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Aplicação da Lei de Improbidade Administrativa

uma decorrência de seu enfoque principiológico

06/01/2014 às 06:05
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A Lei de Improbidade Administrativa é lei especial, com procedimentos e regras próprias, compatíveis com o Estado Democrático de Direito, que possuem autonomia em relação às demais esferas de atuação jurídica.

I – INTRODUÇÃO

 No exercício de qualquer atividade de interesse público, o principal dever a ser observado pelo agente público é o de agir com lealdade e moralidade, é o agir de forma honesta não apenas no trato de cada um dos bens públicos, preservando o equilíbrio entre as receitas e os dispêndios mínimos necessários para a realização dos fins públicos, mas também no sentido de preservar o interesse público como um todo, o interesse do povo, verdadeiro titular dos bens que são administrados.

 Por conseguinte, deve ser observado o dever de agir de acordo com a finalidade pública, atingindo, com seus atos, os interesses maiores que são os de todos os cidadãos, evitando totalmente qualquer protecionismo ou atendimento a interesse pessoal.

 Assim, há o dever de agir com impessoalidade na prática de todos os atos e, para que tais atos possam ser suscetíveis de controle pelos superiores e, principalmente, pelos administrados, os agentes públicos devem agir com transparência, dando publicidade aos seus atos e, também, usando sempre linguagem acessível ao povo, verdadeiro titular do patrimônio público.

O ato de improbidade administrativa representa violação ao dever maior consagrado ao agente público, o dever ético de agir, pois ao agente público são confiadas atividades públicas, quando prestadas pela Administração Pública de forma direta, ou atividades de interesse público, que decorrem da prestação de serviços delegados aos particulares por meio de concessão ou permissão.

O art. 37 da Constituição Federal prevê os princípios que devem ser observados pela Administração Pública, sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, mas o rol não é taxativo e outras normas também podem prever valores ou axiomas a serem atendidos por todo aquele que lida com o interesse coletivo, como o fez a Lei nº 9.784/99, prevendo os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, finalidade, motivação, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica interesse público, que orientam o processo administrativo federal, bem como a Lei 8.429/92, que possui axiomas específicos dirigidos ao trato da improbidade administrativa.


II – AUTONOMIA DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E AMPLITUDE VALORATIVA

Os princípios normativos decorrem, fundamentalmente, do Estado Democrático de Direito, Estado que atua no interesse do povo, que cuida da res pública observados os limites legais, assim, podemos dizer que a improbidade administrativa configura norma autônoma com fundamento em todo o arcabouço que valora o cuidado que se deve ter com o bem público, orientada, principalmente, pelo princípio republicano, regra máxima da qual surgem os demais subprincípios, desdobramentos valorativos do subsistema normativo da improbidade administrativa.

 Da autonomia existente no sistema de preservação da probidade administrativa, decorre que os tipos legais previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA ou Lei nº 8.429/92 não configuram um rol taxativo, ao contrário, a enumeração é meramente exemplificativa de condutas, devendo o aplicador da lei analisar, caso a caso, se houve ou não violação aos princípios que regem a Administração Pública ou a prática de ato com o objetivo de causar dano ao erário ou gerar enriquecimento ilícito ao agente público ou a terceiros.

Em regra, os atos de improbidade são punidos a título de dolo, contudo, há previsão no art. 10 da LIA de punição também por ato culposo do agente público que causa dano ao erário, em razão do descuido ou desleixo no trato dos bens públicos, nas figuras negligência, imprudência ou imperícia.

Aqui temos uma polêmica. Uma primeira corrente entende que a previsão do art. 10 é inconstitucional e explica que a punição de ato de improbidade a título de culpa importaria em ofensa à razoabilidade e à proporcionalidade, uma vez que as penas aplicadas aos atos de improbidade foram criadas para os atos de maior gravidade, podendo culminar, inclusive, em perda dos direitos políticos, um direito fundamental, cláusula pétrea que não pode ser suprimida dos cidadãos a não ser em casos excepcionalíssimos, neste sentido, a jurisprudência do STJ se manifestou pela impossibilidade de punição a título de culpa, no sentido de que esta punição levaria a Administração Pública a punir com a mesma sanção os atos culposos simplesmente ilegais e os atos induvidosamente dolosos caracterizados como de improbidade (conforme REsp 1230352-SP Disponível em: <http://www.stj.jus.br> dez. 2013).

Também vai ao encontro desta corrente o entendimento de que o ato imoral decorre de convicção de foro íntimo do sujeito, portanto, não pode ser concebido a título de culpa, pois ou o sujeito está convencido de um agir ímprobo ou incorre em negligência, imprudência ou imperícia.

Por outro lado, corrente contrária entende possível a punição dos atos culposos, tendo em vista a previsão legal e a necessidade de se punir todos os atos que gerem prejuízo ao erário, inclusive quando praticados com descaso com o bem público, corrente esta que vai ao encontro do princípio da reparação integral. Para esta corrente, além da previsão no art. 10 da LIA de punição por ato culposo, a Constituição Federal prevê que os agentes públicos respondem perante a Administração de forma subjetiva, por atos causados por dolo ou culpa em sentido estrito (art. 37, § 6º).

 Com relação às sanções aplicáveis aos agentes públicos por atos de improbidade administrativa, considerando-se que a LIA possui natureza peculiar, pois não é norma específica de direito civil, penal ou administrativo, mas norma voltada à proteção de valores fundamentais, o legislador previu de forma específica, com fundamento no art. 37 § 4º da Constituição Federal, punições também peculiares, com reflexos na esfera patrimonial, pessoal e política dos sujeitos envolvidos no ato irregular, atingindo inclusive o vínculo existente entre o agente público e a Administração Pública, no caso de perda da função pública.

A pena aplicada deve ser individualizada (art. 5º, XLVI da CF), considerando-se a contribuição de cada um dos sujeitos envolvidos no ato de improbidade e a gravidade da culpa latu sensu. Devem ser observados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na aplicação das penas previstas no art. 12 da LIA, aplicando-as de forma cumulativa ou não e observando a finalidade punitiva e de ressarcimento dos prejuízos causados.

Ressalta-se que a aplicação das penas previstas na LIA, conforme previsão expressa no art. 17, não impede a punição do agente em outras esferas jurídicas. Assim, considerando-se também que a reparação civil é autônoma, prevista nos artigos 186 e 927 do Código Civil, existindo prejuízo ao erário que não foi punido no processo de improbidade administrativa, por exemplo, na hipótese da ação ter sido indeferida liminarmente por ausência de prova do dolo do agente na tipificação dos artigos 9º e 11, tal fato não impede a propositura de ação de regresso em face do agente público, nos temos do § 6º do art. 37 da Constituição Federal e em atendimento, novamente, ao princípio da reparação integral.

Da mesma forma ocorre quando houver tipificação de conduta penal, além de configuração de ato de improbidade, pois o § 4º do art. 37 da Constituição é claro ao prever a aplicação das penas por atos de improbidade “sem prejuízo da ação penal cabível”, observando-se, contudo, que pode haver comunicabilidade de instâncias quando a questão se encontrar decidida em ação penal com trânsito em julgado, entendendo pela inexistência do fato ou ausência de autoria.

Além das esferas civil e penal, a esfera administrativa também é autônoma, de modo que não há impedimento legal para que o agente público sofra aplicação das penalidades previstas, por exemplo, na Lei 8.112/90, que vão da advertência até a demissão a bem do serviço público.

Tratando-se de agente político, cumpre ressaltar que embora seus atos estejam sujeitos à incidência de regras específicas, como a Lei 1.079/50, que trata da responsabilidade do Presidente da República e dos Ministros de Estado, a Lei 7.106/83, relativa à responsabilidade dos Governadores e Secretários de Estado e o Decreto 201/67, aplicável aos Prefeitos e Vereadores, o STJ já se manifestou pela compatibilidade entre estas regras e a LIA, podendo ser aplicadas cumulativamente, explicando a então Relatora Eliana Calmon que: “Não há qualquer antinomia entre o Decreto-Lei 201/1967 e a Lei 8.429/1992, pois a primeira impõe ao prefeito e vereadores um julgamento político, enquanto a segunda submete-os ao julgamento pela via judicial, pela prática do mesmo fato.” (In AgRg no AREsp 79268/MS. Disponível em: <http://www.stj.jus.br> Acesso em: 14 dez. 2013).

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 Entende-se, contudo, que por um mesmo fato, não pode haver dupla punição em uma mesma esfera, portanto, estando a conduta irregular praticada pelo agente político prevista expressamente em Lei específica aplicável ao cargo, a aplicação desta lei pode afastar a aplicação da LIA com relação às punições que forem idênticas mas, na hipótese de inexistir previsão em Lei especial voltada à categoria do agente político, se aplica a LIA, evitando-se que o ato de improbidade fique impune.

A ação de improbidade deverá observar o procedimento previsto na Lei 8.429/92, com amplo contraditório, uma vez que pode iniciar com base em apenas “indícios suficientes” da prática do ato ímprobo, conforme artigos 16 e 17, § 6º e em atendimento ao princípio do devido processo legal, desdobrado nos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV da Constituição Federal).

O art. 17 dispõe que será observado o procedimento ordinário na apuração dos atos de improbidade administrativa, mas entende a doutrina que se trata, na verdade, de procedimento especial em razão da existência de regras específicas existentes na LIA. A citação prevista no artigo 213 do CPC é o ato que chama a juízo o réu ou interessado para que possa se defender e, neste sentido, o § 7º do artigo 17 da LIA prevê que estando em devida forma a inicial, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido para manifestar-se por escrito no prazo de 15 dias.

 Tratando-se de ato inicial, entende a doutrina que a notificação prevista no § 7º possui natureza da citação. Nesta “notificação prévia” o requerido não é citado para apresentar defesa, mas para manifestação preliminar, contudo, trata-se de ato obrigatório e a resposta preliminar do réu afasta a revelia, enquanto a ausência possibilita a aplicação do disposto no art. 320 do CPC com relação aos efeitos da revelia, assim, possui natureza de ato inicial, que instaura o contraditório.

Ademais, entende a jurisprudência que o comparecimento espontâneo do réu supre a ausência de notificação prévia, da mesma forma como ocorre quando há ausência de citação (art. 24, § 1º do CPC) e, caso não ocorra a notificação prévia, a ausência de manifestação torna nulos apenas os atos subsequentes se demonstrada a existência de prejuízo, conforme o brocado pas de nullité sans grief.

Por fim, a citação prevista no § 9º do art. 17 é, para a doutrina, intimação, ato que chama a parte para a prática de determinado ato processual, o que ocorre no § 9º, prevendo que recebida a inicial, o réu será “citado” para apresentar contestação, demonstrando, a norma, o atendimento ao devido processo legal.  


III – CONCLUSÃO

Podemos concluir, diante do exposto, que a LIA é lei especial, com procedimentos e regras próprias, compatíveis com o Estado Democrático de Direito, que possuem autonomia em relação às demais esferas de atuação jurídica, mas que com elas se compatibilizam para possibilitar a aplicação sistemática do ordenamento jurídico, evitando contradições e o bis in idem.

É amplo o sistema principiológico que embasa a Lei de Improbidade Administrativa, mas se encontra em sintonia com os mandamentos basilares da Constituição Federal, pois, enquanto o particular pode fazer tudo, exceto o que for vedado por lei e não se vincula aos princípios administrativos, o agente público possui um dever de confiança especial decorrente do vínculo que possui com o ente público, possui dever de observância estrita à lei e aos princípios da Administração Pública e, se sua retidão não decorrer das razões de foro íntimo, que seja consequência da tipificação valorativa de condutas pela Lei de Improbidade Administrativa.

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Sobre a autora
Lais Vieira Cardoso

Analista judiciária do TRT da 15ª Região, professora universitária do Centro Universitário Moura Lacerda, Mestre em Direito das Obrigações Público e Privado pela UNESP de Franca e especialista em Direito Tributário pela PUC Campinas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Lais Vieira. Aplicação da Lei de Improbidade Administrativa: uma decorrência de seu enfoque principiológico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26326. Acesso em: 25 abr. 2024.

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