Resumo: O presente artigo trata-se da análise do dolo eventual na ação de improbidade administrativa em razão da violação aos princípios da Administração Pública. Discorre acerca da dificuldade de comprovação do ato supostamente ímprobo quando fundado apenas no dolo eventual, abordando o conceito de improbidade e sua relação com os princípios administrativos, de forma a afastar mera irregularidade dissociada do dolo ou da culpa.
Palavras-Chaves: Dolo eventual. Improbidade Administrativa. Princípios administrativos. Ato de improbidade. Mera irregularidade.
I. Introdução
A Lei n. 8.429/92 ao tratar sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito se tornou um marco no combate à corrupção.
Mas o que é corrupção? Qual a abrangência do conceito de improbidade? Como analisar o elemento volitivo do agente público (dolo e culpa) na prática do ato administrativo para constatar a prática de improbidade? Esses são temas que se pretende abordar neste estudo.
A corrupção constitui uma das facetas da improbidade, com os seguintes elementos: desvio de poder e enriquecimento ilícito. Trata de um desvio comportamental consistente na infringência às disposições legais e aos valores morais pertencente a uma determinada sociedade em troca de vantagens pessoais ou de terceiros.
Acerca da corrupção na esfera estatal, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves ensinam que “a corrupção indica o uso ou a omissão, pelo agente público, do poder que a lei lhe outorgou em busca da obtenção de uma vantagem indevida para si ou para terceiros, relegando os legítimos fins contemplados na norma.”[1]
A improbidade constitui um vício de conduta do administrador na prática desonesta do ato administrativo, desvirtuando-o de tal forma que resulta na sua nulidade.
Aliás, em razão da gravidade das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, como a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos, a análise sobre o elemento volitivo da conduta deve ser realizada com cautela de forma a afastar mera irregularidade dissociada do dolo ou da culpa.
Esse cuidado deve ser primordial para evitar o ajuizamento de ação por improbidade administrativa fundamentada em irregularidades praticadas pelo administrador, sem dolo ou culpa e que, em muitos casos encontram-se sanadas dentro da Administração.
Tais ações, além de provocar uma atuação jurisdicional sem necessidade, põem o administrador numa situação de constrangimento desnecessária.
Num Estado Democrático de Direito, as ações ajuizadas perante o Judiciário deverão ser a ultima ratio para solução do litígio, de forma a evitar o acúmulo de processos que podem ser resolvidos administrativamente, bem como constrangimentos e injustiças das partes da relação jurídica.
Este estudo ao tratar sobre o tema de improbidade administrativa busca tecer considerações acerca do elemento volitivo do ato de improbidade por violação aos princípios da Administração pública, mais precisamente acerca da dificuldade de comprovação do dolo eventual na conduta do administrador ímprobo.
II. Improbidade Administrativa
Nos termos da Lei de Improbidade Administrativa considera-se “improbidade administrativa a prática de ato por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território que importe em enriquecimento de ilícito, dano ao erário e/ou violação aos princípios e deveres da administração pública.”[2]
Ressalta-se que para configurar ato de improbidade administrativa não é suficiente a irregularidade ou ilegalidade do ato. Conforme observa o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Zavascki, “a improbidade administrativa é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente”.[3]
Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves observam que “a configuração da improbidade, no entanto, ainda pressupõe a ponderação do ato em cotejo com os valores que violou, denotando sua potencialidade lesiva em detrimento dos interesses tutelados.”[4]
Em sua definição léxica, a improbidade está relacionada à ausência de caráter íntegro, honesto na conduta do agente público relacionadas nas disposições dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92.
Por fim, quanto à natureza processual, a ação por improbidade administrativa trata-se de uma ação repressiva, com finalidade punitivo-pedagógica decorrente das sanções impostas aos agentes públicos desonestos.
III. Princípios da Administração Pública
Na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen “os princípios, em essência, são proposições básicas, verdadeiros alicerces do sistema jurídico, sendo utilizados para limitar e direcionar sua aplicação. Podem ser implícitos ou implícitos, conforme estejam expressamente previstos no direito positivo ou dele sejam extraídos com a utilização de um processo hermenêutico, o que permitira que sejam densificados e aplicados pelo intérprete.”[5]
Robert Alexy e Ronald Filho Dworkin classificam as normas jurídicas em duas categorias básicas: os princípios e as regras.
Sobre regras e princípios, Carvalho Filho assim as distingue:
“As regras são operadas de modo disjuntivo, vale dizer, o conflito entre elas é dirimido no plano da validade: aplicáveis ambas a uma mesma situação, uma delas apenas a regulará, atribuindo-se à outra o caráter de nulidade. Os princípios, ao revés, não se excluem do ordenamento jurídico na hipótese de conflito: dotados que são de determinados valor ou razão, o conflito entre eles admite a adoção do critério da ponderação de valores (ou ponderação de interesses), vale dizer, deverá o intérprete averiguar a qual deles, na hipótese sub examine, será atribuído grau de preponderância. Não há, porém, nulificação do princípio postergado; este, em outra hipótese e mediante nova ponderação de valores, poderá ser o preponderante, afastando-se o outro princípio em conflito.”[6]
Crisafulli citado por Paulo Bonavides define princípio como “toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando das quais determinam, e, portanto, presumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.”[7]
Paulo Bonavides ao dissertar sobre os princípios gerais de Direitos e princípios constitucionais observa que:
“O ponto central da grande transformação por que passam os princípios reside, em rigor, no caráter e no lugar de sua normatividade, depois que esta, inconcussamente proclamada e reconhecida pela doutrina mais moderna, salta dos Códigos, onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as Constituições, onde em nossos dias se convertem em fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais.”[8]
Ante a existência de princípios administrativos expressos e implícitos, neste estudo nos ateremos apenas aos expressos Constituição Federal (art. 37): legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O princípio da legalidade representa não só a atuação conforme os ditames legais, mas também a obediência aos princípios administrativos que legitimam a atividade do agente público.
Conforme o clássico ensinamento do saudoso Hely Lopes Meirelles “enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’, para o administrador público significa ‘deve fazer assim’.”[9]
O princípio da impessoalidade tem por finalidade a tratamento igualitário aos administrados pela Administração Pública e que se encontram na mesma situação jurídica.
Ensina Hely Lopes Meirelles que o princípio da impessoalidade é o clássico princípio da finalidade “o qual impõe o administrador público que só pratique o ato para seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como objetivo de ato, de forma impessoal.”[10]
O princípio da impessoalidade representa a proteção aos administrados de decisões parciais proferidas pelos agentes públicos visto que o objetivo da prática do ato administrativo é o interesse público, o que não exclui a hipótese deste coincidir com o particular, desde que presente a finalidade pública pretendida.
Pelo princípio da moralidade impõe ao agente público a observância aos preceitos éticos e morais em suas atividades.
Welter citado por Hely Lopes Meirelles diferencia a moral administrativa da moral comum insistindo que “a moralidade administrativa não se confunde com moralidade comum; ela é composta por regras da boa administração, ou seja; pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas não só pela distinção entre o BEM e o MAL, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa.”[11]
Por meio do princípio da publicidade aos atos administrativos é concedida a mais ampla divulgação para conhecimento aos administrados do seu início e efeito, controlando a legitimidade da conduta dos agentes públicos.
Assim, todos aos atos administrativos devem ser divulgados em órgãos oficiais de publicação (diário oficial) ou afixados nas repartições públicas. Ressalta-se que o princípio da publicidade abrange, além da divulgação oficial, mas também o conhecimento da conduta interna dos agentes públicos, reforçado atualmente pela Lei da Informação (Lei n. 12.527/11).
Tal princípio ainda pode ser reclamado através de dois instrumentos constitucionais: direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”) e as certidões (art. 5º, XXXIV, “b”).
O princípio da eficiência reclama que a atividade do administrador seja realizada com presteza e rendimento funcional, resultando numa qualidade de serviço público.
Ensina Carvalho Filho que o núcleo do princípio da eficiência é “a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional.”[12]
IV. Deveres funcionais dos agentes públicos previstos no art. 11 da Lei n. 8.429/92
De acordo com o art.11, além da obediência aos princípios administrativos são impostos aos agentes públicos os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade.
A obediência ao dever de honestidade ou de probidade está vinculada à observância do fim protegido por lei, na satisfação do interesse público.
Carvalho Filho observa que, em razão do dever de probidade, ao agente público é vedado o favorecimento ou nepotismo. Ensina que “o administrador probo há de escolher, por exemplo, o particular que melhores condições oferece para contratação; ou o indivíduo que maior mérito tiver para exercer a função pública. Enfim, deverá ser honesto, conceito extraído do cidadão médio.”[13]
O dever de imparcialidade significa obediência ao dever de tratamento igualitário na satisfação dos interesses da coletividade, evitando a promoção pessoal e de terceiros na prática dos atos administrativos.
O dever de legalidade impõe o respeito às normas legais enquanto que o dever de lealdade significa observância às normas da instituição, outorgando ao agente a obrigação de representar sempre que tiver conhecimento de irregularidade que tiver ciência em razão do cargo, bem como contra ato ilegal, omissivo ou abusivo por autoridade. (art. 116, II, da Lei no. 8112/90).
Os deveres de legalidade e de lealdade estão vinculados à concepção de boa-fé, indicando a obrigação do agente em trilhar os caminhos traçados pela norma para a consecução do interesse público (legalidade) e permanecer ao lado da administração em todas as intempéries (lealdade).
V. Elemento subjetivo dos atos de improbidade
De acordo com a Lei de Improbidade Administrativa a conduta desonesta do agente público nas hipóteses de atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º) e que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11), pressupõe uma conduta dolosa do agente público, com a consciência da ilicitude da ação ou omissão prejudicial ao interesse público.
Nos atos de improbidade dos art. 9º e 11º para a consecução da prática do ato ímprobo basta a vontade livre e consciente de produzir o resultado ou a assunção do risco de produzi-lo (conduta dolosa).
De acordo com o art. 18, I, do Código Penal Brasileiro, constitui dolo quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Tal artigo conceitua o dolo direto e o dolo eventual.
Dolo é a consciência da vontade de realizar a conduta descrita no tipo. Conforme ensina Cezar Roberto Bitencourt “o dolo é constituído por dois elementos: um cognitivo, que é o conhecimento do fato constitutivo da ação típica; e um volitivo, que é a vontade de realizá-la. O primeiro elemento, o conhecimento, é pressuposto do segundo, a vontade, que não pode existir sem aquele.”[14]
Assim, dolo é a vontade de realizar o tipo objetivo, orientado pelo conhecimento de suas elementares no caso concreto.[15]
O Ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, reforçando a existência de precedentes da Corte Superior assinala que basta a presença do dolo genérico para configuração do ato de improbidade administrativa, que se “reflete na simples vontade consciente de aderir à conduta descrita no tipo, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica - ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles levaria -, sendo despiciendo perquirir acerca de finalidades específicas.”
Para melhor esclarecimento, resta oportuno a reprodução da ementa do AgRg no REsp 1214254/MG, de lavra do Ministro Humberto Martins:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICABILIDADE A VEREADORES. DOLO GENÉRICO. SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS. ABRANDAMENTO.
1. Em virtude da perfeita compatibilidade existente entre o regime especial de responsabilização política e o regime de improbidade administrativa previsto na Lei n. 8.429/92, não há falar em inaplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa a vereadores. Precedentes
2. A compra de bens sem o procedimento licitatório, o qual foi dispensado indevidamente, configura o ato ilegal, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa. Tal conduta viola os princípios norteadores da Administração Pública, em especial o da estrita legalidade.
3. O dolo que se exige para a configuração de improbidade administrativa reflete-se na simples vontade consciente de aderir à conduta descrita no tipo, produzindo os resultados vedados pela norma jurídica - ou, ainda, a simples anuência aos resultados contrários ao Direito quando o agente público ou privado deveria saber que a conduta praticada a eles levaria -, sendo despiciendo perquirir acerca de finalidades específicas. Precedentes.
4. Tem-se claro, diante da análise do acórdão recorrido, que houve bem descrita a conduta típica, cuja realização do tipo exige ex professo a culpabilidade. Dito de outro modo, violar princípios é agir ilicitamente. Como bem expresso pela Corte estadual, a culpabilidade é ínsita à própria conduta ímproba.
5. In casu, a má-fé do administrador público é patente, sobretudo quando se constata que, na condição de Presidente da Câmara Municipal, nem sequer formalizou os procedimentos de dispensa de licitação.
6. Ressalvou, o Tribunal a quo, entretanto, que deveriam ser impostas "penalidades mínimas, de modo razoável ao contexto e proporcional à extensão da improbidade constatada". Desse modo, mostra-se um contrassenso arredar a penalidade de perda de função pública, e, ao mesmo tempo, manter a suspensão de direitos políticos - também extremamente gravosa.
7. Deve-se, portanto, excluir a penalidade de suspensão de direitos políticos, mantendo-se as demais.
Agravo regimental parcialmente provido.”[16]
Ressalta-se que somente na hipótese de atos de improbidade lesivos ao erário (art. 10) há previsão de conduta culposa do administrador (negligência, imprudência ou imperícia), consistente na ausência de diligência necessária para prestação do serviço público que lhe foi confiado.
Na hipótese do art. 10, além do dolo, é admitida expressamente a forma culposa do tipo, ou seja, a inobservância do dever objetivo de cuidado com produção de resultado ilícito.
Acerca da inobservância do cuidado objetivamente devido, observa Cezar Bitencourt que:
“resulta da comparação da direção finalista real com a direção finalista exigida para evitar lesões a bens jurídicos. A infração desse dever de cuidado representa o injusto típico dos crimes culposos. No entanto, é indispensável investigar o que teria sido, in concreto, para o agente, o dever de cuidado. E, como segunda indagação, deve-se questionar se ação do agente correspondeu a esse comportamento ‘adequado’. Somente nesta segunda hipótese, quando negativa, surge a reprovabilidade da conduta.”[17]
Apesar da lei de improbidade prever a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa (art. 10), muitos autores não a admitem na medida em que não existe desonestidade culposa, ou o agente quis ser desonesto e assim realiza a conduta ímproba ou não a pratica, razão pela qual parece heterodoxa a aceitação do ato desonesto decorrente de uma negligência do administrador.
O Ministro Napoleão Nunes Maia, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg no AREsp 21.662/SP não admite a conduta culposa para configuração do ato ímprobo, conforme se extrai dos excertos da emenda do citado julgado, para ele:
“Não se tolera, porém, que a conduta culposa dê ensejo à responsabilização do servidor por improbidade administrativa; a negligência, a imprudência ou a imperícia, embora possam ser consideradas condutas irregulares e, portanto, passíveis de sanção, não são suficientes para ensejar a punição por improbidade; ademais, causa lesão à razoabilidade jurídica o sancionar-se com a mesma e idêntica reprimenda demissória a conduta ímproba dolosa e a culposa (art. 10 da Lei 8.429/92), como se fossem igualmente reprováveis, eis que objetivamente não o são.
O ato ilegal só adquire os contornos de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvada pela má-intenção do administrador, caracterizando a conduta dolosa; a aplicação das severas sanções previstas na Lei 8.429/92 é aceitável, e mesmo recomendável, para a punição do administrador desonesto (conduta dolosa) e não daquele que apenas foi inábil (conduta culposa).”