IV - FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DA ADVOCACIA PÚBLICA
4.1 - Os Princípios Constitucionais
O termo "princípio (do latim principium, principii) encerra a idéia de começo, origem, base. Em linguagem leiga é, de fato, ponto de partida e o fundamento (causa) de um processo qualquer"[24].
Os princípios são diretrizes, isto é, os nortes do ordenamento jurídico. Princípio é começo, alicerce, ponto de partida. A melhor doutrina presta grande auxílio na compreensão da matéria:
Num edifício, mais importante que as portas e as janelas são as vigas mestras e os alicerces. Caso destruirmos uma porta, ou uma janela não há abalo em sua estrutura, o que não ocorrerá se destruirmos os alicerces. Pois bem, tomadas as cautelas que as comparações impõem, estes alicerces e estas "vigas mestras " são os princípios jurídicos objeto de nosso estudo [25].
Geraldo Ataliba debruçou-se longamente sobre o tema dos princípios e apresentou farto material:
"O sistema jurídico – ao contrário de ser caótico e desordenado – tem profunda harmonia interna. Esta se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez submetem outras (...)" [26].
Roque Antonio Carrazza leciona:
"Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam" [27].
Pouco importa se implícito ou explícito, o que importa é se existe ou não. "De ressaltar, com Souto Maior Borges, que o princípio explícito não é necessariamente mais importante que o princípio implícito. Tudo vai depender do âmbito de abrangência de um e de outro, e não do fato de um estar melhor ou pior desvendado no texto jurídico"[28].
Os princípios implícitos "ficam subjacentes à dicção do produto legislado, suscitando um esforço de efeito indutivo para percebê-los e isolá-los [29]", salienta Celso Bastos que eles "vêm embutidos no contexto das diversas regras"[30].
Paulo de Barros Carvalho concorda com Roque Carrazza e com Souto Maior Borges, que esclarece que entre os princípios implícitos e os expressos "não se pode falar em supremacia"[31]. É dizer, ambos retiram fundamento de validade do mesmo texto jurídico.
No dizer sempre expressivo de Celso A. B. de Mello:
"Princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre as diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico"[32].
São (os princípios) encontráveis em todos escalões da "pirâmide jurídica". As normas devem ser aplicadas em sintonia com os princípios, dada sua função informadora dentro do ordenamento jurídico.
Os princípios jurídicos atuam como "vetores para soluções interpretativas" (C. A. Bandeira de Mello) e os constitucionais compelem o jurista a direcionar seu trabalho para as "idéias-matrizes" contidas na Constituição da República Federativa do Brasil.
"Roque Carrazza acompanha Geraldo Ataliba e Celso Antônio Bandeira de Mello na analogia de que o sistema jurídico ergue-se como um grande edifício, onde os princípios são comparados aos ‘alicerces’ às vigas mestras" [33].
Não há princípio isolado, eles apresentam-se sempre com outras normas e princípios que lhes dão equilíbrio e proporção e lhes reafirmam a importância.
Geraldo Ataliba também a isso se reportou, recordando Ferrara, para quem:
"... um princípio jurídico não existe isolado, mas acha-se em íntima conexão com outros princípios. O direito objetivo, de fato, não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados e subordinados, no qual cada um deles tem um lugar próprio’.
Os princípios, então, organizam plexos caóticos, não apenas no direito, mas em vários segmentos do conhecimento humano, permitindo sua sistematização"[34].
Diversos princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, vinculam a atividade do Procurador do Estado, como os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e indisponibilidade do interesse público.
No presente estudo abordaremos, mais especificamente, os princípios da indisponibilidade do interesse público e da legalidade.
4.2 - O Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público
O Princípio da Indisponibilidade do interesse público não encontra previsão expressa na Constituição Federal, fato que não é de maior relevância, já que como dissemos alhures com apoio na lição de juristas de escol, pouco importa se um princípio é implícito ou explícito.
Consoante o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da indisponibilidade do interesse público é:
"(...) um verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.
É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados" [35].
Constitui o princípio em testilha uma garantia em benefício não só da Administração Pública, mas também de toda a coletividade, inclusive dos administrados.
Mas no que consiste o que se convencionou chamar de interesse público primário? No interesse do Estado enquanto administrador? Ou no interesse da coletividade?
A doutrina italiana[36] apresenta a divisão do interesse público entre primário e secundário. O interesse público primário é o interesse da coletividade, pode ser identificado com o interesse da sociedade, é o interesse do bem geral, ou da observância da ordem jurídica a título de bem tratar o interesse da coletividade. Já o interesse público secundário é aquele do Estado enquanto administração, ou seja, "o modo como os órgãos governamentais vêem o interesse público"[37]. Nem sempre o primeiro coincide com o segundo. Caso haja incompatibilidade entre eles os interesses públicos secundários não são atendíveis, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello[38], sob pena da Administração Pública "trair sua missão própria razão de existir "[39].
Exemplo do interesse público secundário, segundo a melhor doutrina[40], consiste na conduta de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que devidas, ou de cobrar tributos indevidos. Nestas hipóteses a Administração Pública tem o dever de indenizar, já que a ordem jurídica, assim dispõe, não obstante o interesse do governante ser em sentido contrário.
Vale lembrar que :
"A indisponibilidade dos interesses públicos significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis" [41].
As precisas lições transcritas nos permitem concluir que não há outra opção ao agente público que não seja agir sempre buscando atender o interesse público primário, é dizer a vontade estatal consagrada na lei, por isto se diz que a "Administração e suas pessoas auxiliares têm caráter meramente instrumental"[42].
Nota-se que não está ao talente do agente público optar pelo interesse público primário ou secundário, ele está adstrito, estritamente vinculado ao interesse público primário, sem qualquer discricionariedade.
4.3 - O Princípio da Legalidade na Administração
No Estado de Direito todos estão submetidos à Constituição e as leis, ninguém está acima delas, seja qual for a condição econômica, agente público ou não, todos devem respeito aos superiores ditames constitucionais e legais. Nele, as regras jurídicas devem ser obedecidas por todos, governantes e governados, independente do credo, posição social, cor, raça.
Nesse cenário, "o princípio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do direito público e a doutrina da separação de poderes, foi erigido, muitas vezes, em ‘cerne essencial’ do Estado de direito. Postulava, por sua vez, dois princípios fundamentais : o princípio da supremacia ou prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) e o princípio da reserva de lei (Vorbehalt des Gesetzes). Estes princípios permanecem válidos, pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo os direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado (daí a reserva de lei). De uma forma genérica, o princípio da supremacia da lei e o princípio da reserva da lei apontam para a vinculação político-constitucional do poder executivo"[43].
No Estado brasileiro, o art. 37 da Constituição Federal determina que:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade... ".
Destarte, a Administração Pública deve dar cumprimento à vontade popular, contida na lei[44], conforme o mandamento constitucional em destaque.
Enquanto o particular tem direito a fazer tudo aquilo que a lei não proíbe[45], a Administração somente pode fazer o que a lei lhe determina ou autoriza, antecipadamente. Trata-se do chamado princípio da conformidade com as normas legais, explicado por Roque Antonio Carrazza[46], que exige que a Administração Pública só atue "depois de uma intervenção do legislador que haja traçado o modelo prefigurativo de suas ações futuras"[47].
Para assegurar que a Administração Pública adote conduta pautada pelo primado da legalidade, é imperiosa a existência de mecanismos de controle interno, a par do controle externo exercido pelo Poder Judiciário, com fulcro no princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
E, dentre as instituições incumbidas de zelar pela prevalência da legalidade, dentro da perspectiva de controle interno da atividade administrativa, destaca-se a Procuradoria Geral do Estado, incumbida expressamente das tarefas de prestar consultoria jurídica e promover a representação judicial das respectivas unidades federadas (art. 132, CF).
Nessa ótica, buscamos, a seguir, explicitar a correlação lógica existente entre os princípios constitucionais acima apontados e a necessária garantia da independência e autonomia funcionais dos Membros da Advocacia Pública.
V – A INDEPENDÊNCIA E A AUTONOMIA FUNCIONAL DO PROCURADOR DO ESTADO COMO DECORRÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO E DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA
O Procurador do Estado no exercício de seu mister não age em nome próprio, mas sim do ente federativo que representa. Trata-se de membro da Administração Pública e, nesta qualidade, somente pode atuar secundum legem, nunca praeter legem ou contra legem[48], buscando sempre atender ao interesse público primário, já que não atua em nome próprio.
Não está ao talante do Procurador do Estado optar pelo interesse público primário ou secundário, ele está adstrito, estritamente vinculado ao interesse público primário, sem qualquer discricionariedade.
Bernardo Sesta salienta: "mas a característica especial da Advocacia do Estado sobressai, evidentemente, no que diz respeito ao patrocínio judicial do interesse público, porque nessa atividade, os agentes dela encarregados atuam em nome do Estado" [49].
Como bem ressalta Marco Túlio de Carvalho Rocha :
"É suficiente a referência ao Estado para se inferir que no exercício de suas atribuições constitucionais têm os Procuradores de Estado o compromisso maior com a ordem constitucional, seus princípios, suas instituições. Logo, a vontade manifestada pelo administrador, somente interfere na atividade dos representantes judiciais dos Estados, enquanto se mantém nos estritos limites da autorização legal ou constitucional"[50].
Acrescentamos às precisas lições transcritas que o compromisso assumido pelo Procurador do Estado é com a Constituição Federal e com a lei com ela compatível, não com o Governante [51].
A questão que surge é se o Procurador do Estado tem a independência e a autonomia funcional. Está ele adstrito somente aos princípios e as regras constitucionais e legais, no exercício de seu mister? Pode ele agir até contrariamente à vontade do seu superior hierárquico dentro da carreira ou contrariar a vontade do chefe do Poder Executivo?
Antes de adentrar à polêmica, é imprescindível diferenciar a autonomia da independência funcional e, para tanto, recorremos à lição de Hugo Nigro Mazzilli, nos termos do qual a autonomia funcional consiste na
É dizer, os Procuradores do Estado têm autonomia funcional, protegendo sua atuação contra a interferência de pessoas ou instituições de fora da Procuradoria Geral do Estado. A independência funcional consiste na liberdade no exercício da atuação do Procurador, sem intervenção de outros órgãos ou membros da própria instituição.
A autonomia funcional caracteriza-se pela "insujeição das procuraturas constitucionais a qualquer outro Poder do Estado em tudo o que tange ao exercício das funções essenciais à Justiça"[54].
A independência e a autonomia funcional são princípios constitucionais implícitos, e como já dissemos alhures não há hierarquia entre princípios implícitos e explícitos
[55].A interpretação dos artigos
1º, 37, "caput", e 132, "caput", todos da Constituição Federal, e do princípio da indisponibilidade do interesse público, nos leva a tal conclusão.A República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, nele todas as pessoas, governantes e governados, sujeitam-se ao império da Constituição e das leis. Todos devem respeito às normas válidas e vigentes.
O Procurador do Estado no exercício de seu múnus, como representante da Administração Pública em juízo, deve respeito aos mandamentos constitucionais e legais, e não à vontade do governante em desconformidade com o ordenamento jurídico
[56], já que é Procurador do Estado e não do Governador. Seu compromisso é como a Constituição e com as leis.Bernardo Sesta afirma:
"O Advogado do Estado, no exercício de sua função básica, não fala ao administrador para assessorá-lo; fala pelo Estado no processo em que este for parte, vinculando-o.
Usando da mesma alocução figurativa antes empregada, o Advogado do Estado, atuando em juízo, expressa, no processo, a vontade do Estado"[57].
O Procurador do Estado representa a Administração Pública Estadual, que
deve apenas cumprir a vontade popular, contida na lei [58], conforme o mandamento do artigo 37, "caput", da Constituição Federal, e não a uma manifestação de vontade unipessoal, autônoma, incompatível com a Constituição e com as leis, externada pelo chefe do Poder Executivo, ou pelo seu superior hierárquico.Impende salientar que o princípio da legalidade deve ser interpretado atribuindo-lhe a máxima efetividade possível [59].
Vale lembrar que caso o Procurador do Estado pratique ato inconstitucional ou ilegal ele estará, em tese, sujeito a responsabilização civil[60], sem prejuízo de responsabilidade criminal e administrativa, conforme o caso.
Ao argumento que o Procurador do Estado somente pode se recusar a cumprir ordem manifestamente ilegal, como qualquer agente público sujeito a relação de hierarquia, contrapomos que o princípio da indisponibilidade do interesse público primário e o princípio da legalidade o impedem de praticar qualquer ato inconstitucional ou ilegal, já que deve prevalecer o bem comum, a paz social, sem a prática de qualquer ato que viole a ordem jurídica, ato este que no futuro será passível de anulação e ensejará ressarcimento ao erário, havendo lesão.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que é excluída a relação hierárquica com relação a "determinadas atividades que, por sua própria natureza, são incompatíveis com uma determinação de comportamento por parte do superior hierárquico"[61], dentre elas, ao nosso ver, está a atividade exercida pelo Procurador do Estado.
A independência e a autonomia funcional do Procurador do Estado, Advogado Público, foi consagrada, outrossim, na Lei 8.906/94, que por várias vezes dispõe sobre a liberdade no exercício da profissão, sem subordinação hierárquica:
"Artigo 6º. Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho".
O artigo 7º do mesmo estatuto legal dispõe:
"São direitos do advogado:
I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional".
O artigo 18 da Lei 8.906/94, igualmente reforça a independência do Advogado Público:
"A relação de emprego, na qualidade de advogado, não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia".
O Advogado Público deve exercer a profissão com liberdade, nos termos das normas legais [62] e com independência [63].
A lei é clara " nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão"[64].
A doutrina tem adotado a tese da independência e autonomia funcional dos Procuradores do Estado.
Josaphat Marinho já defendia em 1983 a independência do Procurador do Estado, esclarecendo que "não lhe cabe cumprir ordens, mas oficiar nos processos, judiciais ou administrativos, com autonomia de deliberação, respeitado o direito ou o interesse sob sua guarda profissional. A medida de sua atuação encontra-se na lei e no amparo do patrimônio ou do interesse público, e não no arbítrio ou no preconceito dos agentes da Administração"[65].
Patrícia Helena Massa relata que Geraldo Ataliba já anunciava, no IX Congresso Nacional de Procuradores do Estado:
"O advogado do Estado não está obrigado ao patrocínio de interesses secundários da Administração, mas sim, apenas, à defesa do interesse primário, que mereceu tutela legal. Constitui-se, assim, a medida de sua parcialidade/independência"[66].
Maurício Antonio Ribeiro Lopes entende que a Emenda Constitucional n. 19 "elegeu definitivamente as Procuradorias Gerais dos Estados, inclusive, em órgãos de nível constitucional, no que procedeu com acerto em vista do papel de especial relevância que desempenham aqueles profissionais. Faltou dotá-los de garantias análogas àquelas previstas à magistratura e ao Ministério Público, mas acreditamos que devem ser estendidas as mesmas regras de tratamento a essas carreiras em vista de sua nova posição jurídica" [67]. Dentre as garantias conferidas às carreiras mencionadas pelo autor está a independência e autonomia funcional.
Sérgio Andréa Ferreira defende a tese da independência funcional dos Procuradores do Estado, bem como de todos os membros das carreiras indispensáveis à administração da justiça, pelo fato de serem "agentes políticos"[68]. Segundo o doutrinador as funções essenciais à Justiça, foram inseridas na Constituição Federal, no Título IV, "Da Organização dos Poderes", em capítulo independente, ao lado dos capítulos que tratam dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Acrescenta o citado doutrinador: "ao caracterizar cada um desses organismos políticos, a CF caracteriza-os como instituições, e, assim, como estruturas dotadas de unidade e independência (no art. 127, sobre o MP, tais atributos são expressamente referidos). Aliás, essa individualidade, essa identidade, essa independência é que levaram a retirar essas instituições do âmbito dos Poderes Políticos tradicionais. Mesmo a Advocacia-Geral da União e as Procuradorias locais, nas suas funções de representação das pessoas jurídicas político-federativas, e de consultoria assessoramento jurídico do Poder Executivo, fazem-no com independência funcional e de fora desse Poder ou de qualquer um dos demais"[69].
Derly Barreto e Silva Filho entende que a autonomia funcional "há de ser entendida como a prerrogativa que assegura aos advogados públicos o exercício da função pública de consultoria e representação dos entes políticos independente de subordinação hierárquica (seja a outro Poder, seja aos próprios chefes ou órgãos colegiados da Advocacia Pública) ou de qualquer outro expediente (como manipulação de remuneração) que tencione interferir, dificultar ou impedir o seu poder-dever de oficiar de acordo com a sua consciência e a sua missão de velar e defender os interesses públicos primários, sem receio de "desagradar" quem quer que seja, Chefes de Poderes Executivos, Ministros, Secretários, Advogado Geral da União, Procuradores Gerais de Estados, órgãos colegiados das Procuraturas (v.g., conselhos), chefia mediatas ou imediatas, magistrados ou parlamentares" [70].
Marco Túlio de Carvalho Rocha em excelente tese não discorda:
"A independência funcional dos Procuradores de Estado resulta também das características peculiares à própria advocacia: beneficia-lhes a garantia estampada no art. 133 da Constituição da República, isto é, são invioláveis por seus atos e manifestações no exercício da profissão. Por outro lado, a regulamentação legal da advocacia reflete sua aversão à hierarquia (cf. Lei 8.906, Estatuto da Advocacia e da O.A.B., art. 6º). A lei ao reafirmar a independência do advogado, garantiu a existência da advocacia pois aquele traço lhe é ínsito, como já ensinava o Procurador-Geral do Estado de Minas Gerais, Prof. JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO: "independência quer dizer, gramatical e filosoficamente, liberdade, livre arbítrio, não sujeição a outros, nem a idéias de outros.
E isso mesmo é o que a advocacia naturalmente acaba proporcionando aos que a praticam, porque o advogado a ninguém está sujeito, de ninguém depende, é livre de se determinar, eis que a sua sujeição, via de regra, é a muitos, colocados em situação de se não tornarem um só, e apenas está constrangido a se determinar pelas idéias, concepções, princípios ou rumos que a sua própria inteligência lhe dita como aconselháveis"[71].
O Ministro Neri da Silveira já externou entendimento favorável à independência funcional dos Procuradores de Estado:
"Penso que o art. 132 da Constituição quis, relativamente à Advocacia de Estado, no âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal, conferir às Procuradorias não só a representatividade judicial, mas, também, o exame da legalidade dos atos, e o fez com a preocupação de atribuir essa função a servidores concursados e detentores do predicamento da efetividade. O grande objetivo foi o exame da legalidade dos atos do Governo, da Administração Estadual, a ser feito por um órgão cujos ocupantes, concursados, detenham as garantias funcionais. Isso conduz à independência funcional, para o bom controle da legalidade interna, da orientação da administração quanto a seus atos, em ordem a que esses não se pratiquem tão-só de acordo com a vontade do administrador, mas também conforme a lei.
Não quis a Constituição que o exame da legalidade dos atos da Administração Estadual se fizesse por servidores não efetivos. Daí o sentido de conferir aos Procuradores dos Estados — que devem se compor em carreira a ser todos concursados — não só a defesa judicial, a representação judicial do Estado, mas também a consultoria, a assistência jurídica. De tal maneira, um Procurador pode afirmar que um ato de Secretário, do Governador não está correspondendo à lei, sem nenhum temor de poder vir a ser exonerado, como admissível suceder se ocupasse um cargo em comissão"[72].
Norma Kyriakos leciona que são prerrogativas do Procurador do Estado, decorrentes do Estatuto da OAB, Lei 8.906/94 e da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Lei estadual 478/86, a "independência de pensamento e de expressão"[73].
Guilherme José Purvin de Figueiredo e Marcos Ribeiro de Barros asseveram que "é ampla a liberdade conferida ao Advogado Público para atuar da forma que entender mais eficaz na defesa da ordem constitucional e do patrimônio público" [74].
Além dos argumentos acima expostos existem outros.
Como o Procurador do Estado poderá atuar atendendo aos mandamentos constitucionais dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, e eficiência sem liberdade profissional, sujeito a ordens e ingerências do chefe do Executivo, que poderá interferir diretamente, ou indiretamente, na cobrança de crédito tributário, v.g., em execução fiscal ajuizada em face de seus financiadores de campanha, beneficiando-os, ou até prejudicando seus adversários, com cobranças tributárias ilegais.
Sem as imprescindíveis independência e autonomia funcionais como poderá o Procurador do Estado propor as ações previstas pela Lei de Improbidade Administrativa [75] contra o Governador do Estado ou seu Secretário ?
Adotar a tese contrária a ora defendida, inviabiliza o livre exercício das atribuições constitucionais e legais do Procurador do Estado.
As lições da doutrina e os exemplos acima citados nos levam a concluir que a independência e autonomia funcional além de garantia do Procurador do Estado, constituem garantia dos administrados quanto a uma atuação na representação judicial do Estado proba, legal, e impessoal, livre de perseguições e favorecimentos, expressamente e implicitamente vedados pelo ordenamento jurídico.