posteriores do STF:
“Agravo regimental no recurso extraordinário. Previdenciário. Pensão por morte. Cônjuge varão. Demonstração de invalidez. Princípio da isonomia. Aplicabilidade imediata do Regime Geral de Previdência Social. Precedentes.
1. A regra isonômica aplicada ao Regime Próprio de Previdência Social também se estende ao Regime Geral de Previdência Social.
2. O art. 201, inciso V, da Constituição Federal, que equiparou homens e mulheres para efeito de pensão por morte, tem aplicabilidade imediata e independe de fonte de custeio.
3. A Lei nº 8.213/91 apenas fixou o termo inicial para a aferição do benefício de pensão por morte.
4. Agravo regimental não provido” (RE 415861 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Dias Toffoli, j. 19/06/2012, DJe 31/07/2012).
Igualmente: RE 352744 AgR/SC, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01/03/2011, DJe 18/04/2011; RE 366246 AgR/PA, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 01/04/2008, DJe 19/06/2008; RE 607907 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 21/06/2011, DJe 29/07/2011.
Portanto, sob o entendimento principal de que a prévia fonte de custeio é dispensada para benefícios previdenciários previstos na própria Constituição, o STF passou a entender que o art. 201, V, da Constituição, é autoaplicável e que, desde 05 de outubro de 1988, homens e mulheres são dependentes previdenciários recíprocos, reformulando entendimento que vinha prevalecendo até então.
[i] Defendendo essa posição: “(...) 1- O art. 201, inc. V da Constituição Federal de 1988, é autoaplicável e estende o pensionamento por morte de segurada da Previdência Social, falecida após o advento da Constituição Federal de 88, ao cônjuge varão” (TRF2, AC 200202010175421/RJ, 5ª Turma, rel. Des. Federal Franca Neto, j. 25/05/2004, DJ 07/06/2004, p. 200). Igualmente, no TRF3: AC 200103990548249/SP, 7ª Turma, rel. Juiz Federal Antonio Cedenho, j. 26/06/2006, DJ 21/09/2006, p. 487; AC 200403990020621/SP, 7ª Turma, rel. Juíza Federal Leide Polo, j. 22/03/2004, DJ 15/02/2004, p. 325; AC 96030193070/SP, 5ª Turma, rel. Juiz Federal Johonsom Di Salvo, j. 26/03/2002, DJ 18/06/2002, p. 485. No TRF4: AC 50001469220104047004, 6ª Turma, rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, j. 28/11/2012, DE 29/11/2012. No TRF5: APELREEX 00003381720134059999, 2ª Turma, rel. Des. Federal Marco Bruno Miranda Clementino, j. 26/02/2013, DJE 28/02/2013. Na Turma Nacional de Uniformização: Processo de Uniformização 500059833, rel. Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho, j. 25/04/2012, DOU 08/06/2012.
[ii] Sobre o assunto, o STF entendia não ser o dispositivo constitucional autoaplicável: “(...) I. - A extensão automática da pensão ao viúvo, em obséquio ao princípio da igualdade, em decorrência do falecimento da esposa-segurada, assim considerado aquele como dependente desta, exige lei específica, tendo em vista as disposições constitucionais inscritas no art. 195, caput, e seu § 5 º, e art. 201, V, da Constituição Federal” (RE 204193/RS, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. 30/05/2001, DJ 31/10/2002, p. 20). Ainda: AI 538673 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/05/2007, DJe 28/06/2007; AI 502392 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, j. 01/03/2005, DJ 01/04/2005, p. 26; RE 204735/RS, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. 30/05/2001, DJ 28/09/2001, p. 50. Nesse sentido também há julgados do TRF da 4ª Região: AR 200904000025863, 3ª Seção, rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, j. 12/04/2010, DE 22/04/2010, p. 638; AC 200304010296385, 6ª Turma, rel. Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, j. 14/12/2005, DJ 11/01/2006, p. 638; AC 200771990094892, 6ª Turma, rel. Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz, j. 21/11/2007, DE 13/12/2007.