“Enquanto existirem incertezas quanto a uma questão perigosa para a qual ainda há uma possibilidade sucesso, não hesitemos, não pensemos senão na resistência; assim como não devemos nos desesperar com o tempo enquanto ainda houver no céu um canto azul”. (Arthur Schopenhauer, 1851).
Resumo: A presente dissertação consiste em uma investigação crítica acerca dos fundamentos e das principais implicações teóricas e empíricas da utilização da teoria da actio libera in causa, sobretudo no caso específico dos crimes culposos, enquanto ficção jurídica que permite a antecipação do momento em que se constata a imputabilidade do agente. Há um enfoque, outrossim, para as elucubrações doutrinárias no tocante à legitimidade de tal teoria e as eventuais hipóteses nas quais lançar mão dela poderia representar a manutenção de deletérios resquícios de responsabilidade penal objetiva em nosso sistema, buscando-se trazer à baila as diferentes visões lançadas pelos autores de maior destaque em direito penal sobre esse tema.
Palavras-chave: direito penal, teoria da actio libera in causa, imputabilidade, estados de inconsciência, embriaguez, tipicidade culposa, responsabilidade penal objetiva, culpa versari in re illicita.
Sumário: LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS. 1. INTRODUÇÃO.2. OBJETIVO. 3. METODOLOGIA. 4. REFERENCIAL TEÓRICO.5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO. 5.1. ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 5.1.1. ANTIGUIDADE. 5.1.2. DIREITO CANÔNICO. 5.1.3. RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO. 5.2. FUNDAMENTO. 5.2.1. TEORIA DO DOLO INICIAL E ANTECEDENTE. 5.2.2. TEORIA DO DOLO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO.. 5.2.3. TEORIA DA CAUSALIDADE MEDIATA. 5.2.4. TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES. 5.2.5. TEORIA DO INSTRUMENTO DE SI MESMO .5.3. CONCEITO E ATUAL COMPREENSÃO DO TEMA. 5.4. LIMITES.. 5.4.1. VOLUNTARIEDADE DO ATO ANTECEDENTE. 5.4.2. NEXO DE CAUSALIDADE.. 5.4.3. PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO. 5.4.5. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA VONTADE RESIDUAL. 5.5. CRÍTICAS. 5.6.1. DO APEGO À REALIDADE COMO GARANTIA. 5.6.2. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS
LISTAS DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Ac. – Acórdão
CF – Constituição Federal
CP – Código Penal
CPP – Código de Processo Penal
e.g. – exempli gratia
g.n. – grifo nosso
HC – Habeas Corpus
i.e. – isto é
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
v.g. – verbi gratia
1. INTRODUÇÃO
Muito estudada em matéria de culpabilidade, a teoria da actio libera in causa constitui uma das mais importantes ficções jurídicas relacionadas ao Direito Penal, permitindo a punição dos agentes que, no momento da prática da conduta, estavam totalmente privados de sua capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento.
Embora tal teoria seja modernamente concebida para abranger os estados de inconsciência em geral, sua maior aplicação prática – que subsiste larga nos dias de hoje – diz respeito ao contexto da embriaguez preordenada e da não acidental.
A teoria redunda em desconsiderar a situação de inculpabilidade em que se encontra o agente no momento da embriaguez, tomando por base o momento anterior, em que o agente colocou-se voluntariamente no estado de embriaguez, para o fim de que se possa, então, imputar a ele a prática da conduta criminosa.
Nesse sentido, como se trata de uma forma de se deslocar artificialmente o momento de análise da imputabilidade, em prejuízo do réu e ignorando sua condição psíquica do momento da prática da conduta, importa ao estudioso das ciências criminais perquirir acerca da legitimidade e dos limites à utilização dessa fictio iuris, na medida em que ela amplia substancialmente o poder punitivo do Estado, em detrimento da liberdade individual.
Bem por isso, buscou-se, através da presente dissertação, investigar a possível relação entre actio libera in causa e responsabilidade penal objetiva, sobretudo quanto aos crimes culposos, nas hipóteses em que, no momento em que o agente decide se colocar em situação de inimputabilidade, não lhe era previsível sua posterior prática delituosa.
Por fim, menciona-se o entendimento dos principais autores favoráveis e contrários ao uso da teoria, explicitando, para os que a admitem, quais seriam seus limites, visando a possibilitar uma aplicação uniforme e racional da técnica dogmática.
2. OBJETIVO
O objetivo desta dissertação é compreender a fundamentação teórica construída em torno da actio libera in causa, bem como as consequências de sua aplicação prática, a fim de que se possam identificar os casos em que sua aplicação é alvo de críticas por parte da doutrina.
3. METODOLOGIA
A presente dissertação constitui-se em uma pesquisa explicativa, com a obtenção dos respectivos dados através de pesquisa bibliográfica, recorrendo-se à doutrina e à jurisprudência para melhor elucidar o tema em análise.
4. REFERENCIAL TEÓRICO
Cuida-se aqui da controvertida temática ligada à possibilidade de punição das denominadas “actiones libera in causa sive ad libertatem relatae”, isto é, condutas praticadas por agentes após terem se colocado em situação de não imputabilidade.
Inicialmente, parece haver certo consenso quanto à punibilidade naquelas hipóteses em que a inconsciência é propositadamente induzida pelo agente, tal como na embriaguez preordenada, com finalidade de, nas palavras de Aníbal Bruno, “melhor praticar o crime, animado-se de coragem ou sufocando os contra-estímulos que se oponham à ação criminosa, ou para acobertar-se com alguma dirimente ou um atenuante” (Direito penal, parte geral, tomo 2º: fato punível, 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005).
Por outro lado, alguma polêmica doutrinária se instala no tocante aos casos em que a colocação em estado de inconsciência se deu de maneira culposa, havendo respeitável minoria entendendo pela impossibilidade de punição nestes casos, a exemplo de Katzenstein (Die Straflosigkeit der “actio libera in causa”. Editora J. Guttentag, 1901).
A maior celeuma acerca do tema, porém, certamente se refere à exigência ou não, para fins de aplicação da teoria e viabilidade de punição, de o agente, no momento em que se entorpece, ter previsibilidade de que poderia se entregar à prática de crimes naquela condição.
Dentre os que dispensam esse requisito, há inclusive aqueles que enxergam em tal hipótese uma exceção em que a responsabilidade penal objetiva seria admitida em nosso sistema jurídico-penal, “por ausência de outra opção para punir o agente” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 323).
Em sentido contrário, parcela da doutrina entende como imprescindível, seja no dolo ou na culpa, que o resultado provocado tenha sido querido ou previsto pelo agente, quando ainda estava consciente, para que seja possível aplicar a actio libera in causa, somente assim se podendo atribuir a ele o fato típico cometido enquanto se encontrava em situação de completa inculpabilidade.
5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
5.1. ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
5.1.1. ANTIGUIDADE
À época do Direito Romano, muito embora ainda não se falasse em teoria da actio libera in causa, os estados de perturbação transitória da consciência eram sim-plesmente desconsiderados para fins de análise da imputabilidade.[1]
A doutrina cita algumas passagens em que tais perturbações – sobretudo a embriaguez, é claro – eram referidas nas fontes romanistas como uma causa genérica de diminuição da pena, podendo inclusive evitar a imposição da pena capital.[2]
Há ainda quem, a exemplo de Binding, aponte a figura delituosa da fuga de prisioneiros facilitada pela embriaguez ou negligência de quem os conduzisse, referida no Digesto (D. XLVIII, 3 De custodis rerum, 12), como um típico caso de actio libera in causa culposa, conforme bem lembra Narcélio de Queirós.[3]
Como se vê, conquanto não constituíssem excludente de responsabilização, as alterações nos estados de consciência eram levadas em conta pelos romanos em sede de graduação da pena e, em alguns casos, até para agravar a pena imposta ao agente.
Nesse sentido, temos valioso ensinamento de Valdir Snick:
“Concluindo, pois, pode-se afirmar que no direito romano, a embriaguez não constituía uma dirimente, no que se refere ao fato em si de embriagar-se, independentemente de qualquer outro ato de delituoso, constituía, só por isso, causa de punição, e somente em casos raros, e particulares, podia ser considerado como atenuante de alguns delitos, mas, em regra, essas hipóteses não se incluíam entre os previstos como ‘actio libera in causa.’” [4]
De fato, os jurisconsultos romanos, nas breves incursões feitas no tema da embriaguez de que se tem registro, compreendiam-na como um “ímpeto intermediário entre o dolo e o caso fortuito” [5]. Tal era o sentir de Cícero, que dizia “Restituit proelium insaniens. Atque iste modo quidem licet dicere, utilem vinolentiam ad fortitudem, utilem etiam dementiam quod insani et ebrii multa faciunt saepe vehementius” (Tusculane, IV, cap. 23).
Sob outro giro, aponta Damásio de Jesus que os primeiros vestígios dessa teoria remontariam a Aristóteles, o qual, conforme a sua célebre obra Magna Moral, entendia o ato de embriaguez como um ato reprovável em si mesmo, de modo que não haveria óbice para a punição do ébrio que praticasse crimes após ter se entorpecido voluntariamente. Verbis:
“Sempre que por ignorância se pratica um delito o sujeito não se conduz voluntariamente, a não ser aquele que cometa seja causa da ignorância, como acontece com os ébrios, os quais causam danos ou injúria, sendo causa da ignorância.” [6]
Dessa forma, cremos ser possível concluir que os antigos não chegaram a construir bases teóricas sólidas para a punição das condutas delituosas praticadas em estados de completo torpor, as quais eram mesmo assim objeto de reprimenda estatal, por razões de necessidade social.
5.1.2. DIREITO CANÔNICO
É somente com o direito canônico que começa a se desenvolver alguma distinção entre os vários estados capazes de subtrair a consciência do agente.[7]
Por exemplo, alterações provocadas pela febre e o sonambulismo passam a ser equiparados à loucura, não havendo sequer que se cogitar, nesses casos, de toda a problemática relativa à preordenação.[8]
No que toca ao caso específico da embriaguez, embora o direito canônico considerasse o ato de quem deliberadamente se entorpece como algo reprovável em si mesmo, também reconhecia a impossibilidade de se atribuir ao agente os eventos deli-tuosos desencadeados por ele enquanto estava inconsciente.
Nesse ponto, é frequente a menção à passagem bíblica de Ló, que, visão de Santo Agostinho, não teria cometido pecado ao praticar incesto com suas filhas quando estava embriagado, porquanto ignorava, no momento do ato, sua condição de parente, somente podendo ser culpado por ter abusado do vinho.[9]
Demonstravam os canonistas em geral, portanto, forte apego ao aspecto subjetivo da questão, tanto que desconsideravam os atos praticados durante o ápice dos efeitos do álcool, ressalvando a punibilidade pelo fato de o agente, enquanto agia de maneira livre e consciente, ter optado por se embriagar.
Tanto que, se um clérigo fosse flagrado em estado de embriaguez, receberia a pena de suspensão do ofício durante trinta dias e, no caso de habitualidade dessa prática, poderia sofrer até mesmo a perda de seu cargo, sanção mais severa do âmbito clerical.[10]
Dessa forma, é correto dizer que a doutrina canônica não vislumbrava a possibilidade de responsabilização pelas ações de quem se encontrava em situação de total inimputabilidade, mas tão somente pelo ato de se embriagar voluntariamente.
Contrariamente, havia posição minoritária de São Tomás, citada por Sznick:
“São Tomás se contrapunha a essa opinião, sustentando, ao contrário, que os dois fatos cometidos (o delito cometido e a embriaguez) eram menos grave que o fato isolado, cometido sem o uso de qualquer bebida alcoólica, enquanto que, paralelamente, dois pecados não são sempre mais graves que um único pecado e, portanto, ao deliquente embriagado devia aplica-se uma pena inferior àquela prevista por um só delito.” [11]
De acordo com a última concepção, a embriaguez poderia ser considerada uma causa genérica de redução da pena para o delito causado sob seus efeitos, salvo se o agente tivesse se colocado em tal condição com a prévia intenção de, com isso, praticar o crime, raciocínio este que já apresenta alguns dos fundamentos da teoria da actio libera in causa.
5.1.3. RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO: OS COMENTADORES
O fenômeno comumente denominado como renascimento do direito romano tomou espaço em solo europeu, durante os séculos XI e XII, e se refere ao surgimento das primeiras universidades, no âmbito das quais foram retomados os estudos acerca do direito romano – esquecido durante quase todo o período pós-clássico, em razão da grande influência exercida pelo direito germânico após as invasões bárbaras –, através da análise detida do Corpus Iuris Civilis de Justiniano, primeiramente pela escola dos glosadores e, em seguida, pelos comentadores.[12]
Nesse contexto, destacou-se o movimento universitário italiano, sobretudo o desenvolvido na Universidade de Bolonha, responsável por larga contribuição para a evolução das ciências jurídicas, fazendo com que o Direito se transformasse em um dos principais ingredientes da sociedade medieval.[13]
Entre os séculos XIII e XIV, a escola dos comentadores italianos deu início aos primeiros estudos realmente científicos sobre os estados de perturbação transitória da consciência e, deixando claro o pioneirismo de tais pesquisadores, aduz Narcélio de Queirós:
“Já nos referimos anteriormente ao vulto dos estudos dos crimina-listas práticos italianos dos séculos XIII e XIV sobre as investi-gações em torno da exata apreciação legal dos estados de tran-sitória turbação da consciência – e nunca serão por demais louva-das a segurança, a perspicácia e penetração técnica com que se houveram aqueles geniais precursores da elaboração doutrinária desse complexo capítulo do Direito Penal.”[14]
Seguindo linha semelhante à que fora adotada pelo direito canônico, a maior parte desses comentadores reputavam imprescindível, para fins de imputação de crime, que o agente estivesse agindo com consciência e vontade livre no momento em que provocou o resultado, de modo que consideravam como verdadeiras dirimentes de culpabilidade as perturbações psíquicas advindas de intoxicação culposa ou acidental (“ebriosus non punitur si delinquit, nisi dolose embriaverit”).[15]
Ficariam isentos de pena, portanto, aqueles que incorressem em conduta típica durante alteração transitória de consciência, como a embriaguez e o sono, salvo se tivessem dolosamente induzido tal estado em si mesmos para assim delinquir.
Havia à época, contudo, quem divergisse da concepção tradicional do direito canônico, a exemplo de Bártolo (1313-1357) e Baldo (1327-1406), para os quais basta-ria que a embriaguez tivesse sido voluntária para que se pudesse punir as ações prati-cadas inconsciente-mente, sendo que, de acordo com Narcélio de Queirós, tais autores “firmaram as bases da teoria da actio libera in causa, na sua primitiva formulação”.[16]
Esses dois autores firmaram o entendimento de que, se o ato de se colocar em situação de inimputabilidade houvesse sido voluntariamente praticado pelo agente, embora não pudesse ele responder criminalmente pelo fato causado durante o período de inconsciência, poderia sim ser punido pelo ato antecedente, porque o cometeu no pleno gozo de suas faculdades mentais.
Posteriormente, outros estudiosos aderiram a essa nova concepção, tam-bém admitindo a punibilidade das actiones liberae in causa decorrentes de embriaguez culposa, como fazia Farinacio, o qual assim escrevia: “ebriosus punitur non ob delictum commissum sed ob culpam quam commisit se inebriando”.[17]
Desse modo, já havia, entre os comentadores (ou pós-glosadores), corrente doutrinária concebendo a possibilidade de “justificar a punição, como delito culposo, das ações praticadas nos estados resultantes de uma atitude voluntária, mas não propositada”.[18]
Tal solução é muito semelhante à que hoje se adota entre a maioria dos penalistas, tendo a doutrina modernamente majoritária ampliado a abrangência da teoria da actio libera in causa para fins de punir não apenas as ações praticadas durante a embriaguez preordenada, mas também as decorrentes de embriaguez voluntária, seja dolosa ou culposa.
O assunto só voltou a ser estudado detidamente muito tempo depois dessa época, e desta vez muito mais voltado para o caso específico do ébrio, por volta do século XVI, quando um grupo de juristas italianos, com destaque para Julius Clarus, aperfeiçoaram a classificação das modalidades de embriaguez, estabelecendo regimes jurídicos distintos para a embriaguez completa e para a incompleta.
Sobre o tema, comenta Valdir Sznick:
“Foi somente no século XVI, a partir de Claro que perfecionando-se a ciência se operou uma distinção de diversos casos. Nesse período, fez escola o conceito que, em relação a uma embriaguez completa, a responsabilidade a título de dolo para o delito cometido, devesse substituir por aquele a título de culpa.” [19]
Assim, para esses autores, o agente que houvesse sido totalmente embria-gado em virtude de caso fortuito ou de força maior não poderia ser punido pelos atos cometidos sob os efeitos do álcool, uma vez que ausentes culpa ou dolo no momento do ato antecedente.
Entendiam eles, porém, que aquele que houvesse se entorpecido de modo voluntário e nessa condição se entregasse à pratica delituosa “era responsável a título de culpa e não de dolo, porque não havia procurado colocar-se naquele estado com a finalidade de cometer um delito”.[20]
De outra parte, sustentavam eles ainda que, se esse mesmo agente tivesse possibilidade de prever que o estado de torpor o levaria a delinquir e mesmo assim se entregasse ao álcool, responderia normalmente pelo delito, a título de dolo e sem fazer jus a qualquer atenuante, ficando equiparado, dessa forma, à situação da embriaguez preordenada.
Nesse sentido, confira-se o sempre abalizado ensinamento de Narcélio de Queirós:
“Nos casos, propriamente, de embriaguez, não só voluntária, mas preordenada à prática do delito, ou, pelo menos quando tivesse havido previsão do resultado, os práticos entendiam que nenhuma condescendência era possível, uma vez que o agente, no primeiro caso, tinha feito de si mesmo o instrumento para a realização do delito, pretendendo livrar-se das consequências de seu ato; e, na segunda hipótese, sabendo por experiência que poderia ser levado a cometer algum crime no estado de inconsciência, não tinha o agente usado da prudência necessária para evitar esse estado, em que foi possível a ação criminosa.” [21]
Dessarte, observamos que, graças ao avanço dogmático conquistado pelos comentadores italianos no interior das primeiras universidades, já se afigurava, no final da Idade Média, a base da classificação que hoje se utiliza para explicar o fenômeno da embriaguez.
Posteriormente, essas noções foram complementadas e aperfeiçoadas pelo eminente penalista italiano Francesco Carrara, no século XIX, de modo a chegarmos finalmente à classificação contemporânea[22], a saber:
i) embriaguez acidental – é aquela provocada sem culpa, sendo decorrente de caso fortuito ou força maior. Se completa, isenta o agente de pena; se incompleta, o agente responde pelo crime com pena atenuada.
ii) embriaguez não acidental – pode ser voluntária (dolosa) ou culposa e em nenhum dos casos, seja completa ou incompleta, exclui a imputabilidade do agente.
iii) embriaguez preordenada – o agente faz-se instrumento de si mesmo para praticar o delito, merecendo pena agravada.
Diante de tudo quanto foi exposto, cremos ter demonstrado a contento a origem e a forma pela qual se deu a evolução da teoria da actio libera in causa ao longo da Antiguidade e da Idade Média, dando-se o devido destaque para a inolvidável contribuição dos estudos desenvolvidos pelos doutrinadores italianos no âmbito dos primeiros movimentos universitários.
5.2. FUNDAMENTO
À luz de tal contexto, podemos passar à análise dos diversos fundamentos concebidos em doutrina para justificar a aplicação da teoria da actio libera in causa, a fim de viabilizar a punição dos atos praticados durante momentos transitórios de total ausência discernimento.
Ao longo da história, a punição dos atos cometidos em estado de inconsciên-cia sempre constituiu um imperativo de política criminal, uma vez que parte considerá-vel dos delitos em geral eram – e ainda são – cometidos sob a absoluta influência de substâncias entorpecentes, sem mencionar outras hipóteses de inconsciência menos comuns como o sonambulismo e a hipnose.
A grande celeuma surgia quando o torpor era tal que capaz subtrair todo o discernimento do agente, de modo a torná-lo totalmente inimputável no momento da execução do crime, circunstância que, a priori, impossibilita sua punição, uma vez que não tinha o agente, nesse instante, consciência da ilicitude, tampouco podia se deter-minar de acordo com seu possível entendimento.
Diante de tão palpitante problemática e levando em conta as ponderosas necessidades de ordem prática, a doutrina constantemente buscou, ao longo do tempo, fundamentos que possibilitassem a punição desses atos.
Ocorre que um dos pressupostos básicos da teoria da imputação é o de que exista, por parte do agente, no momento da realização da atividade típica (ação ou omissão), capacidade de entender e de querer, ou seja, discernimento suficiente para perceber que sua conduta está contrariando a ordem jurídica.
Sobre a noção de imputabilidade, confira-se a lição de Damásio de Jesus:
“De acordo com a teoria da imputabilidade moral, o homem é ser inteligente e livre e por isso responsável pelos atos praticados. Inver-samente, quem não tem esses atributos é inimputável. Sendo livre, tem condições de escolher entre o bem e o mal. Escolhendo uma conduta que lesa interesses jurídicos alheios, deve sofrer as consequências de seu comportamento.” [23]
Em outras palavras, temos que a imputabilidade deve existir no instante da execução, não sendo possível falar em uma imputabilidade subsequente, razão pela qual o agente que subtrai a vida de outrem enquanto acometido por doença mental que lhe inviabilizava a compreensão do ilícito não será considerado culpável, ainda que depois venha a readquirir o pleno gozo de suas capacidades mentais.
Nesse sentido, observa Narcélio de Queiros:
“Sem dúvida, à primeira vista, sempre pareceu a muitos inadmissível se pudesse punir alguém por um fato praticado num estado em que a vontade estivesse ausente ou coacta. Aí não existira no indivíduo, mesmo mentalmente desenvolvido, aquela possibilidade de conhecer a natureza, as condições e as conseqüências de seu ato, que é pressuposto da responsabilidade penal.” [24]
Assim sendo, seria de se concluir, em uma análise perfunctória, pela impossibilidade de se atribuir responsabilidade penal a alguém que, em razão de determinada causa transitória, encontrava-se, no momento da prática delitiva, completamente destituído do juízo necessário para a percepção da realidade que o cercava.
Além disso, outro verdadeiro dogma da teoria da imputação está na exigência de que esteja presente, durante a realização da atividade ilícita, o elemento subjetivo do tipo, isto é, dolo ou culpa, a fim de evitar a tão odiosa responsabilidade penal objetiva e afastando-se, por conseguinte, as figuras do dolo antecedente e do dolo subsequente.
No que toca à dimensão temporal do dolo, ensina Juarez Cirino dos Santos:
“O dolo, como programa subjetivo do crime, deve existir durante a realização da ação típica, (...). Não existe dolo anterior, nem dolo posterior à realização da ação típica: as situações referidas como dolo antecedente (a arma empunhada por B para ser usada contra A, depois de prévia conversação, dispara acidentalmente e mata a vítima) ou como dolo subsequente (ao reconhecer um inimigo na vítima de acidente de trânsito, o autor se alegra com o resultado) são hipóteses de fatos imprudentes.” [25]
Também por esse caminho, a única conclusão possível, a priori, parece ser igualmente no sentido da impossibilidade de responsabilização pelas actiones liberae in causa, pois, nesse caso, o agente se encontra em estado de completo torpor no momento da prática do verbo núcleo do tipo, não se podendo dizer que ele agia com consciência e vontade na realização da conduta (dolo), tampouco que agia de maneira não diligente voluntariamente (culpa).
Cuida-se aqui do conteúdo do princípio da culpabilidade, também conhecido como princípio da responsabilidade subjetiva, segundo o qual somente se pode atribuir determinado resultado antijurídico a quem tenha concorrido dolosa ou culposamente para ele.
Acerca de tão relevante postulado, confira-se o brilhante ensinamento de Luiz Flávio Gomes, Alice Bianchini e Antonio García-Pablos de Molina:
“Por força do princípio da responsabilidade subjetiva não basta que o fato seja materialmente causado pelo agente: para que se possa fazê-lo responsável se requer, ademais, que o fato tenha sido querido (dolo) ou, pelo menos, que tenha sido previsível o resultado” [26]
Mais adiante, arrematam os referidos autores:
“O fundamento desta exigência (da responsabilidade subjetiva) reside na própria função do Direito Penal: de proteger bens jurídicos por meio da ameaça do castigo, da dissuasão. Só tem sentido castigar fatos desejáveis ou previsíveis” [27]
Por fim, a necessária presença de consciência durante a prática delituosa exsurge do próprio conceito de conduta enquanto elemento integrante do fato típico, sem o qual não há que se falar em crime, sendo tida como “a ação ou omissão humana consciente e dirigida a uma determinada finalidade”.[28]
Como se vê, a punibilidade das actiones liberae in causa, quando analisada sob diferentes ângulos da teoria do delito, encontra uma série de obstáculos: seja em virtude da teoria da imputação, seja por força do princípio da culpabilidade ou mesmo por ausência de conduta, não seria possível atribuir ao agente as ações típicas praticadas durante estados transitórios de inconsciência, sob pena de caracterização de responsabilidade penal objetiva, repudiada por nosso sistema jurídico-penal.
Foi precisamente em virtude desses obstáculos que surgiram os vários fun-damentos propugnados pela doutrina para justificar a aplicação da actio libera in causa, buscando-se assim legitimar a punibilidade dos comportamentos típicos levados a cabo durante estados de transitória subtração da consciência do agente.
Em geral, a solução encontrada pela maior parte dos penalistas foi tentar, de algum modo, relacionar a ação delitiva praticada inconscientemente ao ato precedente de se colocar em tal situação, antecipando a análise da imputabilidade para o momento anterior em que a vontade do agente era livre e psiquicamente normal.
Entretanto, ao estudioso do Direito Penal importa ainda indagar qual seria o substrato teórico utilizado pela doutrina para justificar tão sensível modificação nas bases teoria do delito, sobretudo porque operada sempre em desfavor do réu.
Essa análise revela especial importância tendo em conta que, a depender do fundamento adotado, amplia-se ou restringe-se o campo de incidência da actio libera in causa, podendo a preferência de um ou de outro redundar, assim, na possibilidade ou impossibilidade de punição de determinado ato.
Sabiamente, lembra-nos Narcélio de Queirós que as necessidades político-criminais de se dar uma solução jurídica aos novos casos práticos, ao mesmo tempo em que expandiam a aplicação da actio libera in causa, “também determinavam o surgimento de numerosos outros fundamentos doutrinários para a mesma teoria (...)”.[29]
Ocorre que, conforme dá a entender o mesmo autor, a punição pautada exclusivamente em critérios pragmáticos de defesa social, enquanto “eterna fonte de soluções simplistas”, não pode mais ser admitida nos tempos atuais, sob pena de regressarmos ao estágio absolutista e à irracionalidade na aplicação das penas.[30]
Daí o esforço empreendido pela doutrina no sentido de encontrar fundamen-tos efetivamente jurídicos para embasar a actio libera in causa, não se podendo perder de vista os princípios básicos da teoria do delito e as limitações por eles impostas.
Investigando a origem e a evolução dessa fictio iuris, é possível identificar ao menos cinco fundamentos para sua aplicação, a saber: teoria do dolo inicial e antece-dente teoria do dolo no processo de execução, teoria da causalidade mediata, teoria da equivalência dos antecedentes e teoria do instrumento de si mesmo. Passaremos ago-ra a analisá-los um a um detidamente.
5.2.1. TEORIA DO DOLO INICIAL E ANTECEDENTE
Os adeptos da teoria do dolo inicial e antecedente entendem que a punição das actiones liberae in causa somente seria possível se o agente, no momento em que espontaneamente se colocou em estado de inimputabilidade, já quisesse a realização daquele resultado produzido posteriormente. Explica Valdir Sznick:
“Aqueles que defendem esta teoria requerem a presença do dolo no início do processo executivo, para que a causa, uma vez posta voluntariamente, se desenvolva e opere durante todo o processo criminoso até a verificação do resultado (Maggiore). O agente se colo-cou em um estado de incapacidade material e o quis, tal conhecimento deixa imutável a essência do dolo que acompanha todo o iter, e exclui que possa ocorrer a figura típica do constrangimento físico.” [31]
Desse modo, tendo o indivíduo representado mentalmente aquele resultado antijurídico como possível e tendo se lançado de maneira voluntária ao estado de inconsciência para o fim de produzi-lo, nada impediria a antecipação da análise da imputabilidade para o momento antecedente, viabilizando, assim, a responsabilização pela prática delituosa, a título de dolo.
Importante notar que, conforme se pode facilmente deduzir, a adoção dessa teoria implica a restrição da actio libera in causa aos casos de embriaguez preorde-nada, excluindo de seu âmbito de aplicação, por conseguinte, a embriaguez voluntária e a embriaguez culposa.
Amolda-se ao exemplo clássico do guarda-chaves que adormece para o fim de provocar um acidente na linha férrea, muito lembrado pela doutrina, inclusive por Cleber Masson:
“Essa teoria foi desenvolvida para a embriaguez preordenada, e, para ela se encaixa perfeitamente. O agente embriaga-se com a intenção de cometer um crime em estado de inconsciência, e assim o faz. O dolo estava presente quando arquitetou o crime, e por esse elemento subjetivo deve ser punido. Vale lembrar o clássico exemplo do guarda-chaves que se embriaga com a intenção de não acionar as chaves à chegada do trem, produzindo a catástrofe. No momento de beber, era ele inimputável, mas já não o era no momento do desastre.” [32]
Tal fundamento era apontado por Maggiore como o mais adequado. Além dele, também o penalista alemão Robert Von Rippel seguia pela mesma senda, confor-me apontado por Narcélio de Queirós:
“Um dos mais modernos especialistas alemães, o professor Robert von Rippel, no seu recente Tratado de Direito Penal, estudando o conceito e as condições da imputabilidade, faz notar que, devendo ela existir no momento do fato ação ou omissão), é, entretanto, indiferente que, ao tempo do aparecimento do resultado, ainda exista, ou não. Nessa ob-servação funda ele a justificativa da punibilidade das actiones liberae in causa, que entende como ‘ações que são livres na resolução, não na execução’ (‘Handlungen, di im Entschluss – nicht in der Ausführung – frei sind’).” [33]
Nessa lógica, a teoria da actio libera in causa serviria para antecipar a imputação do resultado ilícito para o momento em que o agente, de maneira livre e conscien-te, deliberou a prática criminosa, isto é, para o momento em que, por exemplo, decidiu se embriagar, conduta esta que, não fosse pela ficção jurídica, não poderia ser punida, por configurar mero ato preparatório.
5.2.2. TEORIA DO DOLO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO
De acordo com os doutrinadores que defendem a teoria do dolo no processo de execução, para que seja possível a responsabilização do agente pelos resultados por ele produzidos em estado de consciência, bastaria que o dolo estivesse presente em qualquer dos momentos do processo de execução do delito.
Alegavam tais defensores, portanto, que o dolo inicial do agente que se coloca em situação de inimputabilidade se alongaria por todo o processo executório a partir dali desencadeado, de modo a atingir, por fim, o resultado antijurídico provocado inconscientemente.
Valdir Sznick esclarece:
“O agente, embriagando-se, inicia o processo executivo do delito, completa os atos preparatórios, com a consequência de que o próprio processo sofra um alargamento: a causa adequada ao resultado – aquela de beber – é logicamente inserida no iter criminoso, porquanto dirigida à realização do ato.” [34]
Em outras palavras, entendiam que poderia o ato antecedente daquele que livremente se embriaga para cometer crimes, através da aplicação da actio libera in causa, ser considerado como se verdadeiro ato executório fosse, possibilitando, assim, a responsabilização criminal pelo ato subsequente causado durante o estado de pertur-bação transitória da consciência.
Essa era concepção formulada por Manzini, destacado penalista italiano, para o qual somente poderia se admitir a aplicação da actio libera in causa nos casos específicos de:
“fatti liberamente voluti, ma verificatisi mentre l’autore trovasi in istato di non umputabillità: di quei fatti, cioè, commesi in uno stato d’incoscienza o di sub-coscienza (sonno comune e alcoolico, sonnambulismo, suggestione ipnotica, ubbriachezza, ecc.), o di coazione, provocati di proposito dall’agente per facilitare l’esecuzione del reato o per prepararsi una scusa.” [35]
O dolo no processo executivo é indicado como fundamento correto para justificar a punibilidade das actione liberae in causa não só por Manzini, mas também por Massari e pela maioria dos penalistas italianos do século XX, os quais, justamente por esse motivo, também concluem que a aplicação da fórmula da actio libera in causa deveria ficar restrita aos casos de embriaguez preordenada, como aponta Narcélio de Queirós em sua obra.[36]
Sob esta visão estrita da actio libera in causa, a embriaguez completa acidental e a não acidental – seja ela voluntária ou culposa – conduziriam sempre à inimputabilidade; ao passo em que os atos subsequentes à embriaguez preordenada (completa ou incompleta) poderiam perfeitamente ser punidos, mediante a aplicação da actio libera in causa.
Por fim, há alguns escritores franceses, a exemplo de Bertauld, que também advogavam a inimputabilidade dos crimes decorrentes de embriaguez completa culpo-sa equiparando-a às hipóteses de loucura momentânea.[37]
5.2.3. TEORIA DA CAUSALIDADE MEDIATA
O advento da teoria da causalidade mediata representou relevante marco no sentido da atual compreensão da actio libera in causa, na medida em que redundou em um evidente alargamento de seu campo de aplicação, antes restrito aos eventos decorrentes da embriaguez preordenada.
Segundo essa teoria, o agente que, atuando de maneira livre e consciente, coloca-se voluntariamente em estado de inconsciência ou para ele se deixa arrastar, dá causa – ainda que indiretamente – aos resultados que depois venha a praticar nessa condição, podendo por eles ser responsabilizado através da actio libera in causa.
O maior artífice da corrente doutrinária em apreço foi Francesco Carrara, insigne jurista toscano responsável por fornecer os primeiros argumentos efetivamente jurídicos para fundamentar a punibilidade dos atos subsequentes à embriaguez não acidental completa.
O pensamento de Carrara é sintetizado por Narcélio de Queiroz nos seguin-tes termos:
“Como consequência lógica desse agudo raciocínio, aplicando aos demais casos os princípios gerais da teoria do dolo e da culpa, firmou o egrégio mestre de Pisa o critério a seguir na solução dos demais casos acima formulados: A embriaguez voluntária, se completa, exclui qualquer responsabilidade por dolo, mas deixa subsistir a culpa. Se incompleta, apenas acarreta o reconhecimento de atenuantes. Quando acidental e completa, não se pode falar em imputação, mas se tal não se dá, e resta ao agente uma consciência contemporânea do ato, mantém-se a imputação do fato como doloso, salvo na possibilidade de diminuição do grau de dolo, como na embriaguez incompleta, na culposa e na voluntária.” [38]
Ainda no que toca ao entendimento desse ilustre mestre italiano, aduz Valdir Sznick:
“Não se imputa – escreve Carrara – aquilo que fez o ébrio mas aquilo que fez o homem de mente sã, ao qual como única causa é atribuído o delito. O homem embriagado é o sujeito ativo secundário do delito, instrumento material do impulso recebido (Programa, cit. pág. 343).”
Uma vez dispensada a exigência de que o elemento subjetivo esteja presen-te durante todo o processo de execução, torna-se perfeitamente possível realizar a imputação do resultado-crime, analisando-se dolo ou culpa no momento antecedente.
A concepção da causalidade mediata é adotada por diversos autores de renome, tais como Mayer e, inclusive, pelo próprio Narcélio de Queirós, conforme se depreende do seguinte trecho de sua valiosa obra:
“Entretanto, muito ao contrário, o conceito de fato doloso não requer a permanência do dolo durante toda a fase executiva do delito, contato que esse fato se origine de uma atividade consciente e intencional e seja o desdobramento e o resultado dela. Na actio libera in causa dolosa preside o dolo apenas um momento da atividade executiva, justamente aquele momento inicial que põe em movimento a cadeia causal produtora do evento. A questão só pode ser apreciada aqui, em face dos princípios da causalidade voluntária, e para o reconhecimento de sua existência não é necessária a permanência da vontade originária durante todo o processo de execução do crime.” [39]
Ainda de acordo com Narcélio de Queirós, esse mesmo raciocínio acerca da causalidade nos crimes dolosos poderia ser integralmente transportado para os crimes culposos, nada impedindo que a estes últimos também se aplique a fórmula da actio libera in causa. Verbis:
“Todas essas considerações sobre a significação e valor da relação de causalidade nos delitos dolosos tem perfeito cabimento no que diz também respeito aos crimes culposos, no quais não é preciso que a conduta imprudente, negligente etc. do agente permaneça até o momento da produção do evento, bastando que lhe dê causa, mediata ou imediatamente.” [40]
Sob a óptica de Mayer, o fenômeno das actiones liberae in causa poderia ser explicado através da cisão do processo executivo em dois momentos distintos, ligados casualmente entre si. No momento antecedente, há um ato inicial cuja execução é livre e consciente, tomando espaço enquanto o agente ainda estava plenamente imputável; ao passo em que, no momento subsequente, ocorre um ato secundário, o qual, muito embora praticado em estado de ausência de vontade, guarda um nexo de causalidade com o primeiro e, por isso, plenamente imputável ao agente. Daí falar o referido autor em “ação de dois graus”. [41]
Em suma, de acordo com os seguidores da teoria da causalidade mediata, pouco importa se é direto ou indireto o nexo de causalidade existente entre o resultado antijurídico e o ato antecedente praticado de forma livre e consciente: se a ação ou omissão produzida inconscientemente de algum modo decorreu do ato anterior, seja este doloso ou culposo, é possível aplicar a fórmula da actio libera in causa para fins de responsabilização criminal do agente.
Contudo, faz Narcélio de Queirós a relevante ressalva de que o resultado lesivo somente poderia ser atribuído ao agente se houvesse previsibilidade no tocante à sua ocorrência.
Não bastaria, nesta medida, que a colocação em estado de inconsciência tivesse dado causa ao evento ilícito subsequente: a responsabilização penal somente seria possível se aquele resultado estivesse dentro da linha de desdobramento causal natural ou esperada da conduta.
Explica o autor:
“A apreciação do grau de sucessão em que o evento esteja para com o ato inicial deve atender ao ‘id quod plerunque accidet’, por meio da observação e da experiência, para que se possam apurar todas as circunstâncias dos fatos semelhantes e dos casos análogos, com indispensáveis recursos fornecidos por algumas ciências auxiliares do Direito Penal.” [42]
Também Massari condicionava a punibilidade das actiones liberae in causa a esse requisito indispensável.[43]
O objetivo de tais autores ao exigir previsibilidade por parte do agente era refutar os argumentos de certos detratores da actio libera in causa no sentido de que a punição por atos inconscientes seria nítida hipótese de responsabilidade penal objetiva.
5.2.4. TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES
Partindo-se do postulado clássico segundo o qual “a causa da causa também é causa do que foi causado” (“causa causae est causa causati”), os adeptos dessa teoria concluem que o sujeito que voluntariamente se coloca em estado de inimputabilidade deu causa à causa do resultado ilícito posteriormente produzido, não havendo, bem por isso, qualquer óbice à sua responsabilização.
Em verdade, tais autores se aproveitaram da própria teoria utilizada à época para definir o nexo de causalidade entre conduta e resultado (“conditio sine qua non”), criada por Glaser e depois desenvolvida por Stuart Mill e Von Bury, em 1873. [44]
Vale lembrar que essa foi a teoria adotada, como regra, pelo Código Penal vigente, conforme se depreende a parte final de seu artigo 13, o qual considera como causa “a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Nesse sentido, para descobrir se determinado acontecimento se caracteriza ou não como causa, deveria ser empregado um processo cognitivo conhecido como eliminação hipotética de Thyrén, pelo qual seria considerado como causa todo o evento que, caso suprimido mentalmente, faria desaparecer o resultado lesivo.
Lançam tais autores, portanto, uma visão bastante ampliativa da relação de causalidade, de modo que identificam como causa do ilícito toda e qualquer ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Ora, transplantando-se tal linha de pensamento às actiones liberae in causa, a punibilidade do agente pelos atos subsequentes à colocação voluntária em situação de inconsciência surge como algo natural e lógico, uma vez que, não tivesse ele se deixado arrastar para tal estado, o resultado superveniente jamais teria ocorrido.
Esse raciocínio é muito bem explicado por Valdir Sznick:
“O agente vem punido não pelo fato cometido em estado de incapacidade mas por um fato anterior que o colocou nessa situação; da ação não livre (‘causa causati’) se chega à ação livre que a precedeu (‘causa causae’) – (Carmignani, Bettiol, von Liszt).” [45]
Aquele que, durante perturbação transitória da consciência dá causa a um determinado resultado, desde que tenha voluntariamente ingressado em tal estado, deu causa à causa daquele resultado, podendo ser responsabilizado por ele.
Ademais, a utilização de tal fundamento também permite aquele já referido alargamento da actio libera in causa, para abranger não só a embriaguez preordenada, como também a voluntária e a culposa.
Seguindo essa linha, a imputação do fato se dará a título de dolo ou de culpa, a depender do elemento subjetivo do agente no momento antecedente, como bem explica Sebastian Soler:
“A imputação do fato realizado durante o tempo de inimputabilidade retroage ao estado anterior, e conforme seja o conteúdo subjetivo desse ato, será imputado a título de dolo ou culpa. Se um sujeito se embriaga até a inconsciência para não temer e atrever-se contra determinada pessoa que quer matar, é plenamente imputável quanto ao homicídio, ainda quando o crime tenha sido cometido no estado atual de incons-ciência.” [46]
Partidário de tal teoria, diz Bettiol que “aquele que determina voluntariamente uma situação da qual deriva um evento lesivo deve ser chamado a responder pelo próprio evento, independentemente do fato de que o evento é previsto e querido”.[47]
Como se percebe, os adeptos da equivalência dos antecedentes concordam com os defensores da causalidade mediata no que toca à punibilidade das actiones liberae in causae não só dolosas, mas também culposas. Divergem os primeiros dos segundos, porém, no que diz respeito à exigência de previsibilidade do agente.
De fato, como deixa bem claro Bettiol no excerto supracitado, bastaria, de acordo com a teoria da conditio sine qua non, que o ato antecedente tenha sido causa daquilo que causou o ato subsequente, pouco importando se este último estava ou não situado dentro da linha de desdobramento causal normal do primeiro.
5.2.5. TEORIA DO INSTRUMENTO DE SI MESMO
Diz essa teoria que o agente que voluntariamente se coloca em estado de inconsciência visando, com isso, cometer determinado injusto penal, está fazendo de si mesmo um instrumento para a obtenção do resultado danoso, sendo perfeitamente possível responsabilizá-lo.
Resume Valdir Sznick:
“Em síntese, o agente começa a cometer o delito quando se coloca em estado de incapacidade pré-ordenada: a determinação da incapacidade é um comportamento positivo que é início de uma atividade, já essa mesma uma ação típica.” [48]
Os defensores dessa teoria equiparam as actiones liberae in causa às hipóteses de autoria mediata, argumentando que, se o indivíduo que se vale de um terceiro inimputável para praticar determinado crime responde por ele como se o autor material do fato fosse, também deve ser igualmente punido aquele que se vale de si próprio em estado de inimputabilidade para esse mesmo fim.
Essa comparação essa citada pelo tão citado Binding, o qual ensinava que “os casos das actiones são, para os delitos comissivos, precisamente como aqueles em que a pessoa responsável se utiliza de uma terceira, ou seja, de uma pessoa irresponsável para conseguir sua intenção delituosa”.[49]
Destarte, quando o agente quer o resultado e, agindo com consciência e vontade, se coloca em estado de inimputabilidade transitória para o fim de atingi-lo, está simplesmente escolhendo um meio executivo dentre os vários possíveis naquela situação concreta, fazendo de si mesmo instrumento da própria deliberação criminosa, tornando-se, para Sauer, “instrumento inimputável de um agente mediato imputável”.[50]
Isso porque, como provocar em si mesmo a inconsciência já configura um ato idôneo e suficiente para se chegar ao resultado desejado, conclui-se que já há, desde a ocasião do ato antecedente, início de execução.
Essa também era a posição de Beling, conforme lembra Narcélio de Queirós:
“Ernst Beling, o notável jurista recentemente desaparecido, talvez o mais puro representante do moderno dogmatismo alemão, construtor da célebre teoria da tipicidade do delito, que tantas discussões e críticas tem provocado, ao tratar, nos seus ‘Elementos do Direito Penal’, do conceito de autoria mediata (‘mittelbare Täterschaft’), expôs, sucintamente, a teoria da actio libera in causa: Alguém se coloca, a si mesmo, num estado de ausência de vontade, ou de não-imputabilidade, e realiza nesse estado a atividade, que produz o evento. Aqui o seu próprio corpo desempenha um papel de instrumento. A primeira atividade, isto é, a colocação no estado de inimputabilidade, fica, assim, correspondente ao tipo (‘tatbestandsmässig’) de um delito (homicídio, etc.), e é punível, uma vez que concorram as outras condições de punibilidade, especialmente o dolo ou a culpa.” [51]
Mezger é outro insigne representante da teoria de si mesmo, trazendo como exemplo o clássico caso da mãe que, com o intuito de sufocar seu próprio filho recém-nascido, deita-se todas as noites próxima ao bebê, na esperança de, durante o sono, rolar por cima dele, sufocando-o.[52]
Importante aqui notar que, muito embora os referidos autores da teoria do instrumento de si mesmo não falem expressamente na necessidade de verificação de um nexo de causalidade entre o ato antecedente (colocar-se propositadamente em estado de inconsciência) e o resultado subsequente, tal exigência já decorre da própria teoria do crime, mais especificamente de seu primeiro substrato (tipicidade).
Também é conveniente notar que, muito embora a fórmula do instrumento de si mesmo tenha sido toda estruturada para os casos de inequívoco dolo no ato antecedente (tal como ocorre na embriaguez preordenada), há entre os seus adeptos aqueles que a aplicam também para os casos de causação culposa. É o exemplo de Heinrich B. Gerland, que entendia que serem as “actiones liberae in causa puníveis, e podem ser cometidas tanto dolosamente como culposamente”.[53]
Entretanto, seguro é dizer que a grande maioria dos seguidores da teoria ora em apreço restringiam a aplicação da actio libera in causa aos casos de preorde-nação, uma vez que, por óbvio, somente faz de si mesmo instrumento para a obtenção de um resultado aquele que efetivamente deseja aquele resultado ou, ao menos, assume o risco de produzi-lo.
5.3. CONCEITO E ATUAL COMPREENSÃO DO TEMA
Uma vez superados os necessários esclarecimentos acerca da origem e dos diferentes fundamentos da actio libera in causa, enquanto pressupostos lógicos para a perfeita compreensão do tema e de sua extensão, podemos agora passar à análise do seu conceito.
À guisa dessas considerações, a melhor definição encontrada na doutrina pátria continua sendo a fornecida por Narcélio de Queirós, tanto que sistematicamente reproduzida em diversos manuais:
“São os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda quando o podia ou devia prever”.[54]
Destaca-se também a definição de Philipp Allfeld, em sua atualização da obra de Hugo Meyer:
“Nesses casos da chamada actio libera in causa, ou ‘actio ad libertatarm relata’, a conduta do não imputável é, de certa maneira, o meio que a pessoa no estado de inimputabilidade, no momento decisivo para a sua responsabilidade, pôs em realização” [55]
Em nossa visão, a actio libera in causa pode ser entendida como a fictio iuris in pejus através da qual se antecipa a aferição da imputabilidade e do próprio elemento subjetivo do agente para o momento em que este colocou a si mesmo em situação de transitória inconsciência, a fim de que se possa responsabilizá-lo pelos resultados a que deu causa durante esse estado.
Conforme se pode notar, a definição dada leva em conta a moderna acepção dessa teoria, não ficando restrita aos casos de inconsciência preordenada à prática delitiva, porquanto compreendida também a causação culposa dessa inimputabilidade passageira.
Aliás, tal orientação foi expressamente adotada pela Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de 1940, mantida, nesse ponto, pela Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, verbis:
“Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substâncias de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da ‘actio libera in causa ad libertatem relata’, que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência.”
Com base em tais parâmetros, Cleber Masson enuncia o seguinte conceito para descrever os efeitos da ficção jurídica ora estudada:
“Invoca-se essa teoria, portanto, para justificar a punição do sujeito que, ao tempo da conduta, encontrava-se em estado de inconsciência. Possibilita-se a análise do dolo ou da culpa, revelados no momento em que se embriagou. São os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever.” [56]
Com frequente menção ao fundamento da equivalência dos antecedentes, essa concepção mais abrangente da actio libera in causa é a majoritariamente adotada pela doutrina contemporânea, que não vislumbra óbices para a transferência não só do dolo, mas também da culpa, do momento anterior para o momento do resultado lesivo subsequente.
É nesse mesmo sentido o escólio de Guilherme de Souza Nucci. O eminente doutrinador paulista exemplifica:
“Portanto, qualquer indivíduo, resolvendo encorajar-se para cometer um delito qualquer, ingere substância entorpecente para colocar-se, propositadamente, em situação de inimputabilidade, deve responder pelo que fez dolosamente – afinal, o elemento subjetivo estava presente no ato de ingerir a bebida ou droga. Por outro lado, quando o agente, sabendo que irá dirigir um veículo, por exemplo, bebe antes de fazê-lo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e matar um passante. Responderá por homicídio culposo, pois o elemento subjetivo do crime projeta-se do momento da ingestão da bebida para o instante do delito.” [57]
De outra parte, respeitável minoria doutrinária resiste à referida ampliação modernamente implementada, entendendo que a aplicabilidade da actio libera in causa deveria continuar restrita aos delitos preordenados, de modo a negar, por derradeiro, a punição dos atos transitórios de inconsciência decorrentes de embriaguez voluntária ou culposa. Como representantes desse último posicionamento, podemos citar Frederico Marques, Magalhães Noronha, Paulo José da Costa Júnior, Jair Leonardo Lopes, Munhoz Neto e Jürgen Baumann.[58]
Genericamente, contudo, pode-se dizer que a compreensão da essência do instituto da actio libera in causa exsurge da própria análise etimológica dos vocábulos que a compõem: “actio” (referente à conduta, seja comissiva ou omissiva) “libera” (livre) “in causa” (na causa, isto é, no momento antecedente do qual se originou o resultado).
5.3. LIMITES
Conforme se depreende dos diferentes conceitos trazidos à baila, a ficção jurídica da actio libera in causa é empregada necessariamente em desfavor do réu, na medida em que possibilita a punição de agentes que, de acordo com os postulados clássicos da teoria do delito, não poderiam ser responsabilizados.
Por isso mesmo, a actio libera in causa representa um aumento significativo do espectro do poder punitivo estatal, restringindo, por conseguinte, as liberdades individuais dos cidadãos.
À luz de um Estado Democrático de Direito, intui-se que o emprego de tal artifício deve se dar de maneira estrita, racional e proporcional, em conformidade com o núcleo essencial dos direitos fundamentais e sem afrontar os princípios constitucionais penais, sob pena de arbitrariedade e ilegitimidade da ingerência estatal.
Surge aqui, portanto, o imperativo de desvelar e compreender os limites impostos à aplicação dessa teoria, com a finalidade de racionalizar a intervenção do poder punitivo do Estado, o que denota a própria concepção do Direito Penal enquanto barreira de contenção a excessos punitivistas.
Vale denotar, também nesse ponto, a importância de se delinear o funda-mento da teoria em estudo, na medida em que dificultosa se torna sua limitação diante de abordagens simplistas inicialmente dadas por parcela da doutrina para justificar a punição das actiones liberae in causa como se mera exceção à responsabilidade subjetiva fossem, imposta por questões pragmáticas de política criminal.
5.3.1. VOLUNTARIEDADE DO ATO ANTECEDENTE
Conforme já estudado, é pacífico o entendimento no sentido de que a teoria da actio libera in causa é inaplicável aos casos de embriaguez acidental, partindo-se do pressuposto de que o Direito Penal não deve se ocupar de fortuitos, na medida em que qualquer pena seria, nesse caso, inócua para quaisquer fins de prevenção e repressão.
Já aqui se identifica um primeiro limite à utilização da teoria em estudo, mesmo porque, ainda que se antecipe a análise da imputabilidade, não é possível identificar, no momento da prática do ato antecedente, a presença de dolo ou culpa.
Dessa forma, se a colocação em estado de inconsciência decorreu de caso fortuito ou de força maior, os resultados lesivos produzidos pelo agente em tal condição serão atípicos, não havendo que se falar em qualquer forma de responsabilização criminal, sob pena de violação ao princípio da culpabilidade.
A punição do fortuito, ensinam Luiz Flávio Gomes, Alice Biachini e Antonio García-Pablos de Molina, vai de encontro ao aspecto político-criminal da culpabilidade:
“Existe consenso quanto à impossibilidade de castigar determinadas situações, precisamente pela incapacidade de motivação do autor (seja no sentido de evitar a conduta proibida, seja no de fazer a conduta determinada): isso acontece com quem atua no erro de proibição (CP, art. 21), com quem atua em situação de inexigibilidade de conduta diversa (coação moral irresistível, obediência hierárquica, excesso exculpante etc.) ou com quem não tinha capacidade de culpabilidade (inimputabilidade). Em todas essas situações coincidem as exigências da culpabilidade com as exigências de prevenção. É dizer: a pena se torna desnecessária em termos de prevenção, em razão da incapacida-de de motivação do autor.” [59]
Por isso mesmo, o ato antecedente – no caso especial da embriaguez, o ato de ingerir bebidas alcoólicas – não pode ser considerado um ato punível em si mesmo, tal como era enxergado pelo direito canônico, que admitia verdadeira hipótese de culpa versari in re illicita.
A rigor, castigar a simples colocação em estado de inconsciência, sem que o agente tenha dolo ou culpa relativamente ao resultado posterior, importaria aplicação de pena puramente exemplar, destituída de qualquer caráter repressivo à conduta praticada, o que não pode ser admitido, conforme explicam os autores supracitados:
“Nesses casos, pelo contrário, a culpabilidade opera como limite às exigências de prevenção impedindo que, por razões de “exemplaridade”, a pena supere aquela que seja merecida pelo autor. Aqui é que reside o obstáculo intransponível (político-criminalmente falando) para a imposição da chamada “pena exemplar”. Para se evitar que uma determinada conduta venha a se repetir, o juiz, muitas vezes, se sente compelido a impor ao agente uma pena flagrantemente desproporcional. Por razões de prevenção geral supõe o juiz que tal pena exemplar seja necessária. Mas se ela ultrapassa os limites do merecimento do autor (os limites da culpabilidade concreta), não pode ser imposta, sob pena de violação do princípio da culpabilidade (como limite máximo da intervenção penal).” [60]
Conclui-se, em última análise, que somente as ações que efetivamente tenham sido livres em sua causa (isto é, no ato antecedente) poderão ser punidas através da teoria ora em estudo. Significa que serão impuníveis, por exemplo, os atos lesivos que vierem a ser praticados pelo enfermo que, por necessidade, ingere medicamento que contenha álcool, assim como os do sedento que nada encontra além de bebidas alcoólicas para se saciar, ou mesmo os do funcionário de uma perfumaria que acaba se inebriando por acidente. [61]
Desse modo, logo de início, a aplicação da fórmula da actio libera in causa fica restrita ao contexto da embriaguez preordenada e da embriaguez não acidental, seja esta última culposa ou voluntária (dolosa).
5.3.2. NEXO DE CAUSALIDADE
O limite mais elementar e tangível que condiciona a punição das actiones liberae in causa decorre da própria exigência de que exista uma relação de causa e efeito entre a colocação do agente em estado de inimputabilidade e o evento lesivo posteriormente provocado.
Em verdade, trata-se de um imperativo lógico inerente à própria teoria do delito, mais especificamente, inerente ao fato típico, mas cujo estudo ganha especial relevância no âmbito da actio libera in causa, porquanto, nesta última, a relação entre a causa e o efeito causado não é direta nem tão evidente quanto se observa nos crimes em geral.
Imaginando-se um homicídio – o crime por excelência, para Hungria – temos nitidamente que o evento morte decorre direta e exclusivamente do ato de se puxar o gatilho ou de se esfaquear o corpo da vítima, de modo que não há qualquer dificuldade para visualizar a presença do nexo causal entre conduta e resultado.
Já no caso das actiones, o resultado lesivo subsequente não decorre pura e simplesmente da colocação em estado de inimputabilidade, dependendo ainda da prática de um ato intermediário (inconsciente), que de fato o provoca.
Confira-se os dizeres de Narcélio de Queirós ao comentar as conclusões de Mayer sobre o presente tema:
“Deve ser sempre examinado se há entre o evento, produzido já durante o estado de inimputabilidade, e o ato livre de que decorreu, uma relação de causalidade, dependendo a punibilidade dos delitos caracterizados por esses resultados, do exame da natureza daqueles atos de que provieram, e que foram realizados num estado de inimputabilidade, por dolo ou por culpa.” [62]
E é justamente nesse nexo de causalidade sui generis que reside o coração da teoria em estudo, conforme ensina Walter Vieira do Nascimento:
“Já se vê, na actio libera in causa, que a relação de causalidade não acompanha todos os momentos do processo que produziu o evento. Precisamente aí reside o princípio fundamental da teoria. É através desse vínculo, pois, que se busca o limite da ação consciente do agente, orientada na direção do objetivo alcançado por uma atividade não lícita”.[63]
Em termos mais simplificados, faz-se necessário que causa antecedente (embriaguez, por exemplo), efetivamente tenha sido causa da causa posterior (ato inconsciente) que ensejou o resultado ilícito então produzido.
Não sendo possível estabelecer tal liame de consequencialidade, não será possível responsabilizar o agente pelo ato antecedente, ainda que ele o tenha praticado dolosamente e mesmo que ele quisesse que com isso o posterior resultado fosse implementado (preordenação). Nesse caso, não há que se falar sequer em tentativa, uma vez que o ato antecedente, em si mesmo considerado, pode no máximo configurar ato preparatório e, portanto, impunível.
Tome-se por empréstimo o tão repetido exemplo do guarda-chaves que se embriaga com o intuito de causar acidente na linha férrea: imaginando-se que um terrorista lance uma bomba e destrua completamente o trem antes que este chegasse à estação supervisionada pelo agente, ele não responderá pela tragédia, não obstante tivesse dolosamente deixado tudo preparado para que tal resultado ocorresse.
5.3.3. PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO
Para que o agente possa ser responsabilizado pelo resultado produzido inconscientemente, não basta que este tenha decorrido indiretamente do ato antece-dente de se entorpecer. De acordo com a doutrina contemporânea, é necessário ainda que tenha o agente, quando imputável, tivesse possibilidade de antever a ocorrência de tal evento lesivo.
A previsibilidade objetiva do resultado se revela, portanto, como condição sine qua non à punição das actiones liberae in causa. Diz-se que ela é objetiva porque aferida de acordo com padrões medianos de antecipação, isto é, conforme a capacida-de de previsão de uma pessoa normal, em referência à pueril figura do “homem médio”.
É justamente por conta dessa exigência que a punição das actiones liberae in causa não configuraria, dentro da visão dominante na doutrina, hipótese de respon-sabilidade penal objetiva.
Com a devida vênia, dentro de uma perspectiva de apego à concretude dos fatos como garantia de particular importância em matéria penal, não nos parece salutar recorrer aqui a mais um produto da imaginação para justificar a punibilidade do indiví-duo – aliás, poder-se-ia dizer que temos aqui a esdrúxula situação em que se recorre a uma ficção jurídica para justificar a utilização de outra fictio iuris maior, que é a actio libera in causa em si.
Na tentativa de amenizar tal distorção, Narcélio de Queirós entende que o resultado produzido poderá ser considerado como objetivamente previsível quando estiver dentro da linha de desdobramento causal natural ou esperada da conduta. Verbis:
“A apreciação do grau de sucessão em que o evento esteja para com o ato inicial deve atender ao ‘id quod plerunque accidet’, por meio da observação e da experiência, para que se possam apurar todas as circunstâncias dos fatos semelhantes e dos casos análogos, com indispensáveis recursos fornecidos por algumas ciências auxiliares do Direito Penal. Diante desses motivos são perfeitamente dispensáveis outros argumentos para impugnar as opiniões dos escritores que sustentam a impunibilidade das actiones liberae in causa.” [64]
Assim sendo, somente poderá ser imputado ao agente aquele resultado cuja ocorrência derive naturalmente da colocação em estado de inconsciência, em conformi-dade com as regras de experiência. Deve o agente, enquanto ainda está consciente, ter possibilidade de realizar a representação mental das prováveis consequências do ato antecedente.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, exemplifica Aníbal Bruno, em seus precisos comentários à obra de Narcélio de Queirós:
“Assim o automobilista, com a consciência de estar extremamente fatigado a ponto de não poder resistir ao sono, continua a conduzir o carro, podendo prever que adormecerá no volante, ocasionando o acidente. Segundo a opinião corrente na doutrina dominante, seria esse o limite mínimo da actio libera: uma ação voluntária da qual o agente podia e devia prever o resultado danoso.” [65]
Em outras palavras, a exigência de previsibilidade por parte do agente no momento em que ele se coloca em situação de inimputabilidade, segundo expressiva parcela da doutrina, seria suficiente para viabilizar a punição das actiones liberae in causa, afastando-a do campo da responsabilidade penal objetiva, bem como evitando que sua aplicação represente em tese, violação ao princípio da culpabilidade ou da responsabilidade subjetiva.
É nesse mesmo sentido o escólio de Cezar Roberto Bitencourt:
“Para que a valoração desses supostos não constitua uma arbitrária violação do princípio da culpabilidade, é necessário estabelecer uma relação entre os atos praticados antes do estado de inimputabilidade e o resultado típico finalmente produzido. Essa relação se estabelece quando o agente coloca-se voluntariamente em estado de inimputa-bilidade que representa um risco não permitido para o bem jurídico, que é, previsivelmente, adequado para a produção do resultado típico.” [66]
Em seguida, exemplifica o festejado autor:
“Assim, quando o marido ciumento se embriaga e dá uma surra na esposa ao chegar em casa, sabendo que o consumo do álcool lhe provoca um estado incontrolável de agressividade, ele pode ser culpável ser culpável pelo crime de lesões corporais, que será doloso ou culposo, dependendo da intencionalidade no momento em que começa a ingerir a bebida alcoólica. Dessa forma, é possível fundamentar a culpabilidade do marido – assim como nos demais casos de actio libera in causa – na medida em que aquele era imputável no momento em que deu início ao processo causal que, de maneira previsível, poderia resultar nas lesões corporais”.[67]
Em tais casos de actiones culposas, como se pode facilmente observar, a previsibilidade do agente revela-se como o único elemento subjetivo a ligar o ato antecedente ao resultado produzido em estado de inconsciência.
A contrario sensu, caso não fosse possível ao agente antever a ocorrência do evento lesivo subsequente, não será possível aplicar a teoria em comento e o fato não poderá ser punido, sob pena de responsabilidade penal objetiva, como explica Luiz Regis Prado:
“Pela ação livre na própria causa, a imputabilidade é transferida para o momento antecedente à prática delitiva (embriaguez voluntária e culpo-sa). Contudo, em razão do conceito amplíssimo acolhido ao abarcar, inclusive, o delito cometido em estado de ebriedade não acidental imprevisível, para o agente quando imputável, acaba-se por prever hipó-tese de responsabilidade penal objetiva, com evidente afronta aos prin-cípios da responsabilidade subjetiva (culpabilidade) e da legalidade”.[68]
Vale também conferir o ensinamento de Damásio de Jesus:
“A moderna doutrina penal não aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa à embriaguez completa, voluntária ou culposa e não preordenada, em que o sujeito não possui previsão, no momento em que se embriaga, da prática do crime. Se o sujeito se embriaga, prevendo a possibilidade de praticar o crime e aceitando a produção do resultado, responde pelo delito a título de dolo. Se ele se embriaga prevendo a produção do resultado e esperando que ele não se produza, ou não o prevendo, mas devendo prevê-lo, responde pelo delito a título de culpa. Nos dois últimos casos, é aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa. Diferente é o primeiro caso, em que o sujeito não desejou, não previu, nem havia elementos de previsão da ocorrência do resultado.” [69]
O eminente Magalhães Noronha vai além, entendendo que o agente deve ter previsibilidade quanto à ocorrência de um resultado específico e determinado, não bastando, pois, a previsão genérica da possibilidade de se cometer crimes naquele estado para que seja possível aplicar a teoria da actio libera in causa.[70]
Fora desse caso, a responsabilização criminal torna-se demasiadamente ampla e acaba-se por punir o ato antecedente pura e simplesmente, com base na mera possibilidade de se delinquir genericamente, dispensando, por conseguinte, a presença de qualquer elemento subjetivo (dolo ou culpa).
Em seguida, Noronha cita o exemplo de Mezger, referente ao operário não dado a bebidas que, certo dia, depois de intensa discussão com sua esposa e de ter sido abandonado por ela, decide se embriagar, após o que vem a delinquir:
“Certo operário, homem trabalhador, morigerado, pacífico, econômico e não dado a bebidas, teve um dia forte discussão com sua mulher, que, ato contínuo, abandonou-o, deixando-o com os filhos menores. Desgostoso, sai de casa e entra em um botequim, onde se põe a beber quase até à noite. Volta, então, para a casa, inteiramente embriagado, vai ao berço de sua filhinha de seis meses, leva-a para o quintal, colocando-a sobre um cepo e está para decepar sua cabeça com uma machadada, quando um filho de onze anos, que a tudo assistia horrorizado, empurra-o e põe-se a gritar, acudindo agora os vizinhos e impedindo a consumação do ato. Horas depois, no interrogatório na Polícia, chorando desesperadamente, clamando que sua filha era tudo para ele na vida, protestando ignorar qual o móvel que lhe impediu àquele gesto, dizia que se teria suicidado, caso houvesse sacrificado a menor.” [71]
Nessa hipótese concreta, resta bastante claro que o agente jamais poderia, no momento em que se entorpecia, prever que viria a ameaçar a vida da própria filha em seguida, razão pela qual não poderia haver a responsabilização por tentativa de homicídio, na medida em que embriagar-se, em si, não constitui ato executório de um delito não previsto pelo agente.
Não tendo o referido operário agido com dolo nem com culpa no momento antecedente, a eventual punição implicaria responsabilidade penal objetiva, sendo que o próprio emprego da noção de “ação livre na causa seria inadequado nesse caso, porquanto “a causa não é a embriaguez, e o que é livre é ela”.[72]
Tratar-se-ia, portanto, de uma forma de presunção de dolo ou culpa, o que se revela totalmente incompatível com o princípio do estado de inocência ou de não culpa, insculpido no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal.
Entretanto, a redação vigente do Código Penal pátrio limita-se a dizer, nos termos do inciso II do artigo 28, que não exclui a imputabilidade penal “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”, sendo que a Exposição de Motivos da Parte Geral diz expressamente ter adotado integralmente, nesse ponto, conforme já comentamos, a teoria da actio libera in causa.
Para Noronha, ao se contentar com o simples fato de o agente ter se embriagado de maneira livre para possibilitar sua imputação, nosso legislador acabou consagrando inadmissível hipótese de responsabilidade objetiva. Comenta o autor:
“A exposição de motivos dá extensão muito ampla à teoria, pois acha que a pessoa, embriagando-se, responde em virtude da ação livre na causa, porém, não mostra o nexo psicológico (dolo ou culpa) com determinado crime. A imputação é a título genérico, pelo crime que acaso venha a cometer: homicídio, lesão corporal, estupro, furto, etc.” [73]
Isso porque, se o agente não tinha condições de antever que viria a produzir aquele determinado evento lesivo posteriormente, o dolo ou a culpa presentes no ato antecedente referem-se tão somente à conduta de se entorpecer, não havendo qualquer vínculo subjetivo que ligue o agente àquele resultado em si.
Sugeria Basileu Garcia que não há qualquer nexo psíquico entre a simples deliberação de se ingerir bebidas alcoólicas e o eventual crime superveniente, não sendo possível cogitar-se da punição do indivíduo, sem pensar em delinquir, “embriaga-se totalmente e pratica lesões corporais em um amigo”.[74]
É preciso o ensinamento de Damásio de Jesus, que entende que o inciso II do artigo 28 do Código Penal não teria sido recepcionado pela Constituição:
“Essa situação alterou-se, porém, com o advento da Cont. Federal 1988, que, em seu art. 5.º LVII, introduziu o princípio do estado de inocência: ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória’. Ele é incompatível com a presunção de dolo ou culpa, de modo que o art. 28, II, do CP, deve ser interpretado de maneira a não admitir mais a responsabilidade objetiva.” [75]
Portanto, de acordo com a doutrina atualmente dominante, a punibilidade das actiones liberae in causa não depende apenas da voluntariedade do ato de se colocar em estado de inconsciência, sendo necessário ainda que o agente queira também o resultado ilícito posteriormente produzido ao menos que o preveja como con-sequência provável da prática daquele primeiro ato.
Em suma, a exigência da previsibilidade objetiva, posta no plano doutrinário, surge como outra limitação fundamental à incidência da teoria da actio libera in causa, decorrente do princípio da culpabilidade (ou da responsabilidade subjetiva), sendo imprescindível que haja, no momento da prática do ato antecedente, dolo ou ao menos culpa quanto ao resultado subsequente, sob pena de regressarmos ao primitivo estado do Direito Penal que admitia a responsabilização pela causação do evento danoso, sem dar qualquer atenção para o aspecto subjetivo da conduta.
5.3.4. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA VONTADE RESIDUAL
Com o intuito de contornar a referida exigência da previsibilidade objetiva do resultado, alguns autores defendem que, mesmo que não se faça presente qualquer elemento subjetivo durante a prática do ato antecedente de se colocar em estado de inconsciência, continuaria sendo possível a punição do agente com base em uma “vontade residual” (ou de um “resto psíquico”) que sempre remanesceria no agir do indivíduo, por maior que fosse seu torpor no momento da prática delitiva.
Entendem tais estudiosos que a inconsciência – inclusive na embriaguez completa, por exemplo – jamais geraria ausência de vontade, mas tão somente uma vontade anormal, a qual, embora alterada pela perturbação transitória dos sentidos, não seria capaz de afastar a imputabilidade do agente, sendo perfeitamente possível a sua responsabilização, a título de dolo ou culpa, conforme as circunstâncias do caso concreto.
Era nesse sentido o posicionamento do eminente Nélson Hungria, em cuja visão o indivíduo entorpecido seria sempre capaz de manter um resquício de consciên-cia e autodeterminação, conforme se depreende da seguinte passagem de sua obra:
“Diante de todas essas considerações, o legislador brasileiro não podia ter hesitado em equiparar a vontade do ébrio à vontade condicionante da responsabilidade e, consequentemente, da punibilidade. No caso da embriaguez preordenada, o agente responderá sempre a título de dolo (e com a pena agravada); no caso da embriaguez culposa, responderá por crime doloso ou culposo, segundo as indicarem as circunstâncias ou, seja, segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe segundo a direção ou atitude da residual vontade que existe no estado de ebriedade. Não é necessária uma relação finalística entre a embriaguez e a conduta aberrante: basta o nexo de causalidade entre aquela e esta, de par com a previsão ou possibilidade de previsão dos anarquizantes efeitos da ingestão do álcool ou substância análoga.” [76]
Contenta-se Hungria, portanto, com uma genérica possibilidade de previsão de que se poderia vir a delinquir naquela posterior situação de inculpabilidade – o que, convenhamos, trata-se de uma pseudo-exigência, na medida em que pode ser satisfei-ta por praticamente todo e qualquer indivíduo que se entorpece.
Nessa linha de raciocínio, a título de exemplo, não haveria qualquer óbice à punição do agente pelos eventos ilícitos causados após a embriaguez voluntária ou após embriaguez culposa, ainda que, no instante em que ele ingeria a bebida alcoólica, não tivesse condições de antever que incidiria naquela posterior prática delitiva em específico, bastando que pudesse prever que tinha chances de infringir a lei penal.
Ora, levado tal entendimento de Hungria às últimas consequências, a apli-cação da teoria da actio libera in causa tornar-se-ia praticamente ilimitada, a permitir a punição por todo e qualquer evento ilícito a que se tenha dado causa em situação de inconsciência, desde que esta não tenha decorrido de caso fortuito ou de força maior.
A fim de justificar a enorme amplitude que sua interpretação dá à referida teoria, Hungria argumenta que a ameaça de sanção penal funcionaria, in casu, como motivo inibitório ao ato de se embriagar, que seria, nessa visão, um mal em si mesmo.
Estatui ainda esse importante autor, invocando Mezger, que a ingestão de bebidas alcoólicas (ou substância análoga) apenas revelaria a verdadeira personalida-de (degenerada) do individuo, pelo que seria perfeita-mente culpável:
“E como ainda observa o insigne penalista alemão, a embriaguez quase sempre revela o indivíduo na sua verdadeira personalidade, e precisamente o objetivo da teoria da culpabilidade é tornar-se responsável o indivíduo pelos atos que são expressão da sua personalidade.” [77]
Trata-se, no fundo, de responsabilização do indivíduo pelo seu simples modo de ser, revelando-se aqui a índole perigosista da construção da vontade residual, que muito se aproxima dos domínios do Direito Penal do autor ao basear a punição do a-gente em critérios preconcebidos de periculosidade, traço do pensamento lombrosiano.
Ademais, como bem observa Magalhães Noronha, caso admitida a vontade residual, sequer seria necessário recorrer à teoria da actio libera in causa, uma vez que, aceitando-se que o indivíduo completamente inconsciente pode agir com dolo ou culpa, a esse título deveria ser responsabilizado, dispensando qualquer incursão nos domínios da referida teoria.[78]
Noronha vai além, e provoca:
“Ainda mais: se considerarmos que o bêbado tem dolo ou culpa, no momento, devido a uma ‘atitude da residual vontade’, nas expressões do douto Ministro [Hungria], temos que admitir a possibilidade de erro. Responsabilizar-se-ia, então, o ébrio que tirasse o chapéu de outrem, pensando se o seu, ou que, acreditando ser agredido, agredisse?” [79]
Analogamente, Basileu Garcia se vale de outro argumento ad absurdum para rechaçar a vontade residual, ironicamente aduzindo que “... se tamanha extensão se pretende emprestar à teoria das actiones libera in causa, então também o doente mental, que assim se tornou apenas pela sua culpável imoderação no uso do álcool, devia ser responsabilizado...”. [80]
O posicionamento de Hungria ainda recebe severas críticas por parte de Cezar Roberto Bitencourt, que também reputa a teoria da vontade residual como nítido caso de responsabilidade penal objetiva, verbis:
“Para Hungria, haveria uma vontade residual no agente embriagado, isto é, um resíduo de consciência e vontade que não lhe eliminaria a imputabilidade; com essa equivocada argumentação, Hungria confundia o sentido da actio libera in causa, com a arbitrária política criminal adotada no Código Penal de 1940 relativamente aos efeitos da embriaguez, que consagrava odiosa responsabilidade penal objetiva.” [81]
Em seguida, arremata:
“Entretanto, a actio libera in causa não é sinônimo de ausência de vínculo subjetivo entre o autor e a conduta, e, portanto, não é neces-sário recorrer à artificiosa construção da vontade residual, de que falava Hungria, do agente embriagado para evitar deparar-se com essa ques-tão. Como vimos, é possível fundamentar de maneira coerente a culpa-bilidade do agente nos casos de actio libera in causa desde que se de-monstre que o resultado produzido é imputável, objetiva e subjetiva-mente, ao comportamento precedente à situação de inimputabilidade.”[82]
Pelo raciocínio de Hungria, a atividade desenvolvida inconscientemente será considerada dolosa ou culposa não de acordo com a natureza do ato livre de induzir em si mesmo o estado de inconsciência, mas conforme o elemento subjetivo que supostamente se faria presente no momento em que a ação é praticada. Exemplificati-vamente, importa reconhecer que de uma embriaguez dolosa (voluntária) poderia resultar um crime culposo, assim como de uma embriaguez culposa poderia advir um delito doloso, o que representaria verdadeiro “aberratios logicus, que produz uma espécie de monstro mitológico, com se fora metade humano e metade animal!”.[83]
Além disso, mesmo que se admita a existência de alguma vontade a reger o comportamento do indivíduo inconsciente, o injusto eventualmente praticado nessa condição não poderá ser considerado culpável, já que, ainda que houvesse voluntarie-dade quanto ao ato subsequente, evidente que o agente tem capacidade para entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Assim, quer em sede de tipicidade, quer em sede de culpabilidade, impõe-se a absolvição.
Como se vê, a responsabilização penal com base na vontade residual se encontra para além dos limites da actio libera in causa e, caso se opte por tal forma de punição à míngua de um efetivo vínculo subjetivo que ligue o agente ao resultado, far-se-á isso por simples questão de política criminal, consagrando-se trágico resquício de culpa versari in re illicita em nosso sistema.
5.4. CRÍTICAS
5.4.1. DO APEGO À REALIDADE COMO GARANTIA DO INDIVÍDUO
No Direito em geral, o uso de ficções jurídicas para o fim de restringir direitos individuais constitui prática que naturalmente desperta especial cautela. Em matéria penal, o emprego de tal espécie de recurso em prejuízo do réu merece redobrada parcimônia e grau ainda maior de excepcionalidade.
Isso porque o entendimento contemporâneo é no sentido de que somente se pode admitir um Direito Penal calcado nos fatos, isto é, voltado para o mundo do ser e que, sempre que possível, sirva-se de dados da realidade para erigir suas construções dogmáticas.
Nesse contexto, houve constante esforço por parte dos penalistas para o fim de delimitar os contornos da definição de conduta humana, fora da qual não poderia haver relevância penal.
Significa reconhecer o conceito de conduta delimita a atuação do Direito Penal, de modo que tudo aquilo que nele não encontrar conformação não será conside-rado como crime, daí concluir-se pela atipicidade dos atos resultantes de coação física irresistível, dos atos reflexos e dos atos produzidos em estados de inconsciência.
Embora essa delimitação soe hoje como algo intuitivo, durante a vigência do período neokantiano (primeiras décadas do século XX), foi possível notar um patente desapego da realidade na construção das categorias dogmáticas, desvinculando-as de quaisquer noções pré-jurídicas.
Os partidários do neokantismo trabalhavam tão somente com abstrações na formulação de suas bases dogmáticas, como se depreende da posição de Sauer, que definia crime simplesmente como “um querer e obrar antijurídico (socialmente danoso) e culpável, insuportável cultural e ético-socialmente, em contradição grave com a Justi-ça e o Bem Comum”. [84]
Diante de tal relativismo valorativo inerente ao pensamento kantiano e tendo em vista a pouca importância dada à formulação de um conceito material de conduta humana, a atribuição ou não da relevância penal do comportamento ficava entregue ao alvedrio do intérprete, o que culminava em notável insegurança e falta de uniformidade no trato das questões jurídico-penais.
Já na segunda metade do século XX, depois da triste constatação de que toda a carnificina produzida pelo Estado nazista deu-se em plena conformidade com o império da lei então vigente, passou-se a reconhecer que o poder punitivo não pode ficar vinculado tão somente à atividade normativa.
Disso resultou a inexorável conclusão de que a intervenção do Direito Penal seria ilegítima quando ignorasse a realidade fática, a qual condiciona tanto a atividade de criação legislativa quanto a sua aplicação ao caso concreto.
Com o surgimento da teoria finalista da ação, o conceito de conduta passa a desempenhar com mais clareza a sua função de elemento-limite, também conhecida como função negativa do conceito de conduta, sendo utilizado como “mecanismo para filtragem daquelas situações que, de plano, não tem como ser consideradas relevantes para o direito penal”. [85]
Sobre a vinculação do legislador a uma definição pré-típica (não normativa) de conduta, comenta Fábio André Guaragni:
“Lendo o direito penal por meio da constituição – procedimento denominado filtragem constitucional –, esta obrigatoriamente ganha alicerces. A carta magna erige um cinturão de garantias em favor do indivíduo contra o poder punitivo do Estado. Deriva o princípio da reserva legal, constante do art. 5.º, XXXIX, da forma genérica deste mesmo princípio contido no inc. II do próprio art. 5.º: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. O termo ‘fazer’ implica que a lei penal (à qual se restringe o texto) somente poderá obrigar o cidadão vinculando-o a um fazer, proibindo um fazer (normas proibitivas) ou preceituando-as (normas preceptivas, ordinatórias ou mandamentais). Não se pode proibir que o destinatário da norma penal seja ou ordenar que seja de uma ou outra forma. É dizer, não se poderão punir estados ou maneiras de ser, nem construir tipos penais de autor. O legislador encontra, portanto um limite para sua atividade legislativa, ao ter que partir de condutas humanas quando produz matéria peal incriminadora, podendo fazer derivar somente delas a construção de tipos penais.” [86]
Desse modo, seria vedado ao Poder Legislativo criminalizar comportamentos que não possam ser enquadrados no modelo pré-típico de conduta humana, aqui se estabelecendo uma importante barreira ao alcance do poder punitivo estatal, através da referida concepção de conduta como elemento-limite ao Direito Penal.
Sob essa óptica, os eventos lesivos produzidos em estados de inconsciência surgem como hipóteses de verdadeira ausência de conduta, na medida em que não há, nesses casos, qualquer elemento subjetivo animando o comportamento do agente, tal qual se observa nas hipóteses de coação física irresistível.
Assim leciona Fábio Guaragni:
“São várias as possibilidades de o ser humano, em estado de inconsciência, praticar atos danosos a terceiros. Todos, naturalmente, são casos em que não haverá conduta humana, dentro da perspectiva finalista, porquanto a inconsciência é incompatível com a escolha de uma finalidade e a correspondente sobredeterminação dos meios”.[87]
Mais adiante, exemplifica o supracitado autor:
“Os movimentos praticados durante o sono, por exemplo, sejam meras contrações musculares, gesticulações derivadas de sonhos, ou mesmo comportamentos praticados sob estado de sonambulismo, não caracterizam conduta humana. Imagine-se que alguém que sonha estar prestes a cobrar um pênalti e, por conta disso, desfere violento chute na esposa que dorme virada para o lado contrário do leito. Não há conduta humana, pois o fim que guiou o resto – marcar um gol – não atua no mundo físico real, mas num universo onírico alheio à esfera de sentido da existência humana.” [88]
Incide aqui o postulado clássico segundo o qual não há crime sem conduta (“nullum crimen sine conducta”), tomando-se como fundamento a evidente desnecessi-dade de imposição de pena criminal para retribuir atos que não decorreram de um agir consciente do indivíduo, não havendo que se falar, nessas hipóteses, em qualquer espécie de prevenção ou repressão.
Acerca de tal princípio, discorre Zaffaroni:
“O princípio nullum crimen sine conducta é uma garantia jurídica elementar. Se fosse eliminado, o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc. Neste momento de nossa cultura isso parece suficientemente óbvio, mas, apesar disto, não faltam tentativas de suprimir ou de obstacularizar este princípio elementar.” [89]
De acordo com essas premissas, seria impossível cogitar da condenação criminal de qualquer agente que houvesse dado causa a resultados criminosos en-quanto estava privado de consciência, nem mesmo em caso de preordenação delitiva, porquanto ausente o dolo no momento da ação típica. E sequer seria possível falar em conduta durante estados de inconsciência, pois conduta pressupõe voluntariedade.
Entra em cena nesse contexto, entretanto, a fórmula da actio libera in causa, justamente para permitir a excepcional punição pelos eventos lesivos causados em situação de inconsciência, através do deslocamento das balizas temporais de aferição do elemento anímico e da imputabilidade para o momento anterior em que o agente voluntariamente se colocou em tal estado.
Conclui-se então que a actio libera in causa funciona, em última análise, como um método artificioso de transformar em conduta punível aquilo que, a princípio, conduta não seria, ao mesmo tempo que enxerta no agente um elemento subjetivo do tipo que na verdade não estava presente no momento da execução delitiva.
Não fosse o uso da ficção, as actiones liberae in causa seriam meros fatos humanos, ou seja, situações plenamente atípicas em que “não há ações, por faltar a voluntariedade”. [90]
Bem por isso, e tendo em conta a gravidade de suas consequências, soa razoável o entendimento de alguns autores no sentido de que a aplicação de tal teoria deveria ficar restrita, de lege ferenda, aos crimes maior gravidade, a fim de prevenir possíveis excessos punitivistas nos casos de lesão bens jurídicos de menor relevância, por questões de proporcionalidade e de política criminal.
5.4.2. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA E CULPA VERSARI IN RE ILLICITA
Em suas raízes mais primitivas, o direito penal era comumente caracterizado pela responsabilização do indivíduo em virtude da simples produção do evento lesivo, contentando-se com a existência do nexo de causalidade entre a conduta praticada e o resultado produzido, sem dar maior importância para o aspecto subjetivo desse agir.[91]
Hodiernamente, contudo, o já citado princípio da culpabilidade (ou da res-ponsabilidade subjetiva) estabelece a garantia de que a conduta do agente somente será considerada típica se for dolosa ou ao menos culposa.
Nesse sentido, a culpa (tomada aqui em seu sentido lato) funcionaria como uma “exigência mínima da tipicidade penal, isto é, nullum crimem sine culpa”. [92]
As situações em que tal parêmia é violada são conhecidas genericamente como responsabilidade penal objetiva, isto é, situações em que a imputação de certo resultado é fundada tão somente em sua causação, pouco importando se o agente teve dolo ou culpa em seu proceder, vale dizer, se tinha ou não previsibilidade do resultado.
Com a clareza que lhe é peculiar, explica Damásio de Jesus:
“Dá-se o nome de responsabilidade penal objetiva à sujeição de alguém à imposição de pena sem que tenha agido com dolo ou culpa ou se que tenha ficado demonstrada sua culpabilidade, com fundamento no simples nexo de causalidade material. É combatida pela doutrina moderna.” [93]
Além da violação ao princípio da culpabilidade, entende o renomado autor que o instituto da responsabilidade objetiva também não se coaduna com o princípio da presunção de inocência:
“Hoje, com a introdução do princípio do estado de inocência em nossa Const. Federal, segundo o qual ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória’ (art. 5.º, LVII), essas disposições, na parte em que admitiam a responsabilidade penal objetiva, podem ser consideradas derrogadas, uma vez que ele é incompatível com a presunção de dolo ou culpa”.[94]
Os resquícios dessa vetusta e odiosa forma de responsabilização penal são severamente criticados pela doutrina, conforme observam Zaffaroni e Pierangeli:
“Essas formas de responsabilidade objetiva estão quase erradicadas do direito penal contemporâneo, sobrevivendo no direito anglo-saxão com o nome de ‘strict liability’, e que é criticada por quase toda a doutrina desses países. Em nossa legislação penal, cremos que não há caso de responsabilidade penal objetiva, especialmente em face das regras estabelecidas pelo parágrafo único do art. 18 do CP e pelo art. 19: ‘pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente’.” [95]
Durante algum tempo, buscou-se excepcionar a exigência de dolo ou culpa recorrendo-se à já comentada construção do versari in re illicita, segundo a qual seria possível responsabilizar o agente pelo simples fato de a conduta que causou o resulta-do ter sido voluntariamente praticada.
Ocorre que a adoção desse instituto pode implicar uma expansão desmedida do poder punitivo estatal, admitindo, como observam Zaffaroni e Pierangeli, a punição do agente em situações verdadeiramente absurdas:
“Conforme o princípio do versari in re illicita, o autor de um furto deveria ser responsabilizado pela morte do dono do negócio, ocorrida em consequência de uma parada cardíaca sofrida ao tomar conhecimento do fato delituoso em seu estabelecimento; o marido que abandona o lar deveria ser responsabilizado pelo suicídio da mulher; aquele que furta um extintor, pelo dano causado por um incêndio que sobrevém um ano depois; aquele que se apodera do combustível de um veículo, pelo roubo de que é vítima o seu dono quando procura abastecimento. Deduz-se destes exemplos a flagrante violação ao nullum crime sine culpa, isto é, que o versari in re illicita é a mais coerente manifestação da responsabilidade objetiva.” [96]
De acordo com opinião doutrinária respeitável, a punição das actiones libera in causa, nas hipóteses em que a colocação no estado de inconsciência não é preorde-nada à prática delitiva, representaria um desses lamentáveis resquícios do versari in re illicita em nosso ordenamento.
É nesse sentido o posicionamento de Moura Teles:
“A actio libera in causa importa em agressão à harmonia do sistema penal. Com efeito, dispõe o parágrafo único do art. 18 do Código Penal que, em regra, somente serão punidos como fatos definidos como crime cometidos dolosamente, e, excepcionalmente, aqueles cometidos culposamente. Admitida a punição de comportamentos realizados sem dolo e sem culpa, atinge-se, igualmente, por extensão, o princípio da legalidade, ao qual se incorporou o princípio da criação dos tipos dolosos e culposos.” [97]
Sob outro giro, Alberto Silva Franco entende que aplicação da teoria da actio libera in causa viola o princípio da personalidade das penas, argumentando:
“Se a pena não pode passar da pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como pessoa, enquanto centro de agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá, em verdade, responder por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar, que não seja uma afirmação sua. Isto significa, nessa perspectiva, que todo agente deverá ser punido apenas e exclusivamente por fato próprio, por fato seu, enfim, por fato de sua responsabilidade pessoal.” [98]
As críticas acima colacionadas procedem: dolo e culpa, são, de fato, categorias jurídicas que exigem previsibilidade, e só pode ter previsibilidade o indivíduo que tem consciência.
Tal inexorável conclusão não poderia ser afastada com base na simples adoção de uma fórmula artificiosa de acordo com a qual a conduta praticada incons-cientemente será dolosa se a colocação nesse estado fora dolosa ou culposa se o ato inicial fora negligente. Isso porque “não há que se confundir o elemento psicológico da embriaguez com o dado da subjetividade, que acompanha a ação ou omissão”.[99]
Não por outra razão, Paulo José da Costa Júnior conclui pela inadmissibi-lidade da utilização da fórmula da actio libera in causa para além da embriaguez preordenada, sob pena de se ressuscitar a tão indesejada culpa versari in re illicita:
“Não se pode estender o princípio à embriaguez voluntária, em que o agente ingere bebida alcoólica somente para ficar bêbado, ou à embriaguez culposa, em que se embriaga por imprudência ou negligência. Em nenhuma dessas hipóteses, porém, pretendia o agente praticar ulteriormente o crime. O legislador penal, ao considerar imputá-vel aquele que em realidade não o era, fez uso de uma ficção jurídica. Ou melhor, adotou nesse ponto, a responsabilidade objetiva, que se antagoniza com o nullum crimen sine culpa, apresentado como ideia central do novo estatuto. É forçoso convir: no capítulo da embriaguez, excetuada aquela preordenada, o Código vez reviver a velha fórmula medieval do versari in re illicita.” [100]
Como lembra tal eminente autor, ao contrário da legislação portuguesa – que admitiu ter adotado, por força de questões de política criminal, uma responsabilidade penal objetiva no tocante a alguns casos de embriaguez –. nosso legislador não teve a mesma coragem e “preferiu tapar o sol com a peneira, adotando sem o confessar a responsabilidade anômala, desprovida de culpabilidade”.[101]
O devido respeito ao princípio da culpabilidade (responsabilidade subjetiva) deixa apenas duas alternativas legítimas ao legislador: responsabilizar o agente a título de culpa pelo ilícito praticado em situação de inconsciência (desde que haja previsão legal da modalidade culposa) ou criar um crime autônomo para quem se coloca em tal estado, cuja condição objetiva de punibilidade seria a efetiva ocorrência do resultado danoso posterior.[102]
Moura Teles entende que essa segunda opção seria a mais razoável, sendo que o legislador pátrio deveria “buscar a implantação da reprovação do comportamento do sujeito que se embriaga, preordenada, voluntária ou culposamente, e acaba por cometer fato típico ilícito”.[103]
Como mencionado, a incriminação autônoma da embriaguez foi a justamen-te a alternativa encampada pelo Código Penal português, cujo art. 282 dispõe “quem, pela ingestão voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas ou outras substân-cias tóxicas, se colocar em estado de complete inimputabilidade e, nesse estado, pra-ticar acto criminalmente ilícito, será punido com prisão até um ano e multa de 100 dias”.
Esse dispositivo prevê ainda figura qualificada, apenada com prisão de 1 a 3 anos e multa de até 150 dias “se o agente contou ou podia contar que nesse estado cometeria factos criminalmente ilícitos”.
Com a devida vênia, ao contrário do que escreve Moura Teles, entendemos que o Código Penal português não logrou encontrar um meio de conciliar a actio libera in causa com o principio da culpabilidade na embriaguez voluntária e culposa. A rigor, a legislação lusa tão somente adotou, de maneira confessa e oficial, uma exceção em que a responsabilidade objetiva seria admitida, o que, conquanto seja mais honrado que fazer a mesma coisa veladamente, nem por isso deixa de afrontar as exigências do “nulllum crimen sine culpa”.
Parece-nos que apenas a forma qualificada poderia ser objeto de punição, na medida em que a forma simples prescinde de previsibilidade objetiva por parte do agente, sem a qual não há que se falar em dolo nem culpa.
Solução mais adequada foi a adotada pelo Código Penal alemão, ao tipificar conduta semelhante, mas sem abrir mão da previsibilidade objetiva. Acerca da figura, comenta Guilherme de Souza Nucci:
“No direito penal alemão, pretendendo contornar o aspecto de quem bebe, voluntariamente, mas sem a intenção de cometer crimes, nem assumindo o risco de fazê-lo, criou-se figura típica específica: ‘Quem se coloque em um estado de embriaguez premeditada ou negligentemente por meio de bebidas alcoólicas ou de outras substâncias estimulantes, será punido com pena privativa de liberdade de até cinco anos ou com multa quando se cometa neste estado um fato ilícito e por esta causa não possa ser punido, porque como consequência da embriaguez seja inimputável’ (art. 323a, CP alemão). A pena não poderá ser superior àquela que seria imposta pelo fato cometido no estado de embriaguez (art. 323a, II, CP alemão).” [104]
Nesse sentido, caminhou bem o legislador alemão ao esclarecer que a pena imposta em razão do ato antecedente (embriagar-se) jamais poderá superar aquela que seria atribuída ao fato praticado inconscientemente, o que se revelaria flagrante-mente desproporcional.
Zaffaroni, por outro lado, prefere adotar a primeira das alternativas a que se fez referência, qual seja, a de responsabilizar o agente pelas actiones liberae in causa somente a título de culpa, desde que prevista em lei a modalidade culposa.
Entende o insigne doutrinador argentino que a teoria seria incompatível com a tipicidade dolosa, porquanto imprescindível a presença de dolo atual ou atualizável à prática da conduta delitiva, sob inescapável pena de responsabilidade penal objetiva.
Já no âmbito da tipicidade culposa, a actio libera in causa constituiria um esforço argumentativo inútil, uma vez que, ao contrário do que se observa com relação ao tipo doloso, a estrutura do tipo culposo não exige que a culpa seja concomitante ao resultado. Exemplificativamente, o operário de indústria de automóveis que deixa de apertar um parafuso de roda por descuido e, tempos depois, isso vem a dar causa ao previsível acidente do comprador deste carro, responderá por homicídio culposo, pouco importando se estava ou não consciente no momento da produção do resultado-morte.
Explica o autor:
“Vimos a estrutura do crime culposo, e ela revela-nos claramente que quando aquele que se coloca em estado ou situação de inculpabilidade viola um dever de cuidado, está preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, e não há necessidade de recorrer-se à teoria da actio libera in causa. Nos casos que expusemos, a tipicidade culposa de modo algum exsurge desta teoria, mas diretamente do tipo culposo. Aquele que bebe até embriagar-se, sem saber que efeitos o álcool causa sobre seu psiquismo, ou quem ‘para experimentar’, ingere um psicofármaco cujos efeitos desconhece, ou quem injuria outro sem considerar que pode ele ter uma reação violenta, está, obviamente, violando um dever de cuidado Se sua conduta violadora do dever de cuidado, em qualquer desses casos, causa uma lesão a alguém, termos perfeitamente configurada a tipicidade culposa, sem que seja necessário recorrer à teoria da actio libera in causa. Isto porque a conduta típica violadora do dever de cuidado é, precisamente, a de beber, ingerir o psicofármaco e injuriar, respectivamente, e, no momento de cometer o injusto culposo, o sujeito encontrava-se em estado e em situação de culpabilidade, pelo que é perfeitamente reprovável.” [105]
Não teria qualquer sentido, pois, falar-se em actio libera in causa culposa, já que basta que a violação do dever de cuidado tenha dado causa a certo evento lesivo para que o agente por ele responda, desde que tivesse previsibilidade objetiva daquele resultado no momento de sua causação.
Seguindo essa linha de raciocínio, somente as actiones liberae in causa do-losas careceriam da antecipação da análise da imputabilidade e do elemento subjetivo para viabilizar sua punibilidade.
Ocorre que, no momento antecedente em que o indivíduo se coloca no esta-do inculpável para assim delinquir, não haveria tipicidade objetiva, não sendo possível atribuir-se ao agente aquele posterior resultado a título de dolo, de acordo com o enten-dimento de Zaffaroni:
“Não havendo tipicidade objetiva (e, neste caso, os causalistas devem afirmar que apenas inexistir tipicidade), não esse pode conceber o dolo, porque a vontade deve ser a de realizar o tipo objetivo, mas, nesse momento, o que existe é só uma vontade de beber e um desejo de, embriagado, realizar o tipo objetivo. Esse desejo nunca pode ser dolo, porque lhe falta toda tipicidade objetiva em que assentar-se.” [106]
O penalista argentino busca confirmar sua tese através do exemplo daquele agente que, planejando matar um desafeto, bebia em certo bar com outras quinze pessoas. Aponta-se que, por maior que fosse a vontade de embriagar-se totalmente para, nesse estado, matar o rival, a conduta desse agente em nada se distinguiria da dos outros quinze bebedores, não se podendo falar ainda em início de execução, mas tão somente em ato preparatório impunível, já que “se neste momento ele fosse detido pela polícia, não haveria juiz na Terra capaz de condená-lo por tentativa de homicídio, porque há uma total ausência de tipicidade objetiva”.[107]
Em seguida, aduz-se que não seria possível, dentro da tipicidade dolosa, antecipar o juízo de imputabilidade para o momento do ato antecedente de se colocar em estado de inconsciência, pois o sujeito sóbrio não sabe do que será capaz de fazer quando totalmente entorpecido.
Faltaria, na visão de Zaffaroni, domínio do fato ao indivíduo inconsciente:
“Se o ébrio faz, em estado de embriaguez, o que desejava fazer quando estava sóbrio, isto não é mais que um produto do acaso. Tal é tão evidente que, se ao invés de matar seu rival, abraça-o e lhe diz que fique com a namorada, não haveria possibilidade alguma de condená-lo por tentativa de homicídio. Que razão haverá para condená-lo por homicídio consumado se seu rival senta-se a seu lado, o bêbado não o reconhece porque é impedido por sua embriaguez, mas o mata porque ele lhe pisou o pé?” [108]
Ousamos discordar do eminente ministro da Suprema Corte Argentina no que toca à pretensa inaplicabilidade da teoria da actio libera in causa aos casos de preordenação delitiva.
É que, de acordo com a tese do instrumento de si mesmo, se o agente quer o resultado e, agindo com consciência e vontade, coloca-se em estado de inconsciência para o fim de atingi-lo, terá escolhido, de fato, um meio executivo apto a produzir aquele resultado, ainda que seja possível que ele não ocorra.
Ora, não se pode concluir pela ausência de tipicidade pelo simples fato de serem passíveis de falha os planos arquitetados pelo agente no momento em que era livre na causa. Fosse assim, forçoso seria reconhecer também a absolvição do autor mediato que se vale de um terceiro inimputável para cometer determinado delito, já que o comportamento deste é tão imprevisível quanto o do agente totalmente embriagado, sendo igualmente possível que viesse, por um motivo qualquer, a descumprir as ordens lhe foram dadas anteriormente pelo verdadeiro mentor do crime.
Assim, quem atua fazendo de si mesmo instrumento da própria deliberação criminosa pode perfeitamente responder, a título de dolo, pelo resultado posteriormente causado em situação de inculpabilidade.
Em suma, nosso entendimento é no sentido de que a actio libera in causa deveria ficar restrita aos delitos preordenados. Fora disso, concordamos com Zaffaroni quanto à desnecessidade de se recorrer à teoria nos casos em que o agente induz em si a inconsciência de maneira voluntária ou culposa, sem visar à prática de delito, hipótese em que responderá normalmente por crime culposo, desde que haja previsi-bilidade objetiva do resultado porquanto já caracterizada a quebra do dever de cuidado.
Por fim, de lege ferenda, cremos que seria salutar manter a aplicação da actio libera in causa adstrita aos crimes mais graves – tais como os crimes contra a vida e os crimes contra a dignidade sexual – evitando sua incidência, por questão de proporcionalidade, com relação a fatos de somenos importância.