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Da legitimidade da prisão temporária como medida de restrição da liberdade

14/10/2013 às 15:15
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A prisão temporária, apesar de decretada judicialmente, possui caráter administrativo e assemelha-se à prisão para averiguações, típica da ditadura militar.

O instituto da prisão temporária foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por força da Medida Provisória nº 111, de 24 de novembro de 1989, posteriormente convertida na Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Trata-se de uma espécie de prisão processual ou cautelar que restringe a liberdade de locomoção, por tempo determinado, a fim de possibilitar as investigações sobre crimes graves, durante a fase do inquérito policial.

Estabelece o artigo 1º da Lei nº 7.960/89, em seus incisos I, II e III, que a prisão temporária poderá ser decretada quando imprescindível para as investigações do inquérito policial, quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e, por fim, quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado por morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro.

A prisão temporária somente pode ser decretada pela autoridade judiciária, tendo tempo limitado de duração de cinco dias, prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade, com exceção da prática de crimes hediondos e de outros delitos graves, em que o prazo é mais dilatado. Desaparecendo os motivos que levaram à sua decretação ou ocorrendo a conclusão do inquérito policial, pode ser revogada antes do curso total do prazo inicialmente fixado. Em qualquer hipótese, a decisão que prorrogar ou decretar a prisão deve ser motivada, sob pena de a custódia temporária tornar-se ilegal.

No caso de crimes hediondos, há previsão no artigo 2º, parágrafo 4º, da Lei nº 8.072/90 para a decretação da prisão temporária por prazo mais dilatado, sendo este de até trinta dias, prorrogável por igual período em caso de extrema necessidade comprovada nos autos.

Um dos fundamentos que autorizam a decretação da prisão temporária refere-se à sua imprescindibilidade para as investigações do inquérito policial. Tal prisão possui finalidade de caráter precipuamente investigatório, uma vez que objetiva permitir à autoridade policial a coleta de elementos incidentes sobre as infrações penais e de sua autoria. Como bem ressalta João Gualberto Garcez Ramos, “a prisão temporária não é um instrumento para facilitação do trabalho investigatório da autoridade policial. É, isto sim, forma de viabilização às investigações e está, por essa razão, condicionada por motivos relevantes”[1].

Contudo, há de se ter em conta que as investigações oriundas do inquérito policial não apresentam as características próprias do processo, e sim conduzem a hipóteses sobre o fato a ser apurado e a alternativas para a solução do crime, as quais serão analisadas e eliminadas durante a fase processual, quando os meios de defesa nas suas diversas modalidades contribuirão para a elucidação dos fatos. Dessa forma, uma ordem de prisão durante a fase de inquérito policial mostra-se, no mínimo, temerária, pois ausentes os pressupostos das cautelares – “fumus boni juris” e “periculum in mora” – na fase de investigações.

Do mesmo modo, a prisão decretada pelo tão só fato de o indivíduo não possuir residência fixa afigura-se, em larga medida, desarrazoada. Conforme David Alves Moreira, “não se pode vincular tal condição ao cerceamento da liberdade do indivíduo sob pena de estarmos construindo um ‘direito do absurdo’, pois numa sociedade onde poucos possuem casa própria e muitos sequer têm onde morar, utilizar esse argumento tão frágil para decretar uma prisão seria cometer uma grande injustiça. Além do que, pouco importa ter ou não residência fixa quando o que está em questão é a prisão, considerando que ela está ligada a uma série de condições que a limitam como última medida a ser tomada e, portanto, quando extremamente necessária, o que não é o caso”[2].

Como último fundamento para a decretação da prisão temporária, fala a lei em “fundadas razões” relativamente à autoria de alguns crimes. Contudo, somente é possível falar-se em fundadas razões após concluídas as investigações e apurados os fatos, tendo sido oportunizado às partes o exercício da ampla defesa. Ou seja, as fundadas razões são detectáveis apenas quando da prolação da sentença, e não na fase do inquérito policial. Nesse sentido, David Alves Moreira sustenta que “admitir a prisão frente a esse fundamento seria relegar a um segundo plano o valor do contraditório, já que o indiciado nenhuma participação teve na formação daquelas razões, mas que são capazes de sustentar a prisão”[3].

A prisão temporária difere das outras medidas privativas de liberdade por ser aplicável somente aos indiciados, ao passo que as demais podem se referir tanto a estes quanto aos acusados. Tal se deve ao fato de a prisão temporária ser decretável apenas durante a fase do inquérito policial, atingindo, pois, somente os indiciados, e nunca os acusados pela prática de infração penal.

Em relação à prisão preventiva, a prisão temporária possui o diferencial de, em tese, já apresentar os dias de custódia predeterminados. Todavia, nada impede que, após transcorridos os dias determinados na temporária, seja em seguida decretada a prisão preventiva[4].

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Sendo assim, findo o inquérito policial e remetido a juízo durante o prazo de vigência da prisão temporária, deve o juiz analisar a hipótese de decretação da prisão preventiva ou determinar a imediata soltura do preso, uma vez que não haverá mais justificativa para manter o indiciado no cárcere por haver desaparecido o objeto da medida, que tinha por escopo facilitar a colheita de elementos de convicção para o oferecimento ou não da denúncia. Com efeito, Liberato Póvoa e Marco Villas Boas asseveram que “a manutenção da prisão temporária durante o processo foge à finalidade do instituto e invade o campo de serventia da prisão preventiva, medida específica de restrição à liberdade durante a fase do processo judicial”[5].

Importa frisar que a prisão temporária, assim como as demais medidas privativas de liberdade, deve obedecer ao princípio da proporcionalidade. Assim, pode ser aplicada apenas se a pena privativa de liberdade for uma possibilidade para o eventual condenado pelo crime investigado e, caso haja essa possibilidade, somente pode perdurar pelo tempo correspondente à pena máxima cominada ao crime. Dessa maneira, fica excluída a prisão temporária, por exemplo, no caso de contravenções penais e crimes de bagatela.

Conforme ressalta Heráclito Antônio Mossin, “indubitavelmente, a prisão temporária não ostenta em sua natureza jurídica nenhum instrumento voltado ao processo, como forma de garantia, mas projeta-se exclusivamente no campo investigatório de modo precário”[6]. De fato, o próprio legislador reconhece tal assertiva quando determina no parágrafo 7º do artigo 2º da Lei nº 7.960/89 que o preso seja colocado imediatamente em liberdade, decorrido o prazo de sua duração, “salvo se já tiver sido decretada sua prisão preventiva”.

Como se observa, a previsão legal de encarceramento temporário do indiciado no procedimento policial, a qualquer tempo, por razões de necessidade ou conveniência, contrasta com a tendência doutrinária moderna de que o recolhimento à prisão do autor da infração penal pressupõe o trânsito em julgado da sentença condenatória. Assemelha-se a prisão temporária, assim, à “prisão para averiguações” utilizada no tempo da ditadura no Brasil, na qual primeiro se prendia e depois se investigava. De acordo com Paulo Lúcio Nogueira, “a função da polícia é investigar primeiro e depois prender, preventivamente, se for o caso, que é uma espécie de prisão cautelar já existente na nossa sistemática. Mas prender para depois investigar não deixa de ser uma fonte de arbítrio”[7].

Nota-se, então, que a prisão prevista na Lei nº 7.960/89 constitui medida judicial odiosa, provisória e de cunho administrativo, pois, apesar de ser decretada judicialmente, possui caráter notadamente inerente a um poder de polícia administrativa balizado pelo juiz.


Bibliografia:

RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

MOREIRA, David Alves. Prisão Provisória: as medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal: de sua indevida aplicação, conseqüências e fundamentos à sua reparação. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996.

DI BÚSSOLO. Direito processual penal e sua prática. Porto Alegre: Síntese, 1999.

PÓVOA, Liberato; VILLAS BOAS, Marco. Prisão temporária. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1996.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol 2.

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987.


Notas

[1] RAMOS, João Gualberto Garcez. A tutela de urgência no processo penal brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 489.

[2] MOREIRA, David Alves. Prisão Provisória: as medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal: de sua indevida aplicação, conseqüências e fundamentos à sua reparação. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, pp. 96-97.

[3] MOREIRA, David Alves. Prisão Provisória: as medidas cautelares de natureza pessoal no processo penal: de sua indevida aplicação, conseqüências e fundamentos à sua reparação. Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, pp. 96-97.

[4] DI BÚSSOLO. Direito processual penal e sua prática. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 83.

[5] PÓVOA, Liberato; VILLAS BOAS, Marco. Prisão temporária. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 1996, p. 69.

[6] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, vol 2, pp. 423-424.

[7] NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 162.

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Sobre a autora
Kalinca de Carli

Procuradora Federal em Brasília (DF). Coordenadora de Licitações, Contratos e Convênios da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DE CARLI, Kalinca Carli. Da legitimidade da prisão temporária como medida de restrição da liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3757, 14 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25509. Acesso em: 23 abr. 2024.

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