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Direito fundamental social à moradia:

Breves problemáticas acerca de sua efetivação

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A efetiva participação popular é de crucial importância para que as políticas de efetivação do direito fundamental social à moradia sejam legitimadas e bem sucedidas.

O Estado Democrático de Direito trouxe a supremacia definitiva da Constituição, uma vez que se rege pelo princípio da legalidade e da legitimidade através da prática da virtude cívica. De acordo com a professora Maria Cristina Seixas Vilani (2002), esse tipo de Estado reconhece o direito de todos a um contexto cultural seguro e garantido para que os cidadãos possam viver em mútuo respeito. O princípio da igualdade social é também reconhecido, o que implica na necessidade de ações compensatórias para os grupos em posição de inferioridade na sociedade. Assim sendo, vê-se a importância de se efetivar os direitos humanos, principalmente os direitos sociais fundamentais assim previstos na Constituição Federal de 1988, que buscam uma igualdade de fato, providenciando o direito de todos a um mínimo de vida digna.

Nesse contexto, merece destaque a Emenda Constitucional de nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou a redação do art. 6º da Constituição Federal, elevando a moradia a status de direito social constitucional. Isso significa que todo cidadão tem o direito constitucional a uma moradia adequada, que é essencial para sua sobrevivência digna.

Porém, a existência elevada de favelas, cortiços, e pessoas vivendo em áreas de risco, mostra a deficiência em garantir esse direito de maneira efetiva a todos. De acordo com o IBGE, em 2008, um terço das 5.564 cidades brasileiras declarou ter favelas em seu território, sendo que dos 37 municípios mais populosos, com mais de 500 mil habitantes, apenas Cuiabá informou a inexistência de favelas; no município do Rio de Janeiro, cerca de um milhão e cem mil habitantes estavam morando nas favelas no ano 2000.

Isso se deve às várias barreiras econômicas, políticas e jurídicas que essa questão encontra, sendo a maior delas, como efetivar o direito fundamental social à moradia, garantindo o pluralismo e a universalidade dos direitos humanos que fundamentam o Estado Democrático de Direito.

 Primeiramente, para adentrar nessa problemática, é necessário compreender as características que englobam uma moradia adequada. Segundo o Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU, feito no dia 29 de maio a 12 de junho de 2004, os componentes essenciais que asseguram o direito de viver com segurança, paz e dignidade, são a segurança jurídica da posse contra despejos, deslocamentos forçados, e outros tipos de ameaça à posse; disponibilidade de serviços e infra-estrutura com acesso fácil a água potável, transporte, iluminação pública, saneamento básico; custo acessível da moradia, de modo que seja proporcional à renda tanto quanto possível; habitabilidade, com condições físicas e de salubridades adequadas; acessibilidade, contemplando os grupos mais vulneráveis; localização, de maneira que a moradia seja inserida na cidade; e por último, o elemento chave, a adequação cultural, na medida em que a moradia será adequada, quanto mais for respeitada a diversidade cultural e os padrões habitacionais oriundos dos usos e dos costumes das comunidades e grupos sociais.

Assim, para garantir esse direito fundamental social aos cidadãos, o Poder Público passou a promover programas habitacionais à luz do Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001), que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, reconhecendo a crise generalizada, nos dizeres do autor Edésio Fernandes (2003, p.199), de formas ilegais de utilização do solo para moradia, estabelecendo, portanto, diretrizes gerais da política urbana municipal para regularizar a situação, e também, os direitos dos brasileiros.

Ainda de acordo com o referido autor, essas formas de ilegalidade são conseqüência do processo de exclusão social e segregação espacial que tem caracterizado o crescimento urbano intensivo nos países em desenvolvimento. De acordo com pesquisa feita pelo Instituto Pereira Passos, instituição pública ligada ao planejamento urbano carioca, entre 1991 e 2000, a população das favelas cresceu 24% contra apenas 4% da cidade formal.

Na capital de Minas Gerais, a prefeitura promoveu ações concretas que atendem, prioritariamente, famílias com renda de até 3 salários mínimos. A Política Municipal de Habitação (PMH) atua através da Intervenção em Assentamentos Existentes (vilas e favelas) e Produção de Novos Assentamentos, buscando a redução do déficit qualitativo e quantitativo, respectivamente. Assim, alguns programas relacionados à produção de novas moradias que Belo Horizonte faz parte, são o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que de acordo com a Portaria nº 440 de 21 de Agosto de 2006, se destina ao atendimento da população cuja renda familiar mensal não ultrapasse R$ 1.800,00, e que não seja proprietária ou promitente compradora de imóvel residencial no município onde pretenda residir ou detentora de financiamento habitacional em qualquer localidade do país. O PAR é executado pela CAIXA, e funciona mediante construção e arrendamento de unidades residenciais, com opção de compra do imóvel no final do período contratado; o Programa Bolsa Moradia, que de acordo com a Lei 8.566/2003, consiste na concessão, pela Prefeitura, de benefícios financeiros (R$ 300,00), exclusivamente para subsidiar o pagamento de aluguel, por um período de 6 meses, tempo estimado para que o governo conclua a construção de conjuntos habitacionais, onde as famílias fixarão residência definitiva. Lembrando que o morador deverá arcar com as despesas referentes à água, luz, condomínio e IPTU, bem como promover eventuais reparos necessários para a manutenção do imóvel nas condições em que foi recebido. As famílias beneficiárias serão aquelas removidas de áreas de risco geológico – geotécnico, risco social ou em função de obras.

Há ainda, o Programa Minha Casa, Minha Vida, o maior programa habitacional que o Governo Federal e a Caixa Econômica Federal já fizeram, investindo R$ 34 bilhões, que objetiva garantir acesso à casa própria para mais cidadãos, e gerar mais empregos e renda para os brasileiros, com o esperado aumento de investimentos na construção civil. O programa consiste em uma forma de financiamento, que se inicia legitimando a posse do morador e termina garantindo-lhe a propriedade. As famílias que podem participar são aquelas que ganham até 10 salários mínimos, e as famílias com renda familiar de até 3 salários mínimos poderão financiar a casa com parcelas de no mínimo R$ 50,00, com 5% ou 6% de juros ao ano. O programa foi lançado em março de 2009, com a Medida Provisória nº 459, e terminou o ano com 22,9% da meta proposta de construir 1 milhão de moradias. Isso significa que foram feitos contratos de 229,9 mil moradias no país, sendo que 60,3% delas são financiadas por famílias com renda de até 3 salários mínimos, segundo dados liberados pela CEF. O programa não se mostrou muito eficiente, uma vez que o mercado imobiliário esperava que o número atingisse pelo menos 400 mil moradias até o fim do ano, como foi garantido pelo Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo em outubro de 2009.

Quanto à Intervenção em Assentamentos Existentes, Belo Horizonte é uma das cidades brasileiras com o maior trabalho de titulação, que contempla, ao mesmo tempo, a urbanização e a legalização da terra. No período entre 1986 a 2007, o trabalho de regularização fundiária beneficiou 40 comunidades e cerca de 64 mil pessoas, com 15.967 lotes aprovados e 11.719 escrituras emitidas, segundo a URBEL (Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte), um dos órgãos responsáveis pela implementação da PMH Popular criada em 1993.

O Programa de Regularização Fundiária contempla vilas, favelas e conjuntos habitacionais populares ocupados de forma desordenada ao longo do tempo, e possibilita a oficialização da denominação de logradouros públicos e facilita a implantação e ampliação de serviços públicos em regiões carentes. O morador se torna dono legal do imóvel onde reside, conquista um endereço oficial reconhecido pela cidade, passando a ter acesso a financiamento bancário ou crédito no comércio.

Porém, para Edésio Fernandes (2003), esses programas de regularização fundiária, que favorecem a transferência de títulos individuais de propriedade plena, e que têm sido a política mais freqüentemente adotada como resposta ao problema generalizado de ilegalidade urbana, são programas de caráter curativo, precisando ser combinados com investimentos públicos e políticas sociais e urbanísticas que gerem opções adequadas e acessíveis de moradia social para os grupos mais pobres.

Para o autor, o cerne da questão está na natureza excludente da ordem jurídica em vigor, principalmente a visão individualista dos direitos de propriedade imobiliária, de modo que, para democratizar as formas de acesso à moradia, seria necessária uma reforma jurídica ampla e não políticas habitacionais isoladas.

Com efeito, a regularização ou titulação é uma medida cara, que pesa no orçamento público, e não garante qualidade de vida. O Estado deveria adotar um instrumento que resolvesse o problema em sua origem, promovendo terras já regularizadas, porque remediar o problema existente não é uma solução, uma vez que enquanto se regulariza uma favela, surgem muitas outras.

A partir dos exemplos de programas habitacionais elencados acima, nota-se a preocupação constante do governo em garantir a transmissão de propriedade, padronizando as formas de habitação e confundindo, assim, o direito à moradia com o direito à propriedade.

É certo que a propriedade imobiliária não é a única forma de se efetivar uma moradia adequada, que, conforme o conceito determinado pela ONU, é um direito de maior abrangência, podendo ser alcançado mais facilmente pela posse.

Enquanto o direito à moradia é um traço característico do Estado Social, devendo ser preservado pelo Estado, o direito à propriedade é um direito fundamental individual, característico do Estado Liberal, como garantia do cidadão contra o Estado. A associação entre os dois direitos acaba por atrapalhar a efetivação de uma moradia adequada, pois não garante todos os elementos que a compõe como se vê nos programas habitacionais que não são bem sucedidos.

De acordo com Edésio Fernandes (2003), estão certos aqueles municípios que, como Recife e Porto Alegre, utilizam do recurso da Usucapião Urbano Especial, que dá o direito à posse e que tem possibilitado maior controle pelos governos e pelas comunidades locais das transferências dos títulos pelos beneficiários originais, de tal forma que o investimento público não seja apropriado pelos promotores imobiliários privados.

O artigo 10 do Estatuto da Cidade contempla a Usucapião Especial de imóvel urbano, admitindo sua utilização de forma coletiva. Nas favelas que ocupam área de propriedade particular, esse instrumento deve ser adotado sempre que possível, outorgando títulos de concessão de direito real de uso aos ocupantes. Essa modalidade de usucapião privilegia a população de baixa renda que ocupa em conjunto determinado imóvel urbano e nele permanece por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, para fins de moradia.

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A Usucapião Especial Urbana Coletiva contempla as áreas urbanas com mais de 250m² onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, e desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Não se exige que estes possuidores atuem com animus domini (sentimento de ter a coisa como sua), bastando possuir o imóvel de forma mansa e pacífica.

Nos dizeres de Carlos Magno Miqueri da Costa (2009, 244p.), esse instrumento é uma possível solução para a tentativa de regularização fundiária das favelas e aglomerados oriundos de invasões ou loteamentos clandestinos, que só será efetivada com plenitude quando estiverem unidas pelo campo pluridimencional a parte jurídica, a parte urbanística e a cidadania, no sentido de titulação para o ocupante, infra-estrutura que torne possível os direitos humanos, e políticas de inclusão social para possibilitar o exercício da vida pública.

Finalmente, é preciso tratar do problema da homogeneização dos programas habitacionais, que formam uma barreira à efetivação do direito fundamental à moradia adequada, porque desrespeitam um elemento caracterizador que é a diversidade cultural e os padrões habitacionais oriundos dos usos e costumes das comunidades e grupos sociais. É necessário, portanto, vencer o desafio de contemplar o pluralismo garantindo, ao mesmo tempo, o conteúdo mínimo de dignidade humana.

 Quanto a essa questão, Noberto Bobbio (1992), ensina que a busca de um fundamento absoluto para os direitos humanos é muito complexa e difícil. Isso porque são valores últimos antinômicos, além do fato de que a sociedade sofre transformações políticas, econômicas e culturais, fazendo com que os direitos fundamentais mudem de época para época. Assim, o autor acredita no universalismo histórico, segundo o qual o homem decide os direitos que em sua época devem ser universais.

Já a autora Flávia Piovesan (2009) trata dos relativistas, que acreditam no primado do coletivismo, de maneira que seja necessário respeitar as diferenças e as peculiaridades de cada grupo social para a verdadeira legitimidade dos direitos fundamentais, uma vez que o contexto cultural é também fonte de validade dessas normas. Dessa forma, o universalismo deve existir somente no nível em que o mínimo existencial de dignidade humana seja garantido por lei a todas as pessoas, sendo reconhecido como dever do Estado, considerando na prática um povo diferente, respeitando cada caso concreto. Isso se torna possível, ao chamar os diferentes para o discurso público, para a fundamental prática da virtude cívica.

Concluindo, a moradia digna e a inclusão na cidade são determinantes, no sentido em que retomam no cidadão o espírito de cidadania e vida cívica, essenciais no Estado Democrático de Direito. E isso faz com que essas instituições sejam interdependentes, na medida em que a efetiva participação popular é de crucial importância para que as políticas de efetivação do direito fundamental social à moradia sejam legitimadas e bem sucedidas de forma plena.

Em Belo Horizonte, a atual política habitacional mais próxima dessa realidade é a produção de conjuntos habitacionais financiados com recursos do Orçamento Participativo da Habitação (OPH) que, a partir do princípio fundamental da democracia, propicia a cada dois anos uma dinâmica participativa com a criação de espaços para discussão e articulação de políticas públicas destinadas à produção habitacional.

Os empreendimentos são destinados às famílias de baixa renda filiadas a um dos 172 Núcleos do Movimento de Luta por Moradia, que morem em Belo Horizonte por mais de dois anos e não possuam casa própria. De acordo com a prefeitura, até o ano de 2008 foram entregues 3.211 moradias, em 22 empreendimentos habitacionais distribuídos em várias regiões da cidade. Destes, 13 conjuntos, que representam um universo de 1.980 unidades habitacionais, foram edificados através da gestão pública. Os nove conjuntos construídos por autogestão totalizam 1.231 unidades habitacionais.

As moradias produzidas pelo OPH são construídas dentro da cidade e contam com infra-estrutura e acesso a serviços como transporte, saúde e educação, atendendo aos requisitos de uma moradia adequada. Porém, esse é só um passo na direção da efetivação plena do direito humano à moradia, e o caminho a se seguir, necessariamente, perpassa o desenvolvimento e engajamento global da cidadania, um comportamento que ainda se espera da sociedade.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 217p.

COSTA, Carlos Magno Miqueri da. Direito Urbanístico Comparado. Juruá Editora, 2009. 338 p.

FERNANDES, Edésio. A Lei e a Ilegalidade na Produção do Espaço Urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Disponível em:  www.ibge.gov.br. Acesso em: 02 abr 2013.

INSTITUTO MUNICIPAL DE URBANISMO PERERIA PASSOS - IPP. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/ipp/. Acesso em: 02 abr 2013

INSTITUTO POLIS. Disponível em: http://www.polis.org.br/tematicas2.asp?cd_camada1=16&cd_camada2=113. Acesso em: 02 abr 2013

MINISTÉRIO DAS CIDADES. Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao. Acesso em: 02 abr 2013

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. XLII, 556 p.

PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE – PBH. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?app=habitacao. Acesso em: 02 abr 2013

PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA. Disponível em: http://www.minhacasaminhavida.com.br/programa.php. Acesso em: 02 abr 2013.

SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. 160p.

VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: Fundamentos doutrinários e desdobramentos históricos. Revista: Caderno de Ciências Sociais. Belo Horizonte, v.8, n.11. Dezembro, 2002. p.47-64.

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Sobre a autora
Virginia Junqueira Rugani Brandão

Assessora Jurídica da Procuradoria do ITER/MG; bacharel em Direito pela PUC MINAS em 2012; Pesquisadora/extencionista do NUJUP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Virginia Junqueira Rugani. Direito fundamental social à moradia:: Breves problemáticas acerca de sua efetivação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3760, 17 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25532. Acesso em: 26 abr. 2024.

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