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O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema

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13/12/2013 às 08:17
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Estudam-se os princípios tendo em vista a concepção de sistema. Em seguida, a manifestação da idéia de sistema no direito: o ordenamento. Depois, as partes mais destacadas do sistema jurídico: as normas. E, por fim, a espécie de normas objeto deste trabalho: os princípios.

I – INTRODUÇÃO

1. Pretendo, neste trabalho, apresentar algumas notas sobre os princípios tendo em vista a concepção de sistema. Falarei, por isso, da idéia de sistema. Em seguida, cuidarei da manifestação da idéia de sistema no direito: o ordenamento. Depois, abordarei as partes mais destacadas do sistema jurídico: as normas. E, por fim, da espécie de normas objeto deste trabalho: os princípios. Trata-se, como se vê, de um projeto que envolve um certo discurso sobre os princípios. Como tal, este meu discurso segue a sorte de todos os discursos sobre os princípios. Especialmente, no entanto, em um aspecto, este meu discurso enfrenta sorte não tão feliz. É que os discursos sobre os princípios têm-se apresentado como discursos pós-positivistas, como discursos de superação e de contestação do positivismo jurídico. Também o meu discurso se apresenta como tal. Mas por razões talvez menos pretensiosas.

2. Pretendo afastar-me de um positivismo científico. O positivismo científico só admite como ciência aquela atividade fundada em fatos (LARENZ, 1997, p. 45 e seguintes). Tais fatos podem ser fatos do mundo exterior ou fatos do mundo interior (Idem, p. 47). Importa, todavia, que sejam fatos, e fatos indubitáveis. Exceções admitidas pelo positivismo são a matemática e a lógica, que se referem a puras conexões mentais, mas ainda assim são tidas como ciências (Idem, ibidem). A tarefa da ciência, segundo uma tal concepção, é descrever os fatos como se apresentarem. O cientista cumpre sua missão ao descrever, objetivamente, os fatos como se apresentarem. O cientista o é enquanto imparcial for. A imparcialidade, no entanto, é algo impossível de se obter (MÉSZÁROS, 1996, p. 311 e seguintes; MARX & ENGELS, 1973, pp. 187-188; VÁSQUEZ, 1990, p. 9). Ao menos no sentido subjetivo, de isenção do intérprete quanto aos acontecimentos. Somos sempre parciais ao menos em dois sentidos. Parciais porque somos parte dos acontecimentos e parciais porque tomamos partido nos acontecimentos. Nunca descrevemos, por isso, a totalidade dos acontecimentos, mas apenas parcela deles. Assim como nunca descrevemos os acontecimentos sem que seja de um certo viés, sem tomarmos partido em favor desta ou daquela situação. Somos, por isso, duplamente parciais, sempre (GRAU, 1997, p. 280; GRAU, 1998, pp. 15-16).

3. Pretendo, igualmente, afastar-me de um positivismo jurídico. Como disse, o positivismo só admite como ciência aquela atividade que se fundamenta em fatos, do mundo exterior ou do mundo interior, mas sempre fatos e indubitáveis, exceção feita da matemática e da lógica, apesar de não operarem com fatos. A ciência do direito o é, então, na medida em que se refira aos fatos do mundo exterior ou aos fatos do mundo interior ou a conexões puramente mentais (LARENZ, 1997, p. 48). E daqui surgem as três concepções fundamentais do positivismo jurídico acerca da ciência do direito: a) a ciência do direito como teoria sociológica do direito; b) a ciência do direito como teoria psicológica do direito; c) a ciência do direito como teoria lógica do direito. As concepções positivistas do direito têm em comum a inadmissibilidade da discussão dos valores na esfera da ciência do direito por irracionais (Idem, ibidem). As concepções positivistas do direito, por isso, findam por defender posturas formalistas (da justiça, do direito e da ciência do direito), reduzindo o direito a um conjunto formado exclusivamente por normas (positivismo como método), a um conjunto composto exclusivamente por normas estatais predominantemente de origem legislativa (positivismo como teoria), a um conjunto formado exclusivamente de normas estatais por definição justas (positivismo como ideologia) (BOBBIO, 1994, passim; ALEXY, 1994, p. 13 e seguintes e p. 21 e seguintes).

4. Pretendo, por fim, e especialmente, contestar a validade de uma postura normativista do direito e no direito. E por dois motivos. Primeiro porque o normativismo jurídico baseia-se em uma incorreção: a afirmação de que o direito seja formado por normas apenas. O direito é composto por normas, mas não só. À esta postura unidimensional contrapõem-se posturas bidimensionais, que afirmam ser o direito composto por normas e valores, e posturas tridimensionais, que afirmam ser o direito composto por normas, fatos e valores (FERRAZ JÚNIOR, 1989, p. 166; FERRAZ JÚNIOR, 2001, p. 173). Segundo porque também não é correto dizer que o conhecimento do direito deve-se dar pela ótica das normas. Ora, mesmo que admitamos que o direito é essencialmente normativo, embora não exclusivamente, disso não deriva, de maneira alguma, uma forçosa aceitação de que o conhecimento das normas que o compõem deva se dar através de seus próprios elementos e parâmetros. As normas não são portadoras de todos os elementos e parâmetros necessários para que sejam explicadas. Assim, ainda que aceitasse uma visão do direito como composto apenas por normas, ainda assim não aceitaria, como não aceito, a idéia de que a visão do direito seja possível apenas a partir e através das normas. O conhecimento das normas é possível apenas a partir e através dos valores em que se pretendem fundamentar e dos fatos a que pretendem regulamentar (REALE, 1994, passim; GUERRA FILHO, 2001, p. 140).

5. Feitos tais esclarecimentos, ingresso na análise da idéia de sistema.


II – SISTEMA

6. Para falar de princípios conforme uma concepção do direito como sistema, necessário que se defina o que entender com o vocábulo sistema (CRUZ, 2001; CANARIS, 1989; FERRAZ JÚNIOR, 1976). Em todo sistema comparecem, ao menos, dois elementos: unidade e ordem (CANARIS, 1989, p. 12 e seguintes). Não há sistema que não apresente uma certa ordenação de suas partes. Mas a ordenação de suas partes só se mostra possível, em um sistema, tendo em vista uma certa unidade. Um sistema, por isso, pode ser definido como uma totalidade ordenada segundo uma unidade de sentido. Tal definição abrange os sistemas em geral. Mas a especificação dos sistemas pode fazer com que elementos da definição embora seja substancialmente os mesmos, variem adjetivamente. Assim é que os sistemas podem ser sistemas cognitivos, isto é, sistemas de conhecimento, ou sistemas objetivos, isto é, sistemas de objetos de conhecimento (Idem, p. 13). Segundo uma tal classificação, o direito pode ser um sistema cognitivo e, também, um sistema objetivo. Como sistema cognitivo, o direito pode ser uma ciência, a ciência do direito. Como sistema objetivo, o direito pode ser objeto de uma ciência, o objeto da ciência do direito.

7. Como sistema objetivo, o direito é um sistema teleológico-axiológico. Sistema teleológico-axiológico, o direito apresenta-se como totalidade ordenada segundo unidade de sentido dada por valores, ao contrário de sistemas lógico-axiomáticos que encontram tal unidade em conceitos (Idem, p. 66 e seguintes). Tais valores se apresentam como elementos sem caráter normativo imediato, como princípios gerais de direito (Idem, p. 76 e seguintes). Assim, o direito se mostra um sistema na medida em que se apresenta como ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais (Idem, p. 85).

8. Dizer que o direito se apresenta como um sistema axiológico-teleológico implica em dizer que, ao contrário de um sistema lógico-axiomático, o sistema jurídico é aberto e móvel (Idem, p. 107 e seguintes e p. 134 e seguintes). Sistemas lógico-axiomáticos apresentam-se como fechados e imóveis porque a partir de uns poucos axiomas, fórmulas tidas como verdades auto-evidentes, podem ser resolvidos todos os problemas que surjam. Ora, o direito não se mostra como um sistema dessa última espécie. Não se pode conceber que as soluções para todos os problemas que venham a surgir estejam contidas no sistema jurídico. A própria idéia de que o sistema jurídico prevê mecanismos de solução de antinomias e de preenchimento de lacunas infirma uma concepção lógico-axiomática do sistema jurídico. Assim, o sistema jurídico está em permanente interconexão e intercâmbio com o mundo vital (CRUZ, 2001, p. 111 e seguintes; FERRAZ JÚNIOR, 1976, p. 148 e seguintes). O sistema jurídico, por isso, só se concebe como sistema aberto porque permanentemente suscetível às influências das forças atuantes no mundo objetivo (natural), no mundo intersubjetivo (social) e no mundo subjetivo (individual). E, por isso mesmo, o sistema jurídico está em permanente estado de adaptação às circunstâncias que constituem e em que são constituídas tais forças nos mundos natural, social e individual (HABERMAS, 1997, volume I, p. 17 e seguintes e p. 48 e seguintes; HABERMAS, 1997, volume II, p. 222 e seguintes; HABERMAS, 1988, p. 243 e seguintes, p. 261 e seguintes e p. 509 e seguintes).

9. Se o sistema jurídico só se concebe como sistema aberto porque suscetível às influências do mundo objetivo, do mundo intersubjetivo e do mundo subjetivo e, por isso mesmo, móvel por ser adaptável aos referidos mundos, o sistema jurídico só se concebe enquanto sistema teleológico-axiológico; porque incompleto, necessariamente. O sistema jurídico, em não se mostrando um sistema lógico-axiomático, e, portanto, sendo incompleto, está predisposto ao contato com o mundo vital para configurar-se e conformar-se. Sem contato com o mundo vital, o sistema jurídico é sistema potencial e não atual. A atualidade do sistema jurídico depende do seu contato com o mundo vital, de sua inserção no mundo vital, porque é no mundo vital que se constituem os problemas para os quais o sistema jurídico terá de apresentar soluções (GRAU, 2002, p. 64 e seguintes; MÜLLER, 1996, p. 186 e seguintes e p. 204 e seguintes). O sistema jurídico, portanto, na medida em que se atualiza com sua inserção no mundo vital, só se completa com vistas à solução dos problemas jurídicos (GRAU, 2002, p. 66 e seguintes). Mas os problemas só são problemas jurídicos na medida em que se refiram a sistemas que se reputem jurídicos. Por isso, pode-se dizer que sistemas jurídicos são aqueles que contêm soluções para problemas jurídicos e que problemas jurídicos são aqueles que busquem soluções em sistemas jurídicos. Desse modo, evita-se a idéia de uma dicotomia insuperável entre o pensamento sistemático e o pensamento problemático (CANARIS, 1989, p. 273 e seguintes; FREITAS, 1998, p. 130 e seguintes). O sistema jurídico reformula-se constantemente na formulação das soluções mais adequadas para os problemas jurídicos que são permanentemente reformulados e reapresentados pelas forças atuantes e nas circunstâncias delineadas no mundo vital (FERRAZ JÚNIOR, 1976, p. 138 e seguintes).

10. Sistemas jurídicos, por isso, abertos, móveis, incompletos, em permanente contato com o mundo vital e em constante adaptação aos problemas jurídicos, não são lineares e planos. Sistemas jurídicos formam-se a partir de um repertório e através de uma estrutura (FERRAZ JÚNIOR, 1989, p. 165; FERRAZ JÚNIOR, 2001, p. 172). O repertório contém elementos normativos, isto é, elementos com caráter prescritivo explícito; mas o repertório contém, também, elementos não-normativos, isto é, elementos sem caráter prescritivo explícito ou com caráter prescritivo implícito (Idem, ibidem). Os elementos, prescritivos ou não, do repertório não esgotam os sistemas jurídicos. Pois os elementos do repertório não se ordenam a si mesmos. A ordenação dos elementos do repertório e sua adequação à totalidade do sistema só são possíveis tendo em vista a unidade de sentido. E a unidade de sentido, responsável pela ordenação e pela adequação dos elementos do repertório, deve-se a regras de relacionamento que se encontram na estrutura (Idem, ibidem). É através do repertório que os sistemas estabelecem soluções para os problemas jurídicos. Mas é a partir da estrutura que os sistemas jurídicos estabelecem seus contatos com o mundo vital em que se constituem tais problemas. O mundo vital, então, envolve os sistemas jurídicos tanto em sua dimensão estrutural quando em sua dimensão repertorial.

11. Os sistemas jurídicos estão imersos na totalidade do mundo vital. Mas ao lado da espontaneidade do mundo vital segue, com passos largos, a mecânica dos sistemas sociais. A formação dos sistemas sociais tem a clara tarefa de ordenar a explosão de espontaneidade em que se traduz o mundo vital. Submetendo os mundos natural e individual aos imperativos do mundo social e, depois, subordinando o mundo social aos seus imperativos, os sistemas sociais reduzem a complexidade das manifestações do mundo social e as conformam aos limites dos ditames do sistema político, do sistema econômico e do sistema cultural (HABERMAS, 1988, p. 243 e seguintes, p. 261 e seguintes e p. 280). Segue-se daí que os sistemas jurídicos estão imersos na totalidade do mundo vital reduzido e colonizado pelos imperativos dos sistemas sociais. Desse modo, as demandas do mundo vital, os problemas jurídicos são tão jurídicos quanto sejam capazes os sistemas jurídicos de oferecerem soluções admissíveis pelos sistemas sociais em que se inserem (GUERRA FILHO, 2001, p. 186 e seguintes). Incapazes de solucionar os problemas jurídicos com a menor perturbação possível, os sistemas jurídicos não os reconhecem como problemas jurídicos ou, até mesmo, não os reconhecem como problemas.

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12. Sistemas jurídicos são, por isso mesmo, sistemas normativos, evidentemente. Neles minimamente se deve esperar encontrar parâmetros para a solução dos problemas jurídicos. Mas os sistemas jurídicos são sistemas potenciais que só se atualizam na medida em que se insiram no mundo vital, na medida em que tomem contato com os problemas jurídicos que no mundo vital se formam. Portanto, os sistemas jurídicos são sistemas normativos. Mas os sistemas jurídicos são sistemas normativos abertos e móveis, porque incompletos. A atualidade dos sistemas jurídicos depende de sua inserção no mundo vital. A atualidade dos sistemas jurídicos depende, por isso, de uma mobilidade de seus repertórios e de uma certa flexibilidade de suas estruturas. Os sistemas jurídicos como sistemas normativos flexíveis não têm repertórios com conteúdos normativos totalmente pré-fixados e pré-determinados. Mas também não têm repertórios com conteúdos normativos completamente abertos a qualquer fixação ou determinação.

13. Os sistemas jurídicos são sistemas normativos na medida em que se compõem de normas, embora não só. E como sistemas normativos os sistemas jurídicos predispõem-se a regular as competências e comportamentos, as organizações e funções. Da regulação das competências e dos comportamentos, das organizações e das funções, um sistema jurídico, como sistema normativo que é, não pode abdicar. Entretanto, um sistema jurídico, como sistema social que também é, não pode prescindir de abrir-se às situações e aos sujeitos regulados. E é por isso que um sistema jurídico, como sistema normativo, é formado por dois tipos fundamentais de normas: princípios e regras (CANOTILHO, 1999, p. 1088 e seguintes).

14. O modelo de sistema normativo de princípios favorece a adaptabilidade dos sistemas jurídicos às circunstâncias do mundo vital; mas prejudica a previsibilidade das forças atuantes no mundo vital; e, paradoxalmente, contribui para a controlabilidade dos sistemas sociais (Idem, ibidem). Já o modelo de sistema normativo de regras favorece a previsibilidade das forças atuantes no mundo vital; mas dificulta a adaptabilidade dos sistemas jurídicos às circunstâncias do mundo vital e, sem paradoxo, incrementa a controlabilidade dos sistemas sociais (Idem, ibidem). O modelo, assim, de um sistema normativo composto por princípios e por regras tem mais conveniências do que inconveniências (ALEXY, 1994, p. 174 e seguintes; CANOTILHO, 1999, p. 1089). Ele permite a tensão contínua entre os valores da permanência e da mudança, da previsão e da surpresa, do controle e da resistência, sem se quebrar, com seria o certo com um modelo de sistema normativo formado apenas por regras, fazendo-nos mergulhar na bruta faticidade, e sem se esgarçar, como seria o certo com um modelo de sistema normativo formado apenas por princípios, fazendo-nos voar para a pura validade (CANOTILHO, 1999, p. 1088 e seguintes).

15. A continuidade dos sistemas jurídicos, entretanto, não se deve a serem compostos seus repertórios de normas caracterizadas como princípios e normas caracterizadas como regras. A continuidade dos sistemas jurídicos, portanto, não se deve a serem sistemas normativos modelados como sistemas normativos de princípios e de regras. A continuidade dos sistemas jurídicos modelados como sistemas normativos de princípios e de regras, que se formam e põem em constante tensão de valores e de metas, deve-se a serem, não sistemas normativos, mas não apenas sistemas normativos. Os sistemas jurídicos continuam, mesmo e apesar da tensão constante entre valores contraditórios, porque são, também, sistemas procedimentais. Os sistemas jurídicos são, assim, sistemas de normas e sistemas de procedimentos (ALEXY, 1994, p. 172 e seguintes). E, por isso, a continuidade e a adaptabilidade dos sistemas jurídicos devem-se a serem sistemas de normas produzidas e reproduzidas segundo procedimentos. Continuam, os sistemas jurídicos, adaptando-se, apesar da tensão dos valores que neles se integram, por serem sistemas de normas elaboradas e implementadas segundo procedimentos. O sistema jurídico é, portanto, um sistema normativo-procedimental, um sistema que se constitui a partir do modelo princípios/regras/procedimentos, cujo sentido potencial contido em suas prescrições se atualiza e se concretiza através do contato dialógico com as forças e nas circunstâncias do mundo vital inseridas nos determinados problemas jurídicos.

16. Os sistemas jurídicos têm, como se vê, funções importantes e destacadas. Os sistemas jurídicos têm funções políticas e têm funções jurídicas. As funções políticas dos sistemas jurídicos consistem na busca de racionalização e em propiciar legitimação para os sistemas sociais. As funções jurídicas dos sistemas jurídicos consistem nas tarefas de limitação (função negativa) e de determinação (função positiva) dos conteúdos normativos (LUHMANN, 1980, passim).


III – ORDENAMENTO E SISTEMA

17. É comum, ao falar de sistemas jurídicos, surgir logo a idéia de que ordenamento é um sistema (BOBBIO, 1994, p. 71 e seguintes). Em sua origem, a idéia de ordenamento está vinculada à noção de que a soma das partes constitui o todo e de que o todo constitui a soma das partes. Entretanto, o ordenamento, entendido como sistema jurídico, não pode ser devidamente compreendido senão como mais do que a mera soma de suas partes, mais do que o mero ajuntamento de normas (GUERRA FILHO, 2000, p. 133). Como disse, um sistema jurídico é um sistema normativo, mas não só. É, também, um sistema procedimental. E o sistema jurídico é repertório, mas também é estrutura. O ordenamento, como sistema jurídico, é composto por elementos normativos e não-normativos e por regras de relacionamento entre eles. Esse o ordenamento potencial. Das relações estabelecidas entre suas múltiplas parcelas e do permanente contato com os conflitos jurídicos surge o ordenamento atual. E, assim, a passagem de uma concepção do direito como norma para uma concepção do direito como ordenamento representa mais do que uma troca de nomes. Representa uma mudança de perspectiva do microcosmo para o macrocosmo (Idem, ibidem). Representa, também, uma mudança de substância, das partes para o todo, que não se resume à mera soma delas.

18. Tudo isso remete, forçosamente, à consideração do ordenamento como parcialmente constituído enquanto não em contato com os conflitos jurídicos. O ordenamento, abstratamente considerado, sem contato com os conflitos jurídicos, é ordenamento em potência, nunca em ato (GRAU, 2002, p. 72). O ordenamento jurídico potencial representa a possibilidade de vir a se concretizar como ordem jurídica. Uma possibilidade não assegurada de antemão. Sem a interpretação dos elementos do ordenamento em potência, seu sentido não se fixa. E sem a fixação dos sentidos possíveis do ordenamento, ele não ordena nada. Mas a interpretação é, também, aplicação, na medida em que se refere aos conflitos jurídicos. E a aplicação é interpretação na medida em que se refere ao ordenamento jurídico (GADAMER, 1998, p. 460 e seguintes e p. 482 e seguintes). A concretização do ordenamento jurídico, portanto, passa pela interpretação do ordenamento em potência e dos conflitos em latência. Só se constitui o ordenamento como ordenamento atual, só atua o ordenamento, com a constituição dos conflitos como conflitos atuais, como conflitos ocorrentes. E a atualidade, ou não, de ordenamentos e de conflitos depende de um juízo de conformidade. Os conflitos são lidos através das lentes do ordenamento assim como o ordenamento é lido a partir da perspectiva dos conflitos (LARENZ, 1997, p. 293 e seguintes; GRAU, 2002, p. 79 e seguintes; MÜLLER, 1996, passim). Daí afirmar que o ordenamento abstrato é ordenamento apenas potencial, parcialmente constituído. O ordenamento atual, totalmente constituído, é sempre ordenamento concreto, porque atua atingindo os conflitos, porque se traduz em ordenação material das competências e dos comportamentos (GRAU, 2002, p. 73 e seguintes e p. 76 e seguintes).

19. O ordenamento, compreendido como sistema, compreendido como sistema aberto aos conflitos advindos das relações entre as forças e nas circunstâncias do mundo vital e, pois, em constante mutação e adaptação, é mais do que a mera soma de suas partes, é mais do que o mero ajuntamento de normas. Mas é também a soma de normas. O ordenamento em potência, portanto, o ordenamento parcialmente constituído, é também formado por normas e, por isso, também é conjunto de normas. Assim, se o ordenamento não é a mera soma de suas partes, não é mero ajuntamento de normas, nem por isso é menos do que a soma de suas partes, nem por isso é menos do que o conjunto de suas normas. O ordenamento abstrato concebe-se como ordenamento em potência precisamente porque contém ao menos normas e não porque contém apenas normas. É ordenamento porque predisposto a ordenar materialmente os conflitos jurídicos. E sem normas inexiste normatividade. O ordenamento em potência, assim, é o ponto a partir do qual se ruma para a constituição do ordenamento em ato, para a atualização do ordenamento, para a sua concretização. Por isso, o ordenamento potencial é limite (Idem, ibidem). Para além dele se constitui o ordenamento atual. Aquém dele se nega a normatividade.

20. O ordenamento concebido, todavia, apenas como conjunto de normas e mesmo de não-normas, como a mera soma de suas partes, é apenas ordenamento em potência, ordenamento potencial, como possibilidade de ordenação e não efetiva ordenação material dos conflitos jurídicos. As normas em seu conjunto não trazem em si mesmas qualquer elemento que permita vinculá-las umas às outras. Não são as normas que estabelecem as relações entre si, mas outros elementos que, embora não pertencendo ao repertório do ordenamento, nem por isso deixam de pertencer ao ordenamento propriamente, porque residentes em sua estrutura. São os elementos da estrutura do ordenamento que organizam e põem em funcionamento os elementos normativos do repertório do ordenamento. E isso só o fazem através de elementos presentes no repertório que não possuem caráter normativo. A organização e funcionamento do repertório do ordenamento devem-se aos elementos da estrutura do ordenamento, às regras de relacionamento. Mas as regras de relacionamento presentes na estrutura do ordenamento só incidem sobre o repertório e unificam os elementos normativos através de outros elementos do repertório que não possuem caráter normativo explícito, cuja função é exatamente pôr os elementos normativos em contato. Por isso, mesmo em potência, o ordenamento é mais do que a mera soma de normas, porquanto tais normas não se relacionam entre si a partir e através de si mesmas.

21. O ordenamento é mais do que a mera soma de suas partes, ainda que apenas considerado como ordenamento em potência. O ordenamento, ainda que potencialmente considerado, como possibilidade de vir a ser ordenação material dos conflitos jurídicos, é mais do que um mero conjunto de normas, e mesmo de normas e não-normas. O ordenamento é mais do que a soma dos elementos de seu repertório. Mas também é mais do que a soma dos elementos de seu repertório e dos elementos de sua estrutura. O ordenamento em ato, o ordenamento atual, para além de simples possibilidade de vir a ser ordenação material dos conflitos, o ordenamento como efetiva ordenação material dos conflitos, é, também, composto por decisões (GRAU, 2002, p. 84 e seguintes; MÜLLER, 1996, p. 186 e seguintes). É só através de decisões que a abstrata previsão normativa encontra o ponto de contato a ser estabelecido com as concretas situações da vida. É a decisão que põe em movimento o ordenamento abstrato, o ordenamento em potência, fazendo-o atuar, concretizando-o para solucionar os problemas surgidos no mundo vital (Idem, ibidem). Por isso, também, que o ordenamento, como sistema, não pode ser concebido apenas como sistema normativo.

22. O ordenamento não pode ser concebido apenas como sistema normativo porque não composto apenas por normas. Também o compõem não-normas. Mas, além disso, normas e não-normas são postas em relação entre si, são organizadas, por elementos outros. A organização dos elementos normativos e não-normativos dá-se por meio de um procedimento (GUERRA FILHO, 2001, p. 199 e seguintes). E também por meio de um procedimento dá-se a colocação de tais elementos em funcionamento (Idem, ibidem). Por isso, também, que o ordenamento, como sistema, não pode ser concebido como sistema normativo, pois é, também, um sistema procedimental, um sistema de procedimentos de organização e de funcionamento dos elementos normativos e não-normativos, responsáveis pela passagem do abstrato ao concreto, do potencial ao atual, da possibilidade à efetividade.

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Sobre o autor
Marco Antônio Ribeiro Tura

Pesquisador do Programa de Pós-Doutorado em Direito Político e Econômico da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e Orientador do Grupo de Regulação de Mercados e Políticas Setoriais do Programa de Pesquisas em Finanças Públicas da Escola de Administração Fazendária. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Ministério Público da União. Procurador do Trabalho no Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TURA, Marco Antônio Ribeiro. O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3817, 13 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26138. Acesso em: 23 dez. 2024.

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