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O crime de estelionato e a defraudação de veículos garantidos mediante alienação fiduciária (Decreto-Lei 911/1969)

24/10/2013 às 13:14
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Configuraria o crime de estelionato a conduta do cliente de uma instituição financeira defraudar bem dado em garantia de alienação fiduciária em um contrato mercantil, como no caso de desmanchar um veículo?

Muitos credores, principalmente instituições financeiras, tem amargado sérios prejuízos relativos à seguinte problemática: “sucateamento” ou “depenamento” (retirada de partes essenciais ou falta de conservação e guarda) de veículos automotores por parte dos clientes para intencionalmente fraudar contratos com garantia de alienação fiduciária e frustrar o êxito nas ações de busca e apreensão ajuizadas.

Em relação à escassez dos casos levados ao juízo criminal e ao silêncio da doutrina em se debruçar nesta questão, fica a seguinte indagação ainda não enfrentada: configuraria o crime de estelionato a conduta do cliente de uma instituição financeira ou outro tipo de credor defraudar bem dado em garantia de alienação fiduciária em um contrato mercantil, como no caso de “depenar” (isto é, “desmanchar” o veículo dado em garantia, seja retirando partes essenciais do mesmo, como motor, pneus, portas, etc., seja pela enorme falta de cuidado e conservação)? Comumente, a instituição financeira obtém conhecimento do fato apenas quando do cumprimento do mandado de busca e apreensão pelo oficial de justiça, após ajuizada a ação cabível (busca e apreensão com base no Decreto-Lei nº 911/1969) para satisfação do débito e retomada do bem. Considera-se, nesta análise, que quando da realização do contrato entre as partes, o veículo estava em perfeito estado de conservação, uma vez avaliado pela própria instituição vítima da suposta fraude.

Inicialmente, deve-se verificar o que rege o art. 171 do Código Penal, que descreve o crime de estelionato e a correspondente pena:

Estelionato

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de 01 (um) a 05 (cinco) anos, e multa.

§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.

O que se observa é que o legislador penal erigiu certas modalidades de estelionato como especiais para figurar no rol do § 2º, art. 171 do CP. São figuras típicas que mereceram especial atenção e, assim, positivação fora do crime de estelionato em sua fórmula básica, destacando-se a fim de se evitar qualquer dúvida quanto à tipificação dessas modalidades, existindo também certas peculiaridades que as distinguem do tipo fundamental (1):

§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:

Disposição de coisa alheia como própria

I - vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria;

Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;

Defraudação de penhor

III - defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;

Fraude na entrega de coisa

IV - defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém;

Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro;

Fraude no pagamento por meio de cheque

VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.

Uma vez elucidadas as figuras típicas do estelionato, cabe trazer neste momento as considerações a respeito do que se trata esse crime.

A palavra “estelionato” deriva de “stellio”, que significa lagarto que muda de cores. O estelionatário, assim, figuraria como um camaleão,

justamente pela qualidade que tem esse animal para mudar de cor, confundindo sua presa, facilitando, assim, o bote fatal, bem como para poder fugir, também, dos seus predadores naturais, que não conseguem, em virtude de suas mutações, perceber a sua presença, tal como ocorre com o estelionatário que, em razão de seus disfarces, sejam físicos ou psíquicos, engana a vítima com sua fraude, a fim de que tenha êxito na sua empresa criminosa (GRECO, 2007, p. 244).

Cumpre destacar que muitos ainda insistem em traçar diferenças pontuais da fraude na esfera civil para a fraude penal, buscando critérios para distinguir o estelionato do mero ilícito civil impunível. No entanto, não há verdadeiramente diferenciação alguma. A fraude é sempre uma só. Não cabe falar na existência de uma fraude civil, de um lado, e uma fraude penal, de outro. Não existe critério científico predeterminado que, abstrata ou concretamente, busque diferenciar com segurança a fraude civil da fraude penal. Ademais, as tentativas de diferenciação serão sempre consideradas supérfluas, arbitrárias e fonte de danosas confusões. É o legislador, por questões de política criminal, quem cria a figura típica, quem determina a gravidade da fraude. Por isso, o que importa é verificar se todos os requisitos do estelionato estão presentes em determinado fato, para que o mesmo seja penalmente punível, sejam quais foram as relações, a modalidade e a contingência da conduta do agente (2).

Exemplificando o que foi assinalado no parágrafo anterior, podem ser citados os seguintes casos que configuraram crime de estelionato, embora, à primeira vista, muitos intérpretes poderiam analisá-los como mero ilícito civil, sem relevância penal:

  1. Venda de carnês quando o agente faz a vítima acreditar que ainda trabalha para a empresa que o expedira;

  2. Irregularidade no sorteio de bingo, de modo que apenas o agente poderia ser o vencedor do prêmio;

  3. Realização de contrato para obtenção de financiamento, mas com garantia fiduciária inexistente;

  4. Compra a prazo e imediata venda à vista por preço menor;

  5. Inadimplência contratual preconcebida (3).

Já no que tange aos elementos essenciais para se configurar o estelionato em sua figura básica, os mesmos são facilmente visualizados no próprio art. 171, caput, do CP:

  • Obter para si ou para outrem vantagem ilícita;

  • Causando prejuízo alheio;

  • Induzindo ou mantendo alguém em erro;

  • Mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

Veja-se que o mais importante no crime de estelionato é a presença do binômio vantagem ilícita – prejuízo alheio. Ou seja, o agente causador da fraude obtém, para si ou para outra pessoa, uma vantagem que não encontra tutela no ordenamento jurídico, devendo ser, ainda, uma vantagem de cunho econômico, segundo advertem os autores Rogério Greco, Julio Mirabete, Fernando Capez, Damásio de Jesus, Magalhães Noronha, entre outros. Ademais, deve restar patente um prejuízo ao sujeito passivo (vítima) também de ordem patrimonial, isto é, uma perda patrimonial (4).

Igualmente fazem parte do núcleo do tipo penal o emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento que induza ou mantenha alguém em erro:

  • Artifício é a fraude no sentido material, isto é, significa produto de arte, quando o agente se recorre à arte para se disfarçar e manter em erro a vítima, por exemplo.

  • Ardil é a fraude em sentido imaterial, ou seja, mais intelectualizada, dirigindo-se diretamente à inteligência ou sentimento da vítima, excitando emoções no sujeito passivo através da conduta do agente, como, por exemplo, simulando uma doença para induzir em equívoco a vítima, mas sem nenhum disfarce.

  • O crime de estelionato também pode ser cometido por qualquer outro meio fraudulento, sendo esta expressão genérica o que se denomina interpretação analógica, enquadrando aqui qualquer fraude pensada e praticada pelo criminoso (o artifício e o ardil estão incluídos nesta expressão, inclusive, o que torna a distinção acima traçada sem nenhuma importância prática).

  • O agente, ainda, deve induzir ou manter a vítima em erro, sendo isso a falsa percepção da realidade, seja como uma concepção equivocada da realidade (erro), fazendo a vítima acreditar em determinada coisa quando a sua representação no mundo real é outra; seja fazendo nascer na vítima a representação falsa da realidade (induzir em erro).

Assim, as premissas que se deve partir para incidir o caso concreto a uma das modalidades especiais do crime de estelionato são:

  • i) Observar o que foi pactuado no contrato com garantia de alienação fiduciária e seus anexos. Como normalmente é feita uma avaliação prévia do veículo a ser dado como garantia, verifica-se que o mesmo se apresenta em estado regular de conservação, passando o credor, neste caso, a acreditar no cliente e lhe conceder o empréstimo no valor contratado.

  • ii) Verificado, após realizado o contrato, que o cliente não honrou com o compromisso pactuado de efetuar o pagamento das parcelas em dia, a instituição financeira, não restando outra alternativa (caso esgotados os contatos e cobranças feitas extrajudicialmente), ajuizará ação de busca e apreensão com base no Decreto-Lei nº 911, de 1969, como forma de apreender o bem dado em garantia e satisfazer o débito pela instituição sofrido.

  • iii) O grande prejuízo e consumação do possível crime de estelionato, em sua forma especial destacada no art. 171, § 2º, inciso III, do CP (ou inciso IV, como se verá adiante), acontece neste momento: ao cumprir o mandado de busca e apreensão, o oficial de justiça apreende veículo que apenas está a “carcaça”, totalmente sucateado, “depenado”, em péssimo estado de conservação, com, por exemplo, motor trocado ou ausente, pneus carecas ou ausentes, arranhões, amassados, sem portas ou estas danificadas, etc. Uma verdadeira sucata, interessando muito mais aos ferros-velhos.

O que se observa nesta conduta do cliente/devedor? Um simples inadimplemento? Um mero ilícito civil impunível? Com certeza, a resposta a estas indagações deve ser negativa.

De fato, o ordenamento jurídico brasileiro e a jurisprudência que se consolidou no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) não permitem mais a prisão civil em casos de depositário infiel, o que abrange o caso de prisão civil de alienante fiduciário infiel. O que restou consolidado foi a interpretação extensiva dada ao art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988 (5) combinado com o art. 7º, item 7, do chamado Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), de 22 de novembro de 1969 (6), porém promulgada pelo Brasil por meio do Decreto nº 678 somente em 06 de novembro de 1992, devendo ser observada também no âmbito interno. A interpretação a que se chega desses dispositivos é justamente a vedação da prisão civil por dívidas, sobretudo a proibição da prisão do depositário infiel (7).

Apesar disso, a visão que se deve ter é outra: não se cogita em requerer a prisão civil do depositário infiel, mas sim a prisão penal daquela pessoa que atuou com fraude à lei penal, na conduta típica de um estelionatário, iludindo a instituição financeira para obter vantagem ilícita em prejuízo alheio.

Caso se pense na aplicação do delito do inciso III (agente que “defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado”), uma outra questão interessante e que possa gerar dúvidas e interpretações equivocadas aparece: embora o dispositivo específico do inciso III expresse que se trata da garantia conhecida como “penhor” (“garantia pignoratícia”), a leitura que se deve dar ao dispositivo é sistemática, encontrando respaldo para enquadrar a garantia de alienação fiduciária de veículo e outros bens no Código Civil de 2002 e no Decreto-Lei 911/1969. Claro que deve ser analisada a questão também à luz da inadmissibilidade no Direito Penal de fazer qualquer interpretação extensiva ou analógica para prejudicar o acusado, sobretudo nos casos em incluir algo que o legislador não consagrou na lei.

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O Código Civil de 2002 assim disciplina a matéria sobre a garantia do penhor de veículos:

Art. 1.431. Constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação.

Parágrafo único. No penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, as coisas empenhadas continuam em poder do devedor, que as deve guardar e conservar.

(...)

Art. 1.461. Podem ser objeto de penhor os veículos empregados em qualquer espécie de transporte ou condução.

Art. 1.462. Constitui-se o penhor, a que se refere o artigo antecedente, mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, e anotado no certificado de propriedade.

Parágrafo único. Prometendo pagar em dinheiro a dívida garantida com o penhor, poderá o devedor emitir cédula de crédito, a forma e para os fins que a lei especial determinar.

Art. 1.463. Não se fará o penhor de veículos sem que estejam previamente segurados contra furto, avaria, perecimento e danos causados a terceiros.

Art. 1.464. Tem o credor direito a verificar o estado do veículo empenhado, inspecionando-o onde se achar, por si ou por pessoa que credenciar.

Art. 1.465. A alienação, ou a mudança, do veículo empenhado sem prévia comunicação ao credor importa no vencimento antecipado do crédito pignoratício.

Art. 1.466. O penhor de veículos só se pode convencionar pelo prazo máximo de dois anos, prorrogável até o limite de igual tempo, averbada a prorrogação à margem do registro respectivo.

Ocorre que apesar de existirem diferenças entre o penhor de veículos e a alienação fiduciária de bens móveis (normalmente de veículos automotores), o certo é que o Código Penal, oriundo da década de 1940, é arcaico quando em comparação com o atual Código Civil e também quanto ao Decreto-Lei nº 911, de 1969, que regula a alienação fiduciária e dá outras providências.

Decerto, o Decreto-Lei nº 911/1969 faz menção somente a um tipo penal específico do estelionato, qual seja, quando o agente alienar ou der em garantia a terceiros coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficando sujeito à pena prevista no art. 171, § 2º, inciso I, do CP, conforme expressamente previsto no art. 66, § 8º, da Lei nº 4.728/1965 com a redação dada pelo art. 1º do DL 911/69. Neste caso [agente/devedor que vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia (do credor/instituição financeira) como própria], não há dúvidas que incide o disposto no art. 171, § 2º, inciso I, do CP, desde que configuradas a materialidade e a autoria do delito. Entretanto, o caso que aqui se demonstra é outro, e não se pode somente se apegar a este tipo especial de estelionato nas fraudes perpetradas em contratos de alienação fiduciária em garantia de bens móveis.

O que o legislador quis estabelecer neste inciso III foi o seguinte: a) não existirá crime caso o objeto do delito seja coisa imóvel; b) não há o delito quando a coisa esteja garantida por hipoteca; c) não ocorre o crime quando a alienação ou ocultação, abandono etc. ocorre com o consentimento do credor; d) não ocorre o crime deste inciso quando o objeto seja o bem penhorado como garantia da execução (medida processual de garantia do juízo); e) não há crime deste inciso quando o objeto do delito não permanecer em poder do devedor.

Percebe-se do item “e”, assim, que o crime do art. 171, § 2º, inciso III, do CP, apenas se configura quando o objeto permanecer em poder do devedor em determinadas situações, expressamente previstas na legislação, por força da chamada cláusula constituti.

Ou seja, não podem existir distinções quanto à aplicação do inciso III também para os casos de garantia de alienação fiduciária de veículo, pois o bem ficará em posse direta do devedor/depositário, e não com o credor, o qual só terá a posse de forma indireta da coisa móvel alienada (vide art. 66, caput, da Lei nº 4.728/65, com a redação dada pelo DL 911/69).

Passadas essas inquietações quanto à incidência do crime de estelionato aos casos de defraudação do bem móvel alienado fiduciariamente, compreende-se que a defraudação pode ocorrer mediante alienação (venda, doação, etc.) ou por outro modo, como, por exemplo, por destruição, desmanche, abandono, ocultação, etc., podendo, inclusive, ser uma defraudação parcial (exemplo: devedor que vende parte do gado garantido como penhor em contrato mercantil).

A consumação ocorre com a efetiva alienação ou destruição da garantia (efetiva defraudação), sendo a tentativa plenamente possível.

Deve existir o dolo do agente, consubstanciado na vontade livre e consciente do agente em defraudar a garantia mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo (sendo importante reiterar: por destruição, desmanche, abandono, ocultação, etc.).

Quanto aos casos práticos já vivenciados no Poder Judiciário, de fato, na jurisprudência brasileira não são muitos, por isso não foram encontrados. Talvez não se tenha dada a devida atenção ao fato tal como aqui descrito. Inclusive, a doutrina pátria também não trata especificamente sobre a matéria, pois, nas raras vezes que discute o tema, disserta tão somente sobre a alienação de veículo garantido em contrato de penhor, não da alienação fiduciária com base do DL 911/69, ou, quando remete ao DL 911, alude apenas ao inciso I do art. 171, § 2º, do CP, que é aquele crime cujo agente vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria (já mencionado no próprio Decreto-Lei 911/69).

Frisa-se que, caso não seja aceita a tese de que estes casos configuram a conduta criminosa do art. 171, § 2º, inciso III, do CP, no mínimo, poderá ser enquadrada tal conduta nas iras do art. 171, § 2º, inciso IV (agente que “defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém”) ou, até mesmo, na própria formulação básica do crime de estelionato (art. 171, caput, do CP).

O inciso IV do art. 171, § 2º, remete ao delito da “fraude na entrega de coisa”, referindo-se a lei a um dever de entrega do sujeito ativo (o cliente da instituição financeira) para com o sujeito passivo (a vítima, ou seja, a instituição financeira). Portanto, é pressuposto elementar para a ocorrência do crime a obrigação de entrega de coisa certa, que derive de lei, ordem judicial ou contrato.

Mesmo assim, permanecendo a negativa em se enquadrar a conduta do agente em uma das duas hipóteses suso mencionadas, cabe, indubitavelmente, incidir a fórmula básica do crime de estelionato, insculpida no art. 171, caput, do Código Penal, uma vez presentes todos os elementos essenciais deste tipo de delito contra o patrimônio.

Portanto, não deve haver qualquer razão negativa em não se enquadrar o caso acima descrito como crime de estelionato, seja enquadrando-o no inciso III ou IV das modalidades especiais do estelionato insculpidas no art. 171, § 2º, CP, seja utilizando a fórmula básica do delito, o clássico art. 171 do Código Penal.


NOTAS

1. Nesse sentido: MIRABETE, 1998, p. 301; BITENCOURT, 2013, p. 283-284.

2. Nessa linha: GRECO, 2007, p. 241; MIRABETE, 1998, p. 294.

3. Todos os exemplos são trazidos por Julio Fabbrini Mirabete (1998, p. 294), muitos julgados pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.

4. Vide, por todos: CAPEZ, 2005, p. 506. Apesar desta posição, há na doutrina aqueles que sustentam que a vantagem não necessariamente deve ser somente de natureza econômica. O pensamento desta última posição é bastante interessante porque, na verdade, embora o crime de estelionato esteja previsto na parte do Código Penal que disciplina os “crimes contra o patrimônio”, é o prejuízo sofrido pela vítima que deve ter natureza econômica, e não propriamente a vantagem injusta, ilegal e indevida obtida pelo agente (nesse sentido: BITENCOURT, 2013, p. 280).

5. Art. 5º, inciso LXVII, CF/88: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

6. Art. 7º, item 7, Pacto de San José da Costa Rica: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

7. Todavia, há ainda uma celeuma que parece longe de ser superada: o art. 1.287 do Código Civil de 1916 expressamente autorizava a prisão civil do depositário infiel: “seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos (art. 1.273)”. Já o Decreto-Lei 911/1969 estabelece que, caso não encontrado o bem alienado fiduciariamente ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão da ação de busca e apreensão para ação de depósito (art. 901 e seguintes do Código de Processo Civil). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por sua vez, foi somente ratificada pelo Brasil em 1992, passando a valer no sistema jurídico interno, prevê que deve existir somente a prisão civil por dívidas do devedor de obrigação alimentar, e mais nenhuma. No entanto, o Código Civil de 2002, o qual entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, ainda traz a mesma disposição do antigo art. 1.287, CC/1916: “seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos”. A interpretação a que se chega, dessa maneira, é que a Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, inciso LXVII, não determinou a prisão civil nos casos de devedor de alimentos e depositário infiel, mas apenas fez expressa permissão para que a legislação ordinária assim preveja a prisão nesses casos. A questão sobre a prisão civil do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia se encontra perfeitamente prevista (Lei nº 5.478/1968, arts. 1.694 a 1.710 do Código Civil de 2002 e art. 733, § 1º, do CPC) e sem qualquer ressalva pela CF/88 ou pelo Pacto de San José da Costa Rica. Já a prisão civil do depositário infiel, contrariamente, encontra restrição no âmbito externo pelo referido Pacto, o qual somente fazia alusão à exceção da prisão civil por dívidas do devedor de obrigação alimentícia, mas não encontra restrição na Constituição Federal de 1988. Ocorre, porém, que o atual Código Civil é posterior à ratificação pelo Brasil do Pacto de San José da Costa Rica. E, sendo uma legislação ordinária especial e posterior, considerando, ainda, que nada impede no âmbito interno a existência de lei nova para criar novamente a possibilidade da prisão civil do depositário infiel, alguns intérpretes do direito concluem que ainda permanece válida a prisão civil do depositário infiel, sendo equivocadas as interpretações, principalmente do Supremo Tribunal Federal, em não admiti-la no sistema jurídico interno brasileiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. V. 3. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. V. 2. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial (arts. 155 a 249 do CP). V. 3. 4. ed. rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2007.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 a 234 do CP). V. 2. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 1998.

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Sobre o autor
Vitor Gonçalves Machado

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera/LFG. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera/LFG. Bacharel em Direito pela UFES. Advogado do Banco do Estado do Espírito Santo. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4463439U4.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Vitor Gonçalves. O crime de estelionato e a defraudação de veículos garantidos mediante alienação fiduciária (Decreto-Lei 911/1969). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3767, 24 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25605. Acesso em: 22 dez. 2024.

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