O Estado é uma racionalidade política (em extinção)
Um julgamento racional (decorrente de muitas razões ou hipóteses sociais e políticas) levou o homem a construir o Estado, exatamente, como fez com suas ferramentas, tecnologias e a produção artística (como expressão de si mesmo e dos vários significados de seu mundo)[18]. Muitas são as interpretações acerca do surgimento do Estado, contudo, algumas hipóteses são mais difundidas:
1.Exploração econômica entre classes sociais divergentes (principal corrente derivada do pensamento marxista).
2.Associação voluntária (associações de Estados menores formam uma estrutura política destacada).
3.Dominação de uma potência superior (um Estado que existia até ontem e passou a ser dominado por uma potência e se criou outro Estado).
4.Com conquista rápida ou insidiosa - Estado de Conquista (nesta modalidade de conquista, exclui-se toda capacidade de resistência).
5.Quando há diferenciação não-igualitária entre os indivíduos (o Estado deveria garantir privilégios e não direitos, como no feudalismo).
6.Quando há uma tendência natural para a organização dos Estados (a complexidade social – em determinada fase de sua evolução – levaria os povos à institucionalização).
7.Valorização de associações militares anteriores (o Estado teria sido reformado a partir de tribos guerreiras).
8.Há predominância de hierarquias sociais (o Estado teria sido criado apenas e unicamente a fim de manter a estrutura social e cultural de acordo com as tradições de determinadas castas).
9.Pode haver desenvolvimento interno ou regional (um povo constrói uma razoável estrutura política à sombra do Estado).
10.Quando há secessão ou desmembramento (violento ou pacifico).
11.Por submissão voluntária surge outro Estado (um povo abre mão de sua soberania para fazer parte de outro Estado, teoricamente, mais forte ou desenvolvido).
12.Quando há heterogeneidade étnica ou culturas diferentes (as regiões estão ligadas ao Estado central, mas mantém autonomia ao planejarem e executarem ações específicas).
13.Um dos grupos é mais organizado e se opõe aos demais (podemos tomar o exemplo do Estado no Império Romano, tendo por base e origem as famílias patriarcais).
14.Um dos grupos tem líderes carismáticos e servem como modelo (no exemplo de Israel e o papel desempenhado por Davi)[19].
O que nos leva à conclusão de que o Estado é um tipo de permanência política é a história da forma-Estado. Ou seja, o Estado reescreve as mais antigas escrituras políticas, a partir de culturas longínquas, quase à época do Neolítico (10 mil anos). É uma espécie de pensamento primordial, desde a civilização Suméria, no Vale do Ür. Aliás, é extremamente curioso que, na língua alemã, o Estado Primordial tenha o mesmo radical: urstaat. É a mesma raiz porque está presente a mesma necessidade de organização política. Portanto, o Estado surge como artefato da razão, como fabricação epistemológica que se ajusta historicamente (ontologia).
O que ainda permite que se pense que o Poder Político é uma forma coletiva de organização do poder, como mecanismo de administração político-institucional e de controle social. O Estado é uma forma especial de organização social e uma maneira especializada de organização/expressão das relações políticas.
O Estado é uma escritura política porque, apesar de ser uma forma-política específica (pactuada, deliberada – uma escolha racional, intencional), é providencial à organização dos meios políticos destinados ao controle social e à fruição da condição humana.
O Poder Político, portanto, é uma associação soberana com vistas ao poder, mas é o resultado de condições inerentes à política em determinados momentos. Na forma-Estado muitos movimentos são diagnosticados, mas alguns se destacaram ao longo do tempo e ainda mais claramente a partir do Estado Moderno, como a organização jurídica da política[20]. Além de observar outros aspectos, como por exemplo, o(a):
- Desdobramento político de alto nível alcançado pela densidade cultural;
- Soberania que se mantém apenas em virtude da independência (externa) e autonomia (interna);
- O direito – como representação das organizações sociais – atua como precursor do Estado[21].
O que se conclui, até este ponto, é que o Estado é uma escritura política, reescrita inúmeras vezes, porque se trata de um projeto constante. Isto quer dizer que esta mesma escrita política foi repetida várias vezes, ocasionando mudanças, mas mantendo-se o liame de origem. E isto nós também vemos nas interpretações mais ou menos liberais, à direita e à esquerda do pensamento político, em que as formas básicas do Estado seriam: comunitária primitiva, escravagista, feudal, capitalista e socialista[22].
As mudanças ocasionadas em suas bases e fundações, no entanto, conheceram uma definição mais estável com o Estado Moderno. O peso da racionalidade política depositada no Poder Político é tão gigantesca que até mesmo as utopias políticas em torno do Estado Moderno eram racionalistas, pressupondo-se um Estado organizado pelos melhores cientistas e pensadores[23]. É como se fosse um Estado Cientificista[24] antes do seu tempo.
Tradições do Estado Moderno
O Estado Moderno foi edificado a partir da inter-relação entre povo, território e soberania (nesta ordem precisa[25]). Desde então, o Estado passou a exigir reconhecimento, viabilidade político-administrativa, independência, ordem jurídica eficaz, legitimidade, política exterior atuante. Nem o Poder Constituinte seria capaz de prever outra forma de organização do Poder Político que não fosse por meio da “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” (Art. 1º da CF/88).
Juridicamente, a reserva moral do poder e a garantia de que os governantes não irão usar/abusivamente dos recursos de coerção e de violência são asseguradas pela famosa tripartição ou interdependência dos poderes (mesmo sabendo-se que se trata de um único poder soberano).
Esta separação dos poderes é a instituição mais anciã do direito público moderno; encontra suas bases na primeira Constituição Inglesa (ao prever o princípio da anuidade na cobrança de impostos). Para o Estado Moderno, apenas a soberania não era suficiente, pois as garantias institucionais e de direito deveriam ser bem firmadas: com o tempo, elaborou-se a Lei de Habeas Corpus. A primeira geração de direitos asseguraria a cidadania.
Os direitos civis – além de premiar o direito capitalista de contratar – ainda fortaleceriam o direito de liberdade política. Como liberdade negativa, o Estado estava juridicamente proibido de negar, por exemplo, o direito de oposição (seguindo-se ao direito de indignação com o poder). Com isto, na base de todo direito político, está o princípio de que o adversário público não será convertido em inimigo de Estado. Na ausência da identidade político-jurídica entre a realidade social e o poder de coerção, o direito de resistência se transforma em revolução. No mundo moderno e pós-moderno da globalização, as relações políticas não têm o mesmo desempenho das forças moventes da realidade econômica cultural e social. O fenômeno da globalização, por exemplo, reforçou sobremaneira a xenofobia e a insurgência das populações pobres em busca da legitimidade de novos espaços sociais[26].
Direito de sedição
A Razão de Estado vai se ajustando continuamente às mudanças geopolíticas, especialmente as impostas pelos blocos e estruturas transnacionais ou globalizadas. Todavia, essa onda de xenofobia assegura-nos que a Razão de Estado é o equivalente político-institucional do nacionalismo ou da “identidade nacional”. Diante desse choque entre o global (multinacional) e o local (a “identidade cultural”), os grupos que reivindicam legitimidade aos governos, a liberdade de escolha propiciada pelo direito de sedição, acabaram por se multiplicar.
Alguns autores preferem tratar das características mais precisamente jurídicas e por isso usam a expressão mais convencional do “direito à revolução”, denotando seu estatuto jurídico[27]. Pode-se dizer que há casos em que o Estado desafia a sociedade, expondo indiscriminadamente sua ilegitimidade e iniquidade, e aí se instaura o direito de sedição.
Diante desse choque entre o global (multinacional) e o local (a “identidade cultural”), os grupos que reivindicam legitimidade aos governos, a liberdade de escolha propiciada pelo direito de sedição, acabaram por se multiplicar.
Aliás, confirma-se que “desordem e desonra moral”, além da violência, têm servido cada vez mais de moeda de troca política, seja para a oposição que usa da violência desordenada (em muitos casos, não fazendo jus ao direito de sedição), seja com a situação que arrola o mesmo argumento da corrupção e fraude como promotores da insegurança institucional e assim utilizam do artifício para decretar o Estado de Exceção. De todo modo, a corrupção política tem sido a marca deste jovem século XXI.
Estado: um poder desafiado
No caso do direito de sedição, pensando-se politicamente, ou “direito à revolução”, sob a ótica jurídica, ainda é curioso notar que o poder político desafiado, o Estado, sucumbe ante sua total incapacidade, inação ou desinteresse de prover-se de um poder social (este que, como vimos, leva à aceitação e à adesão, e não à sedição).
Além desta evidente responsabilidade política, de alto custo para a manutenção do poder, o Estado ainda é responsável moralmente e juridicamente por suas ações; pois, na aplicação de suas políticas públicas obedece à lei, e ainda que esta mesma lei não o isente da responsabilidade moral, da prevenção, da precaução dos graves equívocos político-administrativos (o Estado é responsável pela precaução em virtude dos altos custos coletivos).
Tomemos o exemplo da Constituição Mexicana (e que não é tão diverso da CF/88), no verbete Estado: (arts. 330 e 331) É responsável civilmente pelos fatos e omissões de seus funcionários públicos contratados e dependentes, executados no serviço ou função a que estão destinados; porém sua obrigação é subsidiária[28]. Trata-se da responsabilidade objetiva e que nosso direito também incumbe ao Estado nacional[29].
Não está em questão a descentralização administrativa, mas sim a total desconcentração do poder de Estado. Hoje em dia, as fundações da modernidade presentes no Poder Político, sofrem fortes abalos diante da assim chamada pós-modernidade. Recondicionando-se o próprio significado de ser ou não primordial, inclusive, na gestão dos atributos que sempre foram essenciais ao Estado.
O Estado Pós-Moderno
Se o Estado Moderno foi pautado pela estabilidade e segurança de suas instituições (desde a Paz de Westfália, em 1648), o chamado Estado Pós-Moderno[30] enfrenta a falibilidade e a incerteza de que suas amarrações e institutos são aplicáveis e efetivos. Se observarmos mais atentamente, veremos que a crise de legitimidade do Poder Político centralizado decorre, no mínimo, da década de 1970[31].
As sociedades complexas procuram por autonomia fora do controle estatal; para o Estado Moderno, autonomia sem soberania é sedição, ou seja, o mais grave dos crimes políticos. A própria dinâmica do capital financeiro, fugaz, insólito, movediço, não pode esperar pela solução dos entraves burocráticos.
A notável lentidão, sedimentação dos assuntos de Estado foram desafiadas por uma inigualável velocidade política[32]. O Estado não fora inventado para agir com celeridade – haja vista a profundeza das raízes de suas tradições. Esta é uma das contradições já vistas, mas há outras entre o discurso racional do Estado de Direito e a ação pragmática e instrumental do mundo pós-moderno. Resta-nos saber como sociedades orientadas pela instabilidade (como a nossa) serão administradas pelas rotinas políticas da incerteza.
O Estado habituado a ordenar as relações sociais por meio de pactos federativos, bastante estáveis e em que as competências são definidas anteriormente e com clareza, a partir de então, passou a enfrentar o desafio da inconstância. A modernidade cultivou a esperança do amanhã, inclusive transportando os repertórios do presente. A crise retirou, sobretudo, esta capacidade teleológica da inventividade social humana.
Antecedentes midiáticos pós-modernos
O mundo midiático já se pronunciava profundamente modificado na década de 1950, pois se supunha uma relação diferenciada para o Poder Político, com a chegada da TV[33]. O mesmo teria ocorrido com a invenção da prensa (e da imprensa), por Gutemberg no Renascimento, e cinco séculos depois, com as redes da telemática, da Internet e dos celulares (já no século XXI).
Porém, no século XX, antecipada pela indústria da propaganda nazista, a política se revelaria definitivamente como palco do marketing e da produção da imagem, como reflexo da opinião pública fabricada e não como conteúdo. Sem conteúdo ou com conteúdo corrigido pelo departamento financeiro (dos anunciantes), a relação com o poder viria com a imagem e depois com a fractalidade[34].
Por este fenômeno, não haveria mais unidade de referência do poder: os segredos de Estado seriam devassados continuamente; especialmente com a era da Internet e das tecnologias em rede. O escândalo de espionagem das comunicações institucionais do Brasil, pelas agências de segurança dos EUA nos últimos anos, é apenas um indício da vulnerabilidade digital que se apresenta. A Organização das Nações Unidas (ONU) recepcionou indicação do Brasil e da Alemanha para a expedição de resolução reprovando as condutas governamentais invasivas do espaço virtual e das comunicações em geral.
Por seu turno, o Estado Sedutor (seduzindo) anteciparia a relação pós-moderna com a política[35], com o discurso programado do teleprompter, da imagem pública enfeixada em megapixels, com a razão imagética[36] conduzindo as consciências. A verdade republicana, primeiro, seria colonizada pelo tubo catódico do maniqueísmo preto e branco; até que dialética fosse substituída pela ditadura das imagens e das cores que viriam nos anos seguintes.
A partir da década de 1970, com os experimentos econômicos do neoliberalismo e da globalização, O Estado enfrentaria outros desafios às tradicionais estruturas políticas, especialmente na soberania. Além da rivalidade do Poder Econômico policêntrico, em que os recursos do capital volátil tendem à concentração nas áreas de maior segurança e rentabilidade, o Estado nacional ainda enfrentaria a necessidade (imposta constitucionalmente) da distribuição das compensações sociais, revelando-se uma pulverização das políticas públicas; bem como precisaria “administrar as situações coletivamente perigosas”. O Estado seria responsabilizado por suas ações, mas, via de regra, quem pagaria seria o povo, quando em seu nome ouviria que sua liberdade fora retirada para se pacientar sua segurança (nacional).
Ante a proposição absolutista de se centralizar as decisões no poder central, como diz Canotilho, a autonomia seria cada vez mais requerida, como reserva normativa da sociedade civil[37]: outro ponto de fuga, certamente, para a centralização da soberania do Estado Moderno clássico. Todavia, outras mutilações constitucionais iriam convergir com a mondialisation fractale[38], mitigando-se o monopólio estatal da atividade legislativa e do controle do uso da coerção. Fora isso, a fragilidade institucional recebeu acréscimos da “fragmentação da ação política estatal (politics) em múltiplas políticas públicas (policies)”[39].
De forma geral, esses e os demais dados colecionados – em conjunto – expressariam reflexos tardios da modernidade (ao invés de sua pós-modernidade). Mesmo a telemática seria um desdobramento instrumental, um recorte, um novo aporte ou suporte da tecnologia aplicada à comunicação. Este fluxo que se iniciara precisamente com Gutemberg[40].