O Sistema Processual Penal Brasileiro
Antes de discorrer sobre os variados posicionamentos doutrinários acerca da classificação do sistema processual brasileiro, é importante lembrar que o “atual” Código de Processo Penal Brasileiro data de 1941, influenciado pelo Código de Rocco, código processual penal italiano de 1930. Como explica Espínola Filho, o código italiano, reflexo da época de Mussolini, tinha uma forte matriz autoritária. Para se ter uma ideia, participou da redação deste último Vincenzo Manzini, representante da escola técnico-jurídica, que via o processo penal como instrumento de combate ao crime e não de garantia de direitos do indivíduo frente ao Estado (VILELA, 2005, p. 49). Para Manzini, por exemplo, segundo Espínola Filho (1954), a presunção de inocência era um absurdo ilógico, pois que, se havia uma acusação contra uma pessoa, era porque existiam fortes indícios de autoria, não podendo esta pessoa ser tratada como inocente.[35]
Diante dessa influência autoritária e da “lógica” da presunção de culpa, até hoje, muitos artigos do Código Processual Penal Brasileiro vão de encontro com princípios e direitos dados ao longo dos anos e garantidos pela Constituição Federal de 1988, fazendo com que não haja uma classificação doutrinária unânime quanto ao sistema processual penal do país.
Para autores como Hélio Tornaghi e Edilson Bonfim, por exemplo, nosso sistema seria bifásico, e, por conseguinte, misto, considerando o Inquérito Policial, nitidamente inquisitivo, como fase preliminar do processo, seguida pela fase judicial, de caráter acusatório.[36]
Mirabette, Tourinho e Scarance, no entanto, refutam o entendimento que se baseia na teoria do processo bifásico para classificar o sistema processual penal como misto, por considerarem que a fase investigatória não é propriamente processual e sim de caráter eminentemente administrativo.[37]
De fato, a participação de um órgão jurisdicional é pressuposto de existência do processo, e, sendo o Inquérito presidido por uma autoridade policial, não passaria este de um procedimento administrativo, só havendo que se falar em processo a partir da demanda apresentada ao órgão jurisdicional competente, quando, ao menos em teoria, as garantias constitucionais do sistema acusatório passam a vigorar. Ademais, diferentemente do que ocorre, por exemplo, na França, que adota o modelo misto, o juiz, no Brasil, em nenhum momento realiza a investigação diretamente.[38]
Nucci também considera o sistema brasileiro misto (inquisitivo-acusatório, inquisitivo garantista ou acusatório mitigado), fundamentando seu entendimento não no processo bifásico, mas em um “senso de realidade”.
Os princípios norteadores do sistema, advindos da Constituição Federal, possuem inspiração acusatória (ampla defesa, contraditório, publicidade, separação entre acusação e julgador, imparcialidade do juiz, presunção de inocência etc.). Porém, é patente que o corpo legislativo processual penal, estruturado pelo Código Processual Penal e leis especiais, utilizado no dia a dia forense, instruindo feitos e produzindo soluções às causas, possui institutos advindos tanto do sistema acusatório quanto do sistema inquisitivo. [39]
Os doutrinadores, por sua vez, que consideram o sistema processual penal brasileiro acusatório se baseiam na posição adotada pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 129, inciso I,[40] que dispõe ser atividade privativa do Ministério Público promover a ação penal pública, o que afastaria qualquer possibilidade de persecução pelo órgão julgador.
Nesse sentido, posiciona-se Paulo Rangel, afirmando que “hodiernamente, no direito pátrio, vige o sistema acusatório, pois a função de acusar foi entregue, privativamente, a um órgão distinto: o Ministério Público, e, em casos excepcionais, ao particular.”[41]
Capez, ao tratar do sistema acusatório, aponta suas características relacionando-as com nossas garantias constitucionais, concluindo, também, ser o sistema acusatório o adotado pelo Brasil:
A Consituição Federal de 1988 vedou ao juiz a prática de atos típicos de parte, procurando preservar a sua imparcialidade e necessária equidistância, prevendo distintamente as figuras do investigador, acusador e julgador. O princípio do ne procedat iudez ex officio (inércia jurisdicional) preserva o juiz e, ao mesmo tempo, constitui garantia fundamental do acusado, em perfeita sintonia com o processo acusatório.
[...]
O sistema acusatório pressupõe as seguintes garantias constitucionais: da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da garantia do acesso à justiça (art. 5º, LXXIV), da garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput e I), da ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX) e da presunção da inocência (art. 5º, LVII). (Gianpaolo Poggio Smanio. Criminologia e juiza especial criminal. São Paulo, Atlas, 1997, p. 31-8). É o sistema vigente entre nós. [42]
Não se nega, no entanto, a “impureza” do sistema brasileiro, considerando que resquícios do sistema inquisitivo ainda permeiam a lei processual penal do país. Como dispõe Rangel,
O Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua essência, pois o Inquérito Policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de investigação, integra os autos do processo, dando acesso ao juiz a informações que deveriam ser desconsideradas em juízo, mas que a prática tem demonstrado que são comumente levadas em consideração pelo magistrado. Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito.[43]
Ainda, para alguns, as possibilidades de produção supletiva de provas ex officio pelo magistrado seriam outros exemplos da “impureza” do sistema pátrio[44]. Rangel, entretanto, refuta esse papel atribuído aos poderes instrutórios do juiz, considerando que tais possibilidades estão ligadas ao princípio da verdade real, e não ao sistema acusatório.
Para Aury Lopes Jr. e Jacinto Coutinho, como visto anteriormente, o núcleo do processo penal está na gestão da prova, já que a finalidade deste seria reconstituir o crime como um fato histórico que é, o que só é possível com as provas trazidas aos autos, que levam à verdade processual[45], corroborando ou não com os fatos narrados.[46]
Destarte, a diferenciação destes dois sistemas processuais [Acusatório e Inquisitório] faz-se através de tais princípios unificadores [dispositivo e inquisitivo], determinados pelo critério de gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio unificador. [47]
Aury Lopes Jr. não nega a importância da separação das funções de julgar, defender e acusar, mas a considera um elemento secundário (assim como a oralidade, a publicidade, o livre convencimento motivado etc.), não sendo por si só suficiente para a adequação do modelo acusatório.
Apontada pela doutrina como fator crucial na distinção dos sistemas, a divisão entre as funções de investigar-acusar-julgar é uma importante característica do sistema acusatório, mas não é a única e tampouco pode, por si só, ser um critério determinante, quando não vier aliada a outras (como iniciativa probatória, publicidade, contraditório, oralidade, igualdade de oportunidades etc.).[48]
Assim, para Aury Lopes Jr. e Jacinto Coutinho, diante dos dispositivos que atribuem poderes instrutórios ao juiz, o sistema processual penal brasileiro não seria misto e muito menos acusatório, mas sim essencialmente inquisitivo.[49]
[...] pode-se concluir que o sistema processual penal brasileiro é, na essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz, o que é imprescindível para a compreensão do Direito Processual Penal vigente no Brasil.[50]
No entanto, Pacelli, que vê como elemento essencial a separação das funções nas mãos de personagens distintos, refuta esse posicionamento, alegando que:
Não será o fato de se atribuir uma reduzida margem de iniciativa probatória ao juiz na fase processual, isto é, no curso da ação, que apontará o modelo processual penal adotado.
O juiz inerte, como é a regra no denominado sistema de partes do direito norte-americano, normalmente classificado pela doutrina como modelo acusatório puro, encontra fundamentação em premissas e postulados valorativos absolutamente incompatíveis, não só com nossa realidade atual, mas com a essência do processo penal.
E isso porque a base ou estrutura sobre a qual repousa o aludido sistema é, e como não poderia deixar de ser, a igualdade entre as partes. Mas não a igualdade material, na qual se examina as concretas possibilidades de exercício de direitos e faculdades, mas unicamente a igualdade formal, isto é, aquela segundo o qual todos são iguais perante a lei, ainda que, na realidade histórica, jamais se comprove semelhante situação (de igualdade). Em sistemas como este, do juiz inerte, há se conviver, em maior ou menor grau, com a possibilidade de condenação de alguém pela insuficiência defensiva, reputada, a priori, igual à atividade acusatória.[51]
O supracitado autor, assim como Rangel, entende que, diante das distinções entre o sistema inquisitivo e o sistema acusatório, o adotado pelo Brasil seria mesmo o segundo, contudo, reconhece que a questão não é simples:
Há realmente algumas dificuldades na estruturação de um modelo efetivamente acusatório, diante do caráter evidentemente inquisitivo do nosso Código Processual Penal e seu texto originário.
Nada obstante, pequenos, mas importantes, reparos foram feitos ao longo desses anos, em relação à construção de um modelo prioritariamente acusatório de processo penal.[52]
Geraldo Prado[53], por sua vez, considera que o que prevalece no Brasil é a teoria da aparência acusatória, uma vez que a Constituição Federal, com todas as garantias e a privatividade da ação penal pública dada ao Ministério Público, de fato se filiou ao sistema acusatório. Mas, levando em consideração o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica dos tribunais, diz que se deve admitir que o princípio e o sistema acusatórios ainda são meras promessas.
Conclusão
Enquanto não houver acordo sobre o princípio fundante do sistema processual penal, tampouco haverá posição unânime quanto ao sistema adotado pelo Brasil.
Reconhece-se a presença de dispositivos típicos do sistema inquisitivo, no que concerne ao poder instrutório do juiz, no ordenamento brasileiro. O próprio Rangel aponta de forma exemplificativa os artigos 5º, II; 13, II; 18; 26; 75, 83; 241; 311; 385; 413, todos do Código de Processo Penal.[54] Dispositivos estes que, dentre outros, para Aury Lope Jr, são provas de que a separação inicial de funções deixa de existir ao longo do processo, permitindo “que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora.”.[55]
Tais dispositivos, no entanto, devem ser vistos com base no sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, sendo, simplesmente, considerados não recepcionados pela Carta Magna, e não um indicativo de que o sistema brasileiro seja inquisitivo.
A questão da atuação do juiz, em momento anterior a denúncia, mesmo que seja a requerimento, compromete substancialmente a parcialidade do magistrado, que não deveria sequer ter acesso ao Inquérito Policial, para cumprir seu dever de julgar exclusivamente com as provas colhidas em juízo.
O manejo probatório de ofício pelo juiz anterior à ação, por si só, já coloca em xeque sua imparcialidade, mas, em certos momentos durante o processo, ainda se faz necessária, quando, por exemplo, na audiência de instrução e julgamento, é feita referência a alguma pessoa que contribuiria para a elucidação dos fatos – a chamada testemunha referida –, nessa situação, teria o juiz o dever de agir e chamá-la a juízo.
Da mesma forma, a iniciativa probatória do juiz, no decorrer do processo, também se mostra necessária para garantir a igualdade de atuação das partes em um sistema como o brasileiro em que o acusado poucas vezes consegue pagar por uma defesa atuante, ficando nas mãos de advogados relapsos ou da Defensoria Pública, que normalmente não está na prioridade do Estado e sofre com a falta de recursos.
Ademais, antes de refutar por completo a atuação de ofício do magistrado, cumpre ressaltar que o juiz, ao determinar a produção de uma prova, não sabe o seu resultado, de modo que não há como afirmar que sua imparcialidade estaria afetada e que estaria o julgador procurando meios de condenar o acusado e não meios de formação de seu convencimento até mesmo da inocência do réu.
Em busca da concretização do sistema acusatório processual almejado na Constituição Federal, o que se deve é aplicar uma interpretação constitucional a todos os dispositivos do Código de Processo Penal, procurar meios para que eventuais atuações do juiz na fase do Inquérito Policial não venham a contaminar o julgamento da causa e não condenar por completo o poder instrutório do magistrado durante o processo, mas sim tratá-lo com razoabilidade.
Referências
BEM, Leonardo de. O processo penal brasileiro e sua matriz inquisitória. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/leonardodebem/2012/03/27/o-processo-penal-brasileiro-e-sua-matriz-inquisitoria/>. Acesso em: 17 jul., 2012.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
CAPEZ, Fernado. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios do Direito Processual Penal brasileiro. Separata ITEC, ano 1, nº 4 – jan/fev/mar 2000.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954.
HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MALAN, Diogo e SAAD, Marta. Origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo. Disponível em: <http://www.malanleaoadvs.com.br/artigos/origens_historicas_sistemas.pdf>. Acesso em: 17 jul., 2012.
MANZANO, Luis Fernando de Moraes. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2010.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.