Em primeira instância o réu foi condenado por roubo agravado (CP, art. 157, § 2º, inc. I) em razão do emprego de arma de brinquedo. O TACRIM-SP, com sabedoria, afastou a causa de aumento de pena entendendo que arma de brinquedo não é arma. O Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento na Súmula 174 do STJ ("No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena"), interpôs Recurso Especial (213.054) visando à reforma do acórdão, com restabelecimento da decisão de primeira instância.
O relator do REsp, Min. José Arnaldo da Fonseca, negou provimento ao recurso. Na ocasião, por deliberação unânime da 5ª Turma do STJ, decidiu-se levar o caso para a 3ª Seção, para se discutir concomitantemente não só o caso concreto senão também a própria (in) subsistência da Súmula citada.
Em 26.09.01 o assunto entrou na pauta da 3ª Seção do STJ.
Votou nesse dia em primeiro lugar o Min. Edson Vidigal que, aliás, acabou ficando vencido e isolado. Inclinando-se pelo questionadíssimo Direito penal subjetivo que, historicamente, em detrimento da objetiva e concreta afensa ao bem jurídico, faz preponderar o que o sujeito queria ou mesmo sua pura intenção (Willenstrafrechet) ou a simples impressão da vítima ou ainda o Direito que o juiz gostaria que fosse vigente, dava provimento ao recurso para restaurar a eficácia da sentença do magistrado "a quo".
Em sua prolongada, percuciente, arguta e, em certos momentos, espetacular (justice spectacle) argumentação, sem atentar, entretanto, para o fato de que o Direito penal de cunho eminentemente subjetivo foi sustentado no Brasil por uma diferente Escola de Direito penal (Hungria, Noronha etc.) e, no estrangeiro, pelo positivismo criminológico italiano, Escola de Kiel (nazismo), finalismo de Welzel, Armin Kaufmann, Zielinsky etc., sublinhou:
(a) que o importante é se a arma é capaz de intimidar não a sua efetiva potencialidade lesiva; (b) que as armas de brinquedo são hoje extremamente sofisticadas (neste momento o Min. Vidigal abaixou-se e retirou de uma mala três armas de brinquedo que trazia consigo, empunhando-as com a mesma veemência da sua argumentação); (c) que a onda de violência no país deve ser contida, controlada; (d) citando Dias Trindade, enfatizou que as interpretações penais não podem ser favoráveis aos "fascínoras" e "meliantes"; (e) que nas guerras do Oriente Médio podem estar fazendo uso dessas sofisticadas armas de brinquedo; (f) que a violência no país tem mais relevância que os livros e os mercados editoriais etc.
Todos os demais Ministros que votaram em seguida, embora ressaltando o brilhantismo da sustentação do Min. Vidigal, o respeito que nutrem pela sua pessoa e doutrina, seguiram o relator e negaram provimento ao REsp.
A argumentação desenvolvida por essa corrente amplamente majoritária (Ministros Félix Fischer, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Jorge Scartezzini e Paulo Gallotti) foi a seguinte: (a) o Direito penal representa um conjunto de princípios garantistas que não podem ser superados por argumentos supralegais; (b) os argumentos supralegais podem abrir uma brecha perigosa para as liberdades fundamentais; (c) o agravamento da pena pelo uso de arma de brinquedo fere o princípio elementar da reserva legal; (d) esse agravamento da pena, ademais, constitui verdadeiro "bis in idem"; (e) a arma de brinquedo deve ser considerada como circunstância judicial no momento da fixação da pena; (f) tratar o réu que usa arma de brinquedo de forma igual ao que usa arma verdadeira significa patente violação ao princípio da proporcionalidade; (g) argumentos supralegais valem de lege ferenda, não de lege lata; (h) os livros e os mercados editoriais são relevantes para a construção de um Direito penal previsível e seguro; (i) que não deve existir Súmula sobre temas não pacificados na jurisprudência; (j) que a arma de brinquedo serve tão-somente para intimidar a vítima e configurar o delito de roubo (não para agravar a pena); (l) que o uso de arma de brinquedo está muito mais próximo da fraude que da violência; (m) que o "caput" do art. 157 fala em "grave ameaça" enquanto o § 2º, inc. I, fala em emprego de arma; (n) que está proibida a analogia in malam partem no Direito penal; (o) que arma, conceitualmente, é sempre objeto de ataque; (p) que o juiz não pode em suas decisões adotar o mesmo simbolismo do legislador, que fabrica leis penais a cada momento par atender aos reclamos midiáticos ou sociais; (q) que o cancelamento da Súmula 174 não significa um "salvo conduto" para a violência; (r) que as súmulas não podem engessar eternamente o Direito; (s) que o relevante é ter presente a incolumidade física não a psíquica da vítima para o efeito do agravamento da pena; (t) que o conceito (histórico) de arma no § 2º, inc. I, já vinha dado pelo antigo art. 19 da LCP (arma verdadeira) etc.
O julgamento ainda não terminou definitivamente porque o Min. Fontes de Alencar pediu vista do processo. Por ora, portanto, temos seis votos pelo cancelamento da Súmula 174 e um voto contra. Como se vê, é praticamente impossível a reversão da votação.
Conclusão:
é iminente o cancelamento da Súmula 174 do STJ, que permite o agravamento da pena no roubo quando há emprego de arma de brinquedo. Em termos práticos isso significa que o emprego de arma dessa natureza pode ser relevante para a fixação da pena (CP, art. 59) não, porém, como causa de aumento.O julgamento da 3ª Seção do STJ, embora não tenha enfocado diretamente aspectos penais sumamente relevantes na atual doutrina penal (princípio da ofensividade, princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, abominação do perigo abstrato etc.), tem a mesma importância histórica, para a construção de um novo Direito penal, mais justo e mais proporcional, que aquela decisão do Colendo STF de 14.02.01, sobre a derrogação da primeira parte do art. 32 da LCP (dirigir veículo sem habilitação) pelo art. 309 do Código de Trânsito brasileiro.
Em momentos conturbados como o atual, particularmente nos países que vivem com turbante, não são poucos os instantes que nos invade a sensação de que tudo está perdido, que mais uma guerra pode ser desencadeada, que as guerras são momentos tristes da civilização etc.
Mas quando vemos o Congresso norte-americano, apesar de toda pressão, pedir prazo para avaliar com prudência a nova e preocupante "legislação americana de guerra", quando vemos decisões corajosas e acertadas como as mencionadas (STF e STJ), retomamos a "certeza" de que o homem, malgrado todo relativismo e flexibilização da era globalizada ou informacional, ainda é capaz de discernimento, equilíbrio e razoabilidade. Isso é muito bom porque a utopia, como se sabe, é o combustível que alimenta pessoas como nós que, na vida, optamos em ser só professores.
P.S. 1: Com a sábia decisão do STJ livramo-nos do bizarro, do grotesco. Por quê? Porque se arma de brinquedo é arma, com diz Lênio Streck, ursinho de pelúcia é urso, mulher inflável é mulher (e pode ser estuprada ou raptada, se honesta evidentemente) e quem usa um boneco no roubo responderia por concurso de pessoas.
P.S. 2: Recordo que logo após o voto do Min. José Arnaldo da Fonseca (03.05.01) escrevi e encaminhei a todos os eminentes Magistrados da Colenda 3ª Seção do STJ o seguinte artigo:
"No REsp 213.054, que será em breve decidido pela Egrégia Corte Superior de Justiça, acaba de ser levantada pelo Min. FÉLIX FISCHER, Presidente da Quinta Turma, a questão da revisão da Súmula 174 ["No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena"], que será julgada pela Terceira Seção do STJ (Quinta e Sexta Turmas reunidas). A doutrina, bem enfatizou na ocasião o ínclito Ministro Fischer, "com fortes argumentos, é contrária à súmula do STJ" (referia-se certamente a Damásio E. de Jesus, Fragoso, Mayrink da Costa, Delmanto, Bitencourt, Prado etc.).
O caso concreto que deu ensejo ao desencadeamento do processo de revisão da mencionada súmula versa sobre recurso (especial) interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra decisão do Tribunal de Alçada Criminal do mesmo Estado, que afastou o aumento de pena decorrente do uso de arma, entendendo que a "arma de brinquedo" não justifica tal agravamento.
Sublinharam os eminentes juízes do TACRIM-SP que o aumento da pena no roubo somente se justifica quando presente a potencialidade de um dano efetivo. O perigo real, não o imaginário, faz com que o injusto penal tenha maior relevância. Com aguda precisão, o juiz relator ABREU MACHADO observou: "O roubo sem utilização de arma de fogo, mas mera simulação, por agente solitário, guarda agressividade menor no contexto dos crimes que atormentam a sociedade".
O relator do REsp (no STJ), Ministro JOSÉ ARNALDO, votava pelo não provimento do recurso do Ministério Público paulista.
O desacerto da doutrina que equipara a arma de brinquedo com a arma verdadeira reside no seguinte: o que a arma de brinquedo representa "para o efeito de intimidação da vítima, com a anulação ou diminuição de sua capacidade de resistência" esgota-se totalmente na configuração típica do delito de roubo.
De um possível delito de furto, cuja pena mínima é de um ano de reclusão, passa-se para o delito de roubo, com pena mínima de quatro anos de reclusão, justamente porque a arma de brinquedo é suficiente (é capaz) para intimidar, para anular ou diminuir a capacidade de resistência. Não se discute, portanto, que a arma de brinquedo pode ser meio eficaz para o cometimento do delito de roubo. Mas o fato mesmo da configuração do roubo, com sanção gravemente exacerbada, já constitui o ponto de equilíbrio e é o quantum satis para a repressão e prevenção do delito.
Pretender, além disso, um plus em termos de agravamento da pena é exorbitância. Essa postulação, estampada na súmula 174, vai além do necessário, do razoável e do proporcional. Viola o princípio de proibição de excesso. Por quê? Porque o aumento de pena previsto no Código Penal só é coerente com o uso de arma verdadeira. Nesse caso há não só risco concreto para os bens jurídicos em jogo (vida, integridade física etc.) como uma sensível elevação da graduação do injusto penal.
No Direito penal moderno e já bastante civilizado, cada um deve ser punido na medida da sua culpabilidade (CP, art. 29). Isso significa não só que a culpabilidade é pressuposto (fundamento) da pena, senão também que ela guarda correspondência com a graduação do injusto típico. Isso explica porque que o crime doloso é sempre punido mais severamente que o crime culposo. Há uma clara diferença não só no âmbito do injusto, nesse caso, senão também no da culpabilidade (e conseqüentemente da pena). Na verdade, há uma equação (que deve ser regida rigorosamente pelo princípio da proporcionalidade) entre injusto penal, culpabilidade e pena. Qualquer variação efetiva, real, no âmbito do primeiro vai refletir (ou pode repercutir) nos demais. Mas é preciso constatar uma variação relevante, considerável, no injusto típico, para justificar o incremento da censura e da pena.
Ocorre que o uso de arma de brinquedo esgota sua eficácia (intimidativa) na configuração do próprio injusto penal (do roubo). Não vai além. Não representa nada mais em termos de variação do conteúdo do injusto típico. Não representa nenhum plus. Ela serve para intimidar e nada mais. Diferente é a arma verdadeira que serve para intimidar e vai além: constitui concomitantemente um nível de perigo muito maior. Acrescido sensivelmente o nível do perigo para os bens jurídicos protegidos, não há dúvida que maior também é a censurabilidade e a pena.
Tratar com igualdade, em termos de aumento de pena, a arma verdadeira e a de brinquedo significa tratar isonomicamente duas realidades completamente distintas. Ambas servem para intimidar, não há dúvida. Até aqui valem a mesma coisa. Ambas prestam-se para a configuração do roubo. Mas no momento do aumento da pena, evidentemente não possuem o mesmo valor. O juiz existe justamente para distinguir as hipóteses, separar o joio do trigo e fazer justiça. Em suma, dar a cada um o que é seu e na medida do proporcional. Recorde-se: somente os homens são dotados do senso do justo e do equilíbrio. Que justiça e razoabilidade existe em tratar as duas armas igualmente para o efeito de aumentar a pena do roubo ? Todo aumento de pena além do roubo deve encontrar justificativa concreta, real, efetiva.
Se o aumento de pena fosse justificado, no caso da arma de brinquedo, só pelo que ela "representa para efeito de intimidação da vítima, com a anulação ou diminuição de sua capacidade de resistência", o mesmo aumento deveria ser reconhecido na hipótese de o autor do crime colocar um boneco no seu carro (no lado do passageiro) e intimidar a vítima dizendo para não se mexer, pois do contrário seu "companheiro" lhe dispara e mata. Para quem admite que a arma de brinquedo pode ser a "arma" a se refere o art. 157, §2º, inc. I, terá que admitir, na hipótese, o concurso de pessoas. Convenhamos: arma de brinquedo não é arma, tanto quanto boneco não é pessoa. Ambos servem para intimidar, obviamente. Mas ambos são fundamentos equivocados para agravar a pena além do necessário, além do proporcional.
Todos reconhecemos que NÉLSON HUNGRIA foi o maior penalista brasileiro do seu tempo. Que sua doutrina, em grande parte, continua válida e atual. Que muitos dos seus ensinamentos são perenes e imorredouros. Mas já é hora também de se proclamar que ele não é Deus e que podia se equivocar. Seu acentuado tom subjetivista, em muitas questões, na linha da doutrina alemã, conflita com freqüência frontalmente com o Direito penal da culpa, da ofensividade e da razoabilidade. Esquecer muitas vezes das lições desse grande mestre, para preservá-lo, é tão relevante quanto recordá-lo diuturnamente nos seus enormes acertos.
Que a Terceira Seção (Quinta e Sexta Turmas) do STJ, iluminada pela sabedoria ímpar dos seus eminentes integrantes, restabeleça a serenidade e a justiça, cancelando a tão famigerada quanto equivocada súmula 174. Que prevaleça o justo, o razoável, o proporcional, que é tudo o que se espera de qualquer profissional do Direito, mas particularmente do Magistrado.