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O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema

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13/12/2013 às 08:17
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VI – CONCLUSÃO

34. Apresentei, ao longo destas páginas, notas que tenho tomado a partir de estudos realizados sobre a teoria dos princípios e sobre a teoria dos sistemas.

35. Em um primeiro momento, tentei esclarecer os motivos que me levam a afastar-me de uma perspectiva positivista, na ciência em geral e na ciência do direito em especial.

36. Impossível ser imparcial, como quer o positivismo científico, pois impossível que não sejamos parte dos acontecimentos e não tomemos partido nos acontecimentos. Nunca descrevemos, por isso, a totalidade dos acontecimentos, mas apenas parcela deles. Assim como nunca descrevemos os acontecimentos sem que seja de um certo viés, sem tomarmos partido em favor desta ou daquela situação. Sempre somos parciais, portanto, e duplamente.

37. Impossível, também, adotar a perspectiva do positivismo jurídico, porque fragmenta o conhecimento. Não se pode pretender fazer ciência do direito abordando apenas sua dimensão sociológica, ou apenas sua dimensão psicológica ou apenas sua dimensão lógica. E, além disso, impossível imaginar uma ciência do direito que não se preocupe com a discussão dos valores e não busque apontar-lhes fundamentos racionais. Uma tal ciência não é do direito, porque retira o direito da vida e aborta a vida existente no direito.

38. Evidentemente, portanto, as variantes positivistas, sempre formalistas, são, também, inaceitáveis. Especialmente inaceitável a postura do positivismo jurídico de variante normativista, seja porque reduz o direito todo à norma, seja porque reduz o conhecimento do direito à perspectiva das normas. O direito não esgota em normas e nem se compreende a partir e através, simplesmente, das normas.

39. Em um segundo momento, tentei apontar a concepção que adoto para explicar os sistemas jurídicos e seu relacionamento com os demais sistemas sociais e com o mundo vital e, também, como não poderia deixar de ser, com os problemas jurídicos. Sistemas são totalidades ordenadas segundo certa unidade de sentido; totalidade ordenada tanto em sentido cognitivo (de conhecimentos) quanto em sentido objetivo (de objetos de conhecimentos).

40. Os sistemas jurídicos podem ser cognitivos (da ciência do direito) e objetivos (do direito propriamente). Como sistemas objetivos, os sistemas jurídicos são sistemas teleológico-axiológicos, isto é, totalidades ordenadas segundo unidade de sentido dada por valores, que se apresentam como princípios gerais.

41. Os sistemas jurídicos, como sistemas axiológico-teleológicos, são abertos, móveis, incompletos, porque permanentemente suscetíveis e adaptáveis ao mundo vital, confrontados que são pelos problemas jurídicos, assim entendidos se os sistemas jurídicos, reformulados constante e permanentemente, a eles oferecerem soluções suportáveis pelo mundo vital.

42. Os sistemas jurídicos formam-se por repertórios, compostos por normas e por não-normas, em que se focam os problemas jurídicos na busca de soluções, e por estruturas, compostas por relações, pelas quais se colocam em contato com o mundo vital.

43. Os sistemas jurídicos são sistemas normativos na medida em que se compõem de normas, embora não só. Os sistemas jurídicos são compostos por dois tipos fundamentais de normas: princípios e regras. Este o modelo que, comparado com outros, apresenta mais conveniências do que inconveniências, por permitir a tensão sem quebrar-se e sem esgarçar-se.

44. Os sistemas jurídicos são, também, sistemas procedimentais. Os sistemas jurídicos são sistemas de normas e sistemas de procedimentos. As normas são produzidas e são reproduzidas segundo procedimentos. Os sistemas jurídicos nascem com regras e princípios, mas as regras e os princípios apenas se impõem por força dos procedimentos que as atualizam e as concretizam através do contato dialógico com o mundo vital, conforme os problemas jurídicos.

45. Os sistemas jurídicos têm importantes e destacadas funções políticas, consistentes na racionalização e na legitimação dos sistemas sociais, e funções jurídicas, consistentes na limitação e na determinação dos conteúdos normativos.

46. Em um terceiro momento, tentei transportar esses elementos da teoria dos sistemas jurídicos e sociais para a análise dos ordenamentos, pois à idéia de ordenamento é comum vincular a idéia de sistema.

47. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são mais do que meros conjuntos de normas. Os ordenamentos concretos são compostos por normas e por não-normas relacionadas entre si e em relação com os conflitos jurídicos. Enquanto não se põem em contato com os conflitos jurídicos, os ordenamentos são apenas parte, apenas potência, apenas possibilidade.

49. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são mais do que meros conjuntos de normas, mas também são conjuntos de normas. Os ordenamentos são mais, e não menos, do que conjuntos de normas. Os ordenamentos, ainda que em potência, são sempre limites, dentro dos quais se estabelece e normatividade.

50. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são mais do que conjunto de normas e, também, são mais do que conjuntos de normas e de não-normas. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são, também, mais do que conjuntos de relações. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são, também, compostos por decisões. Como sistemas jurídicos, portanto, os ordenamentos são sistemas compostos por normas e não-normas relacionadas entre si e com os problemas jurídicos, com os conflitos jurídicos.

51. Em um quarto momento, por fim, tentei transportar esses elementos da teoria dos sistemas jurídicos e dos ordenamentos jurídicos para a análise das normas, muito especialmente, dos princípios.

52. A concretização dos ordenamentos passa pela interpretação dos ordenamentos em potência e dos conflitos em latência. Os ordenamentos atuais, em ato, totalmente constituídos, ordenamentos concretos, se traduzem em ordenações materiais das competências e dos comportamentos. Antes de interpretados e aplicados, os ordenamentos não passam de promessas, de possibilidades, de potências.

53. As normas resultam da interpretação e da aplicação, resultam da concretização. As normas são diferentes das disposições. Uma disposição pode conter uma ou nenhuma norma, uma ou algumas normas. Uma norma pode se conter em uma ou em nenhuma disposição, em uma ou em algumas disposições. Normas efetivas, que compõem ordenamentos concretos, atuais, são as normas de decisão, formuladas tendo em vista os conflitos.

54. As normas, em abstrato e em concreto, se apresentam como regras ou como princípios, que se distinguem conforme elementos materiais e formais e segundo abordagens fracas e fortes.

55. Os princípios podem ser concebidos como disposições relativas, como mandados de otimização, como juízos de concorrência, como normas que comportam uma série indefinida de aplicações, por fim, como normas dotadas de capacidade expansiva e convivência conflitual.

56. Improcedentes as objeções à normatividade e especificidade dos princípios. Eles integram o ordenamento, mais exatamente seu repertório, recebendo dele sua normatividade. Os princípios são normas, sem diferença de essência com as regras, mas apenas de forma e de grau.

57. Improcedentes, também, as objeções ao próprio conceito, envolvendo sua validade, sua relatividade e sua amplitude. Integrados ao ordenamento, os princípios são válidos, ou não são princípios. Incidentes, ou não, os princípios são sempre relativos, sempre estão em relação. Por fim, a amplitude do conceito é seu mérito.

58. Interessantes as críticas às definições de princípios. O caráter hipotético-condicional das regras se faz presente nos princípios, também. O modo de aplicação de princípios não é substancialmente diferente do modo de aplicação das regras. A ponderação não é método privativo dos princípios e o peso não é dimensão dos princípios propriamente ditos, mas das situações.

59. Uma definição adequada de princípios aponta para a circunstância de serem normas direta e imediatamente referidas a fins (valores) e indireta e mediatamente a condutas (fatos), enquanto que regras são normas indireta e mediatamente referidas a fins (valores) e direta e imediatamente referidas a condutas (fatos).

60. Os princípios diferem de valores, de axiomas, de postulados e de critérios. Princípios são normas; valores não. Axiomas são auto-evidentes; princípios exigem demonstração. Postulados são condições para o conhecimento; princípios são objeto de conhecimento. Critérios se referem a normas, mas não são normas; princípios são normas.

61. Como sistemas jurídicos, os ordenamentos são sistemas teleológico-axiológicos, inerentemente abertos, móveis, adaptáveis, flexíveis, incompletos e contraditórios, que só significam algo quando concretizados, conforme as necessidades e as exigências dos problemas jurídicos, essencialmente conflitos.

62. A solução de conflitos é tarefa jurídica e política ao mesmo tempo, caracterizando-se pela busca de superação de conflitos interiores e exteriores aos sistemas jurídicos.

63. As contradições entre normas são ou conflitos entre regras ou colisões entre princípios. Supera-se a contradição de regras pela exclusão de uma delas, conforme critérios formais. Supera-se a contradição entre princípios pela ponderação entre eles, conforme postulados materiais.

64. Improcedentes as objeções à ponderação como método para a superação de contradições entre princípios. A ponderação não esvazia direitos e outros valores fundamentais. É a ponderação que impede o esvaziamento. A ponderação não implica em irracionalidade e arbitrariedade da decisão, porque permite o controle objetivo do procedimento. A ponderação, por fim, não implica em ilegitimidade, porque não eleitos os órgãos e agentes judicantes. Ela se dá por outros meios. E nos sistemas contemporâneo, de altíssima complexidade, é inafastável.

65. Em conclusão posso formular as seguintes observações.

66. As perspectivas do positivismo científico e do positivismo jurídico são absolutamente inadequadas à compreensão dos princípios em um sistema jurídico.

67. Os sistemas jurídicos não podem ser vistos senão em sua inserção com a totalidade da vida e, portanto, indesejáveis abordagens sociológicas, psicológicas e lógicas, mera e simplesmente. Os sistemas jurídicos só podem ser devidamente compreendidos em sua relação com os demais sistemas sociais e com o mundo vital, em sua dimensão fática e valorativa.

68. Os ordenamentos, como sistemas jurídicos, só adquirem sentido e só possuem alcance na medida em que se convertam em ordenamentos concretos, em ordenações materiais efetivas das competências e dos comportamentos e, assim, os ordenamentos, como sistemas jurídicos, só significam algo se, e somente se, participem da totalidade das relações do mundo vital como mais uma dimensão, prospectiva, dinâmica.

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69. As normas, como integrantes de ordenamentos concretos, inconfundíveis com meras disposições, têm, necessariamente, de ser concretizadas segundo os parâmetros dos valores e dos fatos incidentes e ocorrentes nas situações em que se formarem conflitos jurídicos. E por isso que um modelo de ordenamento das competências e dos comportamentos que seja apenas e tão-somente constituído e pautado por regras é inaceitável. Assim como um modelo constituído e pautado apenas por princípios é inútil. A aceitabilidade e utilidade de um modelo de ordenamento das competências e dos comportamentos que se pretenda de caráter dinâmico e de natureza prospectiva depende de sua capacidade de manter seu contato com o mundo vital, estimulando sua espontaneidade, sem mergulhar em um caos da imprevisão. E, por igual, de manter-se como sistema sem fechar-se em um mecanismo de burocratização das demandas e de dominação das personalidades. E isso, já ficou demonstrado, só é possível em se tratando de um ordenamento modelado segundo princípios e regras, produzidos e reproduzidos segundo procedimentos conformados e informados pelo diálogo.


VII – REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Marco Antônio Ribeiro Tura

Pesquisador do Programa de Pós-Doutorado em Direito Político e Econômico da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e Orientador do Grupo de Regulação de Mercados e Políticas Setoriais do Programa de Pesquisas em Finanças Públicas da Escola de Administração Fazendária. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Ministério Público da União. Procurador do Trabalho no Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TURA, Marco Antônio Ribeiro. O lugar dos princípios em uma concepção do Direito como sistema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3817, 13 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26138. Acesso em: 17 abr. 2024.

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