6. O QUE É O ESTADO?
A corrente majoritária no mundo jurídico associa o Estado à ideologia do Bem Comum, sacramentando-se com a definição trazida pela encíclica Pacem in Terris, em 1963. O senso comum também referenda este pensamento, como diriam nossas mães: “O Estado é um conjunto de pensamentos e ideais mais ou menos iguais dos que lutam por uma vida melhor para todos”. A lógica não traria conclusão diferente, afinal, por que razão o homem criaria uma instituição tão poderosa quanto o Estado para lhe fazer o Mal?
Todavia, a análise das relações de poder não demonstra exatamente isso, pois há classes sociais e grupos de interesses que instrumentalizam o Estado, levando-o a agir de acordo com motivações menos nobres. O Estado brasileiro, por exemplo, apesar dos avanços institucionais, normativos e políticos, ainda reflete o passado patrimonialista. O Estado Patrimonial guarda como segrego de alcova o fato de que as impurezas da cultura das elites dominantes são estendidas a todo o conjunto da cultura nacional.
Historicamente, o Estado remonta à Suméria, atual Iraque (7000 a.C.). As primeiras formas de Estado, o chamado Estado Antigo, eram baseadas exatamente na exploração da explosão da violência, a fim da conquista e da dominação (com penalidades igualmente lastreadas em repressão e violência) 21.
Para a antiga Filosofia do Estado, Aristóteles e Platão, o Estado surge como a melhor forma para se organizar a sociedade; como organização política para a justiça. Porém, alguns sofistas acreditavam ser o Estado apenas “o interesse do mais forte”, encontrando-se o Estado basicamente ligado ao poder. Em todo caso, mesmo que se ocupasse de grupos de interesse específicos, o Estado não seria uma oligarquia – acreditavam os gregos –, uma vez que vários grupos em disputa equilibrariam a balança da justiça.
O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia 22, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com uma vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).
Como definiu Hannah Arendt, de modo preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia 23, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação.
Na Idade Média, o Estado passou a ser tido como instância de poder inferior à Igreja; sendo algo frequentemente Mau (Santo Agostinho) ou como mero reflexo da Igreja (Tomás de Aquino). Do Renascimento em diante, como status (Maquiavel 24) e contrato (Hobbes), o Estado se separou gradativamente da Igreja: a soberania temporal 25 se afirmou na transição para o primado do Estado (laico).
Com Spinoza, o Estado sintetiza a liberdade, “a comunidade de homens livres, mas livres porque vivem no Estado segundo o decreto comum”. Neste sentido, o Estado é o equilíbrio entre religiões, ideologias, classes e indivíduos. Na Ilustração, o Estado é o caminho da razão e a libertação do obscurantismo (despotismo esclarecido). Já o romantismo alemão acabou por associar o Estado à Nação, em que o Estado encarnaria o próprio espírito nacional – e como se não houvesse, por exemplo, contradições entre a sociedade e a família (Mora, 2001). Em todo caso, surgiram noções, ideais, elementos e instituições que perduram até hoje:
O Estado é status, força que garante a permanência, estabilidade, durabilidade da organização social (Maquiavel)
O Estado e suas leis correspondem ao pacto ou contrato anterior (Hobbes)
O Estado sacramenta a “vontade geral” (Rousseau)
Como componente do Estado, o povo não é um meio político (Kant)
O fortalecimento da moral coletiva é o objeto do Estado, como espírito público (Hegel)
O Estado é “a organização da sociedade que garante a liberdade” (Spinoza)
O dever fundamental é garantir o cumprimento dos direitos fundamentais (constitucionalismo)
Para a Sociologia Política do Estado, o Poder Político tem cada vez mais sido relacionado ao capital, como exemplo de sua temporalidade. Contudo, o Estado pode ser tido como uma instituição geral que congrega muitos elementos e outras instituições-parte:
Instituições de suporte dos meios de violência e de COERÇÃO
Suas instituições são geograficamente delimitadas, como SOCIEDADE
A institucionalização das normas sociais e das regras jurídicas gera uma CULTURA POLÍTICA compartilhável
Neste leque, o Estado é definido como organização social que produz cultura política por meio da coerção. No entanto, configura-se um paradoxo insolúvel, entre liberdade e coesão social: “A teoria tradicional preocupava-se com o alcance dos poderes discricionários do Estado” (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 258). Mas, a realidade obrigou a uma segunda concepção “infra-estrutural”. Isto é, o poder do Estado é medido a partir de sua capacidade de colaborar com os vários grupos sociais que o compõe. Este poder colaborativo ainda atuou como limitador ao poder despótico do Estado.
Na interpretação da Filosofia Jurídica do Estado, o leque é amplo, de Hegel a Kant, de Del Vecchio a Duguit. Hegel definiu como Estado Ético: “realidade da ideia moral”; “substância ética consciente de si mesma”; “síntese do espírito coletivo”; “instituição acima da qual paira somente o Absoluto: a arte, a religião, a filosofia”. Em Kant, o Estado surge como “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. Para Del Vecchio é “a expressão potestativa da Sociedade”; “o Estado é o laço jurídico ou político ao passo que a Sociedade é uma pluralidade de laços”. Em Burdieu: “o Estado se forma quando o poder assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante uma operação jurídica que se chama a institucionalização do Poder” (Bonavides, 2012, p. 66-67 – grifos nossos). Também é possível ir além e visualizar a política-social, como o exercício de uma força política capaz de proporcionar interação e sociabilidade:
Há atualmente a necessidade de ‘deflacionar’ seja a política-competência, seja a política-interesses para conquistar de novo um observatório capaz de voltar a conectar a competência política e os interesses com o quadro do conjunto das instituições e dos procedimentos jurídicos nos quais funciona o Estado Moderno, e também com o quadro dos valores culturais de onde nasceu a liberdade moderna (Cerroni, 1992, p. 12. – grifos nossos).
Neste sentido, o Estado deveria atuar como vetor político de elevação dos critérios de racionalização e imprimir valores próprios ao processo civilizatório, e a partir de ideias e ideais como República, Democracia, Estado de Direito, Liberdade, emancipação, consciência e responsabilidade pública.
Em todo caso, inicialmente, ainda podemos entender o Estado como um tipo privilegiado de comunhão política, seja como força potestativa, seja como aliança de classes. Mais frequentemente é definido como o Poder Político organizado, sendo centralizado na forma de um poder unitário. O que implica em afirmar que o Estado é um poder único e centralizado (mesmo sob a forma da Federação e dos Estados autônomos). O Estado também é a instituição por excelência responsável pela organização das demais – o que ressalta a importância da divisão de funções – para a administração e controle do poder – e congrega como elementos funcionais o povo, o território e a soberania. Mas isso não explica muita coisa, pois é preciso, por exemplo, discutir em que consiste a soberania, a quem e de que modo se organiza esta soberania, em que bases territoriais e culturais abriga-se determinado povo.
Em todo caso, como instituição por excelência, o Estado conhece a outra forma complementar de exercício do Poder Político, além da regulação da política – neste caso quando opera como Poder Público. Se o Estado é o Poder Político centralizado (esta também seria uma definição para soberania), o Estado também é o Poder Público que se manifesta como organicidade e funcionalidade administrativa.
É como se dissesse que o Poder Público é uma forma especial de conversão do Poder Político, atuando como prestação de serviços essenciais ao público, ao povo, e à administração do próprio Estado. Assim, o Estado é a conversão do poder in natura – inerente a qualquer organização social – em poder organizado para a dominação.
Então, Estado é a transformação da política em ato regimental do poder de se estabelecer a própria dominação. O que permite entender que o Estado promove a ordem jurídica por meio da coação física. Mas, acima da força física, o Estado é a organização política que faz brotar a norma jurídica onde só havia a força. Contudo, o Estado é a instituição que se prima pelo exercício legítimo da força física e do monopólio legislativo. O efeito prático é a criação da hegemonia exercida sobre a força física e demais mecanismos de controle social.
Este é o “fator hegemônico” que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da sociedade. Nas sociedades capitalistas, nas democráticas e nas republicanas, é o fenômeno que ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do “direito a ter direitos”. Assim, efetivamente para que hegemonia não seja sinônimo de monopólio, o emprego do termo hegemonia deveria seguir o princípio grego:
O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”, “ser líder”, ou também do verbo eghemoneuo, que significa “ser guia”, preceder, “conduzir”, e do qual deriva “estar à frente”, “comandar”, “ser o senhor”. Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar 26. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01).
Desse modo, o Estado é a instituição que exerce o monopólio (legítimo) da força física, mas também deveria ser o guia e o suporte dos institutos democráticos e republicanos. O que nos leva a concluir que o Estado é mais do que um contrato de poder ou de dominação, mesmo porque a dominação pode rapidamente se converter em opressão e até expropriação ilegítima de bens, valores, tradições e de graves violações de direitos.
É certo que uma escolha política anterior determinou o Estado – se foi por meio de um contrato, esta é outra questão; porém, ao mesmo tempo, o Estado é a instituição capaz de transformar a política em norma e regimento. Desse modo, o Estado faz conviver e legitima as regras sociais e as normas jurídicas. Portanto, o Estado é o poder organizado para a dominação, para o fato de que a política impõe finalidades, meios e consequências. Vendo-se que o Estado é o árbitro entre meios e fins políticos. Portanto, utilizar a ágora para aniquilar a liberdade e o próprio Estado de Direito é como retroagir a um Estado pré-moderno, abrindo brecha a muitos usos/abusivos do poder. O que nos leva a concluir como em Hannah Arendt que o Estado Constitucional é regulado pela soberania popular:
O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço (Arendt, 1998, p. 75).
A principal função pública do Estado é assegurar regularidade à organização social que lhe deu origem. A fim de assegurar o controle social – instaurando níveis suportáveis de desregramento e infrações sociais, como normais – o Estado conta com a Administração Pública. Por isso, o Estado ainda é Administração Pública e gestão de políticas públicas.
De modo amplo, definindo-se o Estado como organização social para a normalidade, pode-se ver que o Estado regulariza os embates políticos e ideológicos e assim limita juridicamente os conflitos de interesse. Obviamente, o que é normal ou não será estabelecido pelos grupos dominantes em exercício no próprio Poder Político.
Por fim, o Estado é uma forma especial de organização da política, da normatização jurídica e das relações sociais. De tal forma que o Estado se converte em soberania política, jurídica, organizacional. Portanto, ainda pode-se dizer que o Estado, como poder soberano, sofre uma divisão e passa a conhecer outras formas de limitação ao poder central, por meio da soberania interna e externa. Desde as formas iniciais à compleição mais atual do Estado Moderno, percebe-se a racionalidade crescente como componente lógico da política centralizada.
7. ANTOLOGIA POLÍTICA DO ESTADO RAZÃO
O Estado e o Direito como criações humanas
Com relação à origem social do Estado, vamos nos basear nas interpretações de dois dos maiores expoentes da Ciência Política: Thomas Hobbes e Giambatista Vico. Hobbes é considerado o pai do Estado Moderno, ou simplesmente teórico do absolutismo, e Vico foi quem primeiro definiu a história como ciência. Com essa inspiração, podemos retomar a eterna questão acerca da origem da política: em que aspecto nossa engenharia humana nos diferencia dos demais animais sociais? Todos os animais sociais produzem política, como nós?
Em primeiro lugar, se a resposta fosse afirmativa teríamos de admitir que há diversos ou vários Estados na natureza, uma vez que a política seria natural a todos os animais sociais. O que não é verdade, pois se há muitos animais sociais, de todos, o homem é o único animal político. Hobbes nos dirá que a origem do Estado está na necessidade da sobrevivência e no medo de que sozinhos somos incapazes disso. Hobbes dirá o seguinte: “O fim último, a causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita” (Hobbes, 1983, p. 103. – grifos nossos).
Antes da criação do Estado, como reserva maior do poder e da soberania, como se davam as organizações sociais em torno do poder?Ainda em Hobbes, vemos que: “Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida” (Hobbes, 1983, p. 103. – grifos nossos). Então, diante disso, o Estado deverá responder com o acréscimo ou implemento da segurança pública. Acertadamente, desde o pensamento clássico grego, política e polícia tem a mesma raiz, a mesma ontologia, uma vez que a política (o Estado) deve assegurar exatamente a segurança. Fora desse contexto o Estado perde sentido histórico, deixa de ser Polis.
Por outro lado, por que há necessidade da organização política em torno do Estado, se já somos compelidos à vida social desde a constituição das famílias? Viver socialmente não bastaria para suprir as necessidades humanas? Basear nossas cidades e sociedades em outras espécies, igualmente organizadas em vida social, não seria suficiente para conseguirmos a paz, a harmonia, a segurança que queremos? Imitar a vida natural, neste caso, não seria um bom método político, especialmente hoje em que as sociedades modernas e complexas estão exageradamente conturbadas?
Neste sentido, em que a vida social possa imitar a natureza, depois de Hobbes, a análise de Giambattista Vico (1668-1744) parece bastante interessante e sugestiva, pois que o chamado estado familiar não era uma construção política muito bem definida:
Vico parte do estado das famílias, embora posterior ao “estado ferino”, que pode ser interpretado como uma historização, ainda que fantástica, do estado de natureza hobbesiano, no qual o homem é o lobo (idest, “fera”) do homem; assim, do estado de famílias, que é um estado ainda pré-político, a humanidade passa ao Estado político, que nasce sob a forma de república aristocrática com a conjunção dos chefes de família, para só então chegar, em um segundo período, à república popular (Bobbio, 2000, p. 119).
De certo modo, pode haver esta comparação entre os muitos animais sociais – na linha de uma biologia política ou de uma política da natureza -, como se a biologia pudesse emprestar ensinamentos à vida social humana complexa e à política do Estado. Afinal, há outros tipos de sociedades:
É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem socialmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo (Hobbes, 1983, p. 104).
O próprio Hobbes enunciará seis razões para diferenciar o estado de natureza do próprio Estado, como organização preliminar do Estado Político: “Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio 27, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece” (Hobbes, 1983, p. 104. – grifos nossos). Ou seja, o homem vive em sociedade, mas não passa um segundo sem que esteja cobiçando o poder – sua vida social, em hipótese alguma, é desinteressada, dirigida ao conforto dos outros. Ao contrário, o ódio leva ao confronto com os outros. Antes de tudo e de todos, está o que cada um quer: o homem é egoísta.
Depois está a diferença entre o querer dos indivíduos isoladamente e a sociedade global: “Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente” (Hobbes, 1983, pp. 104-5).
Entre esses animais sociais não há competição e disputas pelo poder – a não ser quando lutam com outras espécies a fim de as subjugar. Mas, entre os homens, a regra é exatamente a comparação e a acusação, que levam à disputa e à regra da acumulação: “Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público” (Hobbes, 1983, pp. 105). A disputa política, como bem se sabe, raramente é honesta, limpa, sem o uso da regra de que na guerra vale-tudo – não raramente, há mistura da vida pública com a vida privada, em que os desejos mais mesquinhos se avolumam sobre o interesse público.
Em quarto lugar, está o poder da comunicação: “[...] alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem” (Hobbes, 1983, pp. 105). Todos nós, hoje em dia, sabemos como a mídia pode ser nefasta e perversa, recusando-se a cumprir o papel social destacado pela Constituição Federal. Mas Hobbes também já sabia e advertia para o uso prejudicial da palavra.
As demais espécies organizativas, ao se associarem, assim o fazem para buscar meios de satisfazer a própria vida. O homem é insatisfeito em tudo, em todos os aspectos: “Quinto, as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado” (Hobbes, 1983, pp. 105). As vaidades do poder devem ser consideradas em sua grandeza por aqueles que procuram levar a prudência para o recinto da política.
Com isso, podemos ver que nosso pacto ou contrato social é mero artifício – para que as coisas não fiquem ainda piores – ao passo que a vida social das demais espécies decorre da natureza. Buscamos a vida social para diminuir o impacto de nossas fraquezas pessoais, a sociedade deve amenizar os danos da mediocridade:
Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício comum (Hobbes, 1983, pp. 105).
De todas essas diferenças decorre ou sobressalta a ideia de que, para nós tanto a sociedade quanto o Estado superveniente, são obras e criações artificiais e só assim se mantém, com repetidas réplicas de ações comuns – a repetição de ações no interior das instituições políticas torna possível crer nessa organização. Com o que, ainda podemos indagar: se na natureza vigoram as leis da sobrevivência e do poder dos mais fortes (nem sempre fisicamente), seguir o livre curso da natureza, deverá realmente nos levar à paz?
Por fim, seguindo Hobbes, podemos entender que se a natureza humana não concorre para a paz, então, o Estado deverá estar baseado no terror – o terror de que a vida individual não seja possível, o terror que deve dobrar as vontades do homem político egoísta e indiferente à virtù:
É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos (Hobbes, 1983, pp. 106).
Assim, temos que o Estado soberano, esse Leviatã – (biblicamente, um crocodilo gigantesco) representa a maior organização do poder na Terra, bem como a maior ameaça à desobediência das regras impostas –, é a personificação do Deus Moral, só abaixo do Deus Mortal. Entretanto, que razões ou conjunto de implicações nos teriam trazido ao Estado como o conhecemos, na forma de uma organização tão complexa e intrincada? Seria mesmo apenas o temor de que o egoísmo humano nos legaria à desgraça total enquanto espécie?
Veremos que, além desse fator psicológico, há hipóteses variadas que podem auxiliar na explicação e no entendimento dos muitos fatores que dão ou deram forma ao Estado. Algumas dessas hipóteses nós já vimos, como por exemplo, a própria ideia de necessidade de organização social para a obtenção de maiores possibilidades de sobrevivência dos grupos humano. No entanto, outras teorias e exemplos práticos ou históricos (do passado e do presente) também serão acrescentados. Enfim, passemos às principais hipóteses acerca da origem do Estado.
Vico: a história como ciência
Vico constrói uma filosofia da história apresentada por uma teoria cíclica das formas de governo. Essa perspectiva cíclica de tomar a história não deixa de propor uma espécie de “desencantamento do mundo”. Esse desencantamento civilizatório (mesmo que ciclicamente retorne-se à barbárie), acompanha um seguimento maior do Renascimento, que é a aposta na construção da política como método racional, próprio da lógica matemática. Vico apresenta uma trilogia que parte de Roma: aristocrática, democrática, monárquica. Este sequenciamento, porém, leva-o retornar a um “estado bestial” (stato ferino) em que não há sociabilidade. Nesta fase, seríamos seres totalmente associais.
Por outro lado, há diferenças claras entre os três tipos de estado natural (que se colocam acima da bestialidade humana inicial). Entre o “estado bestial” e o nível das repúblicas há a fase intermediária das “famílias”. E aí, novamente, o desencantamento é uma razão progressiva e este cursor da história se inicia com o mito. A origem dessa razão precursora estaria na vergonha e na moral abalada e o matrimônio e a sepultura nasceriam dessa religião ou mito. Para Vico, este já seria o estado de natureza, posterior ao estado bestial. Portanto, o estado de natureza é um estado social primitivo (mas não bestial) e corresponderia à autoridade econômica (oikos: casa) ou familiar. Só que a família era um conjunto de clientes (cliens): filhos, servos, vassalos.
Esta forma de autoridade social se basearia em uma situação objetiva de desigualdade: 1) desigualdade natural entre pais e filhos; 2) a que mais denota análise, uma desigualdade entre duas classes de homens: os poderosos (já saídos do bestialismo) e os serviçais (seres inferiores submetidos ao estado mais primitivo). Este quadro social, entretanto, alimentaria a rebelião dos escravos, agora movidos pelo desejo de liberdade, ao mesmo tempo em que forçaria os pais das famílias (constituídas de “senhores superiores”) a se unificarem para dominar as rebeliões.
A primeira forma de Estado, portanto, seria esta “república aristocrática” (coincidente em Weber na forma da “dominação patriarcal”) e teria por base a desigualdade entre patrícios e plebeus: os primeiros, que gozavam de direitos privados e públicos e, os demais, que não tinham status jurídico definido. Deste impulso histórico o homem teria chegado à “república popular”: a segunda fase da autoridade, portanto, originou-se com a requisição do direito de rebelião ou luta de classes. Toma o princípio de que “é natural que o servo deseje ardentemente escapar da servidão”, mas a origem é histórica:
Quando essa luta termina, isto é, quando os plebeus alcançam em primeiro lugar o direito de propriedade, depois o direito às núpcias solenes e legítimas (“connubia patrum”), por fim os direitos políticos (que Vico faz coincidir com a Lex Publilia, de 416 a.C., com a qual “a república romana reconheceu sua transformação, de aristocrática em popular”), dá-se passagem da primeira para a segunda forma de república (Bobbio, 1985, pp. 121-2).
A Segunda República para Vico tem início com a luta pelo reconhecimento de direitos, e isto numa era antes de Cristo: lutas desesperadas de oprimidos pelo reconhecimento de seus direitos. Depois, Goethe diria: “Quem está com o direito, espera, e a hora virá” (1997, p. 418).
A divisão dos períodos históricos de Vico, por sua vez, segue a tradição egípcia: era dos deuses, dos heróis e a dos homens: 1) Estado das Famílias: “homem primitivo era mal desperto do sono da animalidade”. 2) Sociedades Heroicas: dominadas por homens fortes, rudes, violentos, mas que são os verdadeiros fundadores de Estados (homens de virtù, para Maquiavel), dão passagem do estado de natureza para o estado civil. 3) Era dos Homens: república popular ou monarquia (duas espécies do mesmo gênero). Sua perspectiva histórica também pode ser dividida de acordo com as fases da alma: percepção, fantasia, razão (o ápice da humanização).
Vico também estabeleceu três formas de jurisprudência: 1) sabedoria divina ou “teologia mística” (mystae: definida por Horácio como própria dos “intérpretes dos deuses”); 2) jurisprudência heroica – a qual Homero remete à “reputação dos antigos jurisconsultos” (cavere: acautelar-se para provar em juízo a própria razão; de iure respondere: “encontrar cautelas relativas aos contratos”); 3) jurisprudência humana: “guarda a verdade desses fatos e inclina benignamente a razão das leis a tudo aquilo que demanda a igualdade das causas” (Vico, 1999, p. 407). Jurisprudência quer dizer que levamos a Prudência para o direito e que se decide de acordo com alguma forma de sabedoria.
Ao que corresponderiam três formas de autoridade: a) divina; b) heroica; c) humana: “oculta no crédito de pessoas experimentadas e de singular prudência nas coisas da ação e de sublime sabedoria nas coisas inteligíveis” (Vico, 1999, p. 409). Vico também lembra a necessidade de evitarmos a armadilha das facilidades do poder já indicadas por Lívio: Saepe spectabat ad vim (“tendia sempre à violência”). Fato que respondia com o próprio Lívio, mas tendo a prudência como receita: “O uso da violência incita à revolta popular” (Vico, 1999, p. 409. – grifos nossos). Novamente, a necessidade da jurisprudência.
Esta última modalidade de ação política, baseada na prudência dos “mais sábios e experimentados”, coincidia com a “autoridade do conselho” dos jurisconsultos romanos, e que se diziam “autores”. Certamente, uma forma superior de basear a autoridade (e o poder) não mais sob indivíduos que se pensam simples pupilos e que estão sob a autoritas tutorum. Por fim, concomitantemente, há três espécies de razão: 1) divina; 2) Razão de Estado; 3) razão natural: aequum bonum ou aequitas naturalis — esta própria da multidão, mas movida pela “motivação dos justos” (hoje seria bom senso?).
A visão histórica de Vico é progressiva e cíclica, mas incorre em um tipo de visão regressiva: a passagem de uma constituição histórica a outra implica sempre em degeneração. Quando o curso da história se esgota, retorna-se ao ponto de partida, esse ricorso (um revés do corso da história) é tomado de exemplo da queda do Império romano e a chegada da Idade Média: “retorno à barbárie” ou “Segunda Barbárie”. Pois, aí teríamos retornado à fase das famílias. A definição do feudalismo, como era das trevas, segue este sentido de ricorso, retrocesso histórico.
Há muitas causas dessas transformações históricas, mas a raiz, entretanto, está na “barbárie das ideias”, a razão libertina, a própria “razão iluminista”. Dessacralizando a natureza e a história (sem telos), perde-se o “temor reverencial” e o homem retorna à selva de instintos. Com isto, Vico em muito se antecipou ao que chamaríamos de crise civilizatória.
Trata-se do princípio da força viva que a humanidade cria para si própria. Sobre o método histórico, escreve Vico: “Os fatos da história conhecida [...]’ devem se ‘referir a suas origens primitivas, divorciados das quais eles até então pareceram não ter uma base comum, continuidade nem coerência” (Wilson, 1986, p. 10) 28. A história é continuidade com coerência.
A filosofia da história de Vico é cíclica e sua fonte de inspiração é o retorno à Antiguidade clássica greco-romana. Em sua filosofia, reparte a história em três tempos: a) história dos deuses; b) história dos heróis 29; c) história humana. A terceira fase é composta de guerras civis semelhantes às lutas de classes e à conquista de um direito escrito — superior ao direito natural. Este processo trifásico ocorreria em espiral. Vico fala em três tipos de direitos, de governos e de autoridades, até que apresenta sua tese histórica evolutiva que engloba a Razão de Estado:
A segunda foi a razão de Estado, chamada pelos romanos “civilis aequitas” 30, a qual Ulpiano dentre as Dignidades [...] nos referiu como não sendo naturalmente conhecida por todos os homens, mas por alguns poucos experimentados no governo, que saibam distinguir o que pertence à conservação do gênero humano. Da qual foram naturalmente sábios os senados heroicos, e, acima de todos, o romano, prudentíssimo nos tempos da liberdade tão aristocrática, nos quais a plebe era efetivamente excluída do trato da coisa pública, bem como da popular, por todo o tempo em que o povo nas públicas atividades se fez governar pelo senado, como ocorreu até os tempos dos Gracos (Vico, 1999, pp. 411-2 – grifos nossos).
Como vemos, a Razão de Estado era tarefa da aristocracia dominante, mas sempre próxima do povo: “...a civil equidade tudo submetia naturalmente àquela lei, rainha de todas as outras, concebida por Cícero com a mesma gravidade da matéria: “Suprema Lex populi salus esto” 31 (Vico, 1999, p. 412).
A corrupção da política (como ideal grego de liberdade e autonomia), entretanto, está na inversão da predileção da vida pública pela privada, ou seja, na subversão do público pelo privado (p. 413). O suporte da Razão de Estado, então, estaria na Aequitas naturalis (equidade natural): “E a equidade civil, ou razão de Estado, foi entendida por poucos sábios de razão pública e, com a sua eterna propriedade, é conservada como secreta dentro dos gabinetes” (Vico, 1999, p. 415). A Razão de Estado envolve o conhecimento dos segredos do Estado (arcana imperi).
Para Vico, a Razão de Estado não é a forma de governo ou de autoridade civil mais evoluída. Pois, teria início com a luta pelo reconhecimento de direitos. Não é a mais evoluída, mas poderia ser tida como a principal porque o homem já estaria em outro nível de sua evolução política, na fase do pós-luta por conservação. Diferentemente de toda a tradição política, portanto, a Razão de Estado não corresponde à lua por conservação do próprio Estado, mas sim à luta por emancipação de uma classe social de seus indivíduos igualmente fundadores, mas escravizados. Assim pode-se dizer que se organizou a luta pelo reconhecimento dos sujeitos, das demandas, das classes, das ações da “maioridade” e para que se legitimasse a “motivação dos justos”, inibindo-se a corrupção e os usurpadores. A Razão de Estado é uma procura por explicações racionais (ou não) para justificar a ocorrência do Estado Moderno. Em todo caso, cabe ressaltar que autores e escolas clássicas destacaram-se na consideração de que o Estado é uma criação, uma intenção evidente de determinados grupos humanos. Este “querer” o Estado, por sua vez, decorre de um adensamento na ordem da cultura política.