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A dependência previdenciária recíproca entre homens e mulheres e a aplicabilidade do art. 201, V, da Constituição

Resumo:


  • O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) no Brasil tradicionalmente considerava a esposa como dependente previdenciária do marido, sem a reciprocidade.

  • A Constituição de 1988 alterou essa tradição, igualando homens e mulheres como dependentes previdenciários recíprocos, refletindo em todos os ramos jurídicos, inclusive no Direito Previdenciário.

  • O Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 201, V, da Constituição é autoaplicável, permitindo que homens e mulheres sejam considerados dependentes previdenciários recíprocos desde 1988, mesmo sem fonte de custeio prévia para benefícios previstos na Constituição.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A dependência previdenciária recíproca entre homens e mulheres no RGPS existe desde a Constituição de 1988 ou a partir da Lei 8.213/91?

No Regime Geral de Previdência Social (RGPS) brasileiro, desde o Decreto nº 35.448/54 (Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadorias e Pensões) até o Decreto nº 89.312/84 (Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS), refletia-se a tradição civilista do homem como pater famílias (ex: art. 233 do Código Civil de 1916) e, em consequência, a esposa era dependente previdenciária do marido, mas este (em regra) não era dependente dela.

Por exemplo, o art. 12, I, do Decreto nº 35.448/54, limitava os dependentes à esposa e ao marido inválido, além das filhas solteiras até os 21 anos, ou inválidas, e dos filhos até os 18 anos de idade ou inválidos. Do mesmo modo, o art. 10 do Decreto nº 89.312/84 inseria, entre os dependentes: (a) a esposa, o marido inválido e a companheira mantida há mais de 5 anos (inciso I); (b) o dependente designado, sem restrição para o sexo feminino, mas, para o sexo masculino permitia apenas o menor de 18 anos, o maior de 60 anos e o inválido (inciso II).

A Constituição de 1988 modificou essa tradição ao dispor que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§ 5º do art. 226), o que gerou reflexos em todos os ramos jurídicos, inclusive no Direito Previdenciário. Especificamente no RGPS, o art. 201, V, da Constituição, determinou que homens e mulheres fossem reciprocamente considerados como dependentes previdenciários: “V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º”. Mais do que isso, ao apartar a categoria “dependentes” dos cônjuges ou companheiros, atribuiu a estes uma relação de presunção que sobrepõe, mesmo, a dependência, ou gera para eles uma presunção dela.

Regulamentando a norma constitucional, o art. 16 da Lei nº 8.213/91 (e o art. 16 do Decreto nº 3.048/99) divide os dependentes dos segurados em três classes distintas: (a) cônjuge, companheiro e filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos, inválido, ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente (dependentes preferenciais); (b) os pais; (c) o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos, inválido, ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente.

Contudo, entre a promulgação da Constituição (05/10/1988) e a entrada em vigor da Lei nº 8.213/91 (25/07/1991) permaneceu vigente a CLPS, que não incluía o marido e o companheiro como dependentes previdenciários da esposa ou da companheira, o que criou polêmica sobre a data a partir da qual o marido ou companheiro tem direito à pensão por morte da mulher. Essa discussão está baseada no questionamento a respeito da efetiva autoaplicabilidade do art. 201, V, da Constituição: (a) de um lado, entende-se ser a referida norma autoaplicável, logo, o marido ou companheiro tem direito à pensão por morte, desde que o óbito da esposa tenha ocorrido a partir de 05/10/1988[i]; (b) de outro, defende-se a não aplicabilidade imediata do dispositivo constitucional, razão pela qual o homem só tem direito ao benefício em face do falecimento da mulher a partir da entrada em vigor da Lei nº 8.213/91, em 25/07/1991[ii].

Decorre, ainda, da discussão em torno da autoaplicabilidade da norma constitucional, outra questão importante: a necessidade de prévia fonte de custeio para a criação, majoração ou ampliação de prestação securitária, também determinada por outro dispositivo da Constituição. De acordo com o art. 195, § 5º, “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.

No julgamento do RE 385397, em 29/06/2007, o Supremo Tribunal Federal modificou seu entendimento e decidiu, por unanimidade, que o art. 201, V, da Constituição, é autoaplicável, muito embora estivesse se tratando, naquela hipótese, de regramento referente a Regime Próprio de Previdência:

“I. Recurso extraordinário: descabimento. Ausência de prequestionamento do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, tido por violado: incidência das Súmulas 282 e 356.

II. Pensão por morte de servidora pública estadual, ocorrida antes da EC 20/98: cônjuge varão: exigência de requisito de invalidez que afronta o princípio da isonomia.

1. Considerada a redação do artigo 40 da Constituição Federal antes da EC 20/98, em vigor na data do falecimento da servidora, que não faz remissão ao regime geral da previdência social, impossível a invocação tanto do texto do artigo 195, § 5º - exigência de fonte de custeio para a instituição de benefício -, quanto o do art. 201, V - inclusão automática do cônjuge, seja homem ou mulher, como beneficiário de pensão por morte.

2. No texto anterior à EC 20/98, a Constituição se preocupou apenas em definir a correspondência entre o valor da pensão e a totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, sem qualquer referência a outras questões, como, por exemplo os possíveis beneficiários da pensão por morte (Precedente: MS 21.540, Gallotti, RTJ 159/787).

3. No entanto, a lei estadual mineira, violando o princípio da igualdade do artigo 5º, I, da Constituição, exige do marido, para que perceba a pensão por morte da mulher, um requisito - o da invalidez - que, não se presume em relação à viúva, e que não foi objeto do acórdão do RE 204.193, 30.5.2001, Carlos Velloso, DJ 31.10.2002.

4. Nesse precedente, ficou evidenciado que o dado sociológico que se presume em favor da mulher é o da dependência econômica e não, a de invalidez, razão pela qual também não pode ela ser exigida do marido. Se a condição de invalidez revela, de modo inequívoco, a dependência econômica, a recíproca não é verdadeira; a condição de dependência econômica não implica declaração de invalidez.

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5. Agravo regimental provido, para conhecer do recurso extraordinário e negar-lhe provimento” (RE 385397 AgR/MG, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/06/2007, DJe 05/09/2007).

Em seu voto, o relator afastou o argumento da necessidade de fonte prévia de custeio sob o fundamento da aplicabilidade imediata e independente da fonte de custeio dos benefícios previstos na Constituição. Em outras palavras, apenas benefícios criados pela legislação infraconstitucional necessitam da prévia fonte de custeio, conforme já havia decidido o próprio STF em outras questões previdenciárias, como na pensão por morte integral para dependentes de servidores públicos:

“- Pensão por morte do servidor público. Aplicação do artigo 40, § 5º, da Constituição Federal.

2. Esta Corte já firmou entendimento segundo o qual esse dispositivo, que é autoaplicável, determina a fixação da pensão por morte do servidor público no valor correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos que ele percebia. Precedentes.

3. Inexigibilidade, por outro lado, da observância do artigo 195, § 5º, da Constituição Federal, quando o benefício é criado diretamente pela Constituição.

4. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE 220742/RS, 2ª Turma, rel. Min. Néri da Silveira, j. 03/03/1998, DJ 04/09/1998, p. 18).

Em seguida, o acórdão do RE 385397 passou a ser aplicado ao RGPS em julgamentos posteriores do STF:

“Agravo regimental no recurso extraordinário. Previdenciário. Pensão por morte. Cônjuge varão. Demonstração de invalidez. Princípio da isonomia. Aplicabilidade imediata do Regime Geral de Previdência Social. Precedentes.

1. A regra isonômica aplicada ao Regime Próprio de Previdência Social também se estende ao Regime Geral de Previdência Social.

2. O art. 201, inciso V, da Constituição Federal, que equiparou homens e mulheres para efeito de pensão por morte, tem aplicabilidade imediata e independe de fonte de custeio.

3. A Lei nº 8.213/91 apenas fixou o termo inicial para a aferição do benefício de pensão por morte.

4. Agravo regimental não provido” (RE 415861 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Dias Toffoli, j. 19/06/2012, DJe 31/07/2012).

Igualmente: RE 352744 AgR/SC, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01/03/2011, DJe 18/04/2011; RE 366246 AgR/PA, 1ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 01/04/2008, DJe 19/06/2008; RE 607907 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, j. 21/06/2011, DJe 29/07/2011.

Portanto, sob o entendimento principal de que a prévia fonte de custeio é dispensada para benefícios previdenciários previstos na própria Constituição, o STF passou a entender que o art. 201, V, da Constituição, é autoaplicável e que, desde 05 de outubro de 1988, homens e mulheres são dependentes previdenciários recíprocos, reformulando entendimento que vinha prevalecendo até então.


[i] Defendendo essa posição: “(...) 1- O art. 201, inc. V da Constituição Federal de 1988, é autoaplicável e estende o pensionamento por morte de segurada da Previdência Social, falecida após o advento da Constituição Federal de 88, ao cônjuge varão” (TRF2, AC 200202010175421/RJ, 5ª Turma, rel. Des. Federal Franca Neto, j. 25/05/2004, DJ 07/06/2004, p. 200). Igualmente, no TRF3: AC 200103990548249/SP, 7ª Turma, rel. Juiz Federal Antonio Cedenho, j. 26/06/2006, DJ 21/09/2006, p. 487; AC 200403990020621/SP, 7ª Turma, rel. Juíza Federal Leide Polo, j. 22/03/2004, DJ 15/02/2004, p. 325; AC 96030193070/SP, 5ª Turma, rel. Juiz Federal Johonsom Di Salvo, j. 26/03/2002, DJ 18/06/2002, p. 485. No TRF4: AC 50001469220104047004, 6ª Turma, rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, j. 28/11/2012, DE 29/11/2012. No TRF5: APELREEX 00003381720134059999, 2ª Turma, rel. Des. Federal Marco Bruno Miranda Clementino, j. 26/02/2013, DJE 28/02/2013. Na Turma Nacional de Uniformização: Processo de Uniformização 500059833, rel. Juiz Federal Paulo Ricardo Arena Filho, j. 25/04/2012, DOU 08/06/2012.

[ii] Sobre o assunto, o STF entendia não ser o dispositivo constitucional autoaplicável: “(...) I. - A extensão automática da pensão ao viúvo, em obséquio ao princípio da igualdade, em decorrência do falecimento da esposa-segurada, assim considerado aquele como dependente desta, exige lei específica, tendo em vista as disposições constitucionais inscritas no art. 195, caput, e seu § 5 º, e art. 201, V, da Constituição Federal” (RE 204193/RS, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. 30/05/2001, DJ 31/10/2002, p. 20). Ainda: AI 538673 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22/05/2007, DJe 28/06/2007; AI 502392 AgR/RS, 1ª Turma, rel. Min. Eros Grau, j. 01/03/2005, DJ 01/04/2005, p. 26; RE 204735/RS, Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, j. 30/05/2001, DJ 28/09/2001, p. 50. Nesse sentido também há julgados do TRF da 4ª Região: AR 200904000025863, 3ª Seção, rel. Des. Federal João Batista Pinto Silveira, j. 12/04/2010, DE 22/04/2010, p. 638; AC 200304010296385, 6ª Turma, rel. Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, j. 14/12/2005, DJ 11/01/2006, p. 638; AC 200771990094892, 6ª Turma, rel. Juiz Federal Sebastião Ogê Muniz, j. 21/11/2007, DE 13/12/2007.

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Sobre os autores
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Adir José da Silva Júnior

Mestre em Direito - PPGD/UFSC (Área de Concentração: Direito, Estado e Sociedade). Graduado em Ciências Jurídicas pela UFSC. Especialista em Direito Processual Civil (UNISUL), Gestão Pública (UNISUL) em Direito Previdenciário (CESUSC). Formado pela Escola Superior de Magistratura Federal de Santa Catarina (ESMAFESC). Analista Judiciário Federal. Ocupa a função de Diretor de Secretaria da 1a Vara Federal de Capão da Canoa-RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente ; SILVA JÚNIOR, Adir José. A dependência previdenciária recíproca entre homens e mulheres e a aplicabilidade do art. 201, V, da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3747, 4 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25244. Acesso em: 22 dez. 2024.

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