3. O IPVA Sobre Embarcações
Ante a pacificação do entendimento de que os Estados-Membros em hipótese alguma estariam autorizados a tributar a propriedade de embarcações e aeronaves não restaram alternativas aos Estados senão a de insistir na formação de um lobby audacioso - buscar a aprovação de uma Proposta de Emenda a Constituição - PEC. O inimigo agora é outro: não são mais decretos e leis estaduais e sim uma Proposta de Emenda a Constituição.
De fato, não nos limitando ao presente caso, como já afirmado, torna-se evidente que a sede arrecadatória não encontra limites. Décadas a fio determinados Estados-membros insistiram em realizar exações evidentemente eivadas de inconstitucionalidade, mesmo vencidos nos Tribunais Superiores, inconformados com a derrota, os Estados mudaram de estratégia e partiram para o audacioso projeto de alterar a Constituição Federal sob o arrepio do sistema tributário nacional e dos princípios mais caros a federação, tentando incluir no pacto federativo algo impensável aos arquétipos constitucionais. Se não podemos aplicar a Constituição, vamos alterá-la, este é o pensamento que sobressalta a referida proposta.
No dia 06 de março de 2012 o Deputado Assis Carvalho do Partido dos Trabalhadores do Piauí, encaminhou, com fulcro no art. 3º, do art. 60, da Constituição Federal, a Proposta de Emenda a Constituição nº. 140/2012, visando adicionar mais um inciso ao art. 155 da Constituição, ampliando, desta forma, o campo de incidência do IPVA também para veículos aéreos e aquáticos.
Art. 1º O inciso III do Art. 155 da Constituição Federal, passa a vigorar com a seguinte redação:
III – Propriedade de veículos automotores terrestres, aéreos e aquáticos.
O aumento da frota de aviões executivos e de embarcações de esporte e recreio chamaram a atenção dos Estados e Municípios (já altamente beneficiados pela reforma tributária de 1988), como fez constar na justificativa apresentada pelo Deputado:
“Com o consequente aumento da arrecadação do IPVA, quando da cobrança deste tributo sobre a propriedade de veículos automotores aéreos e aquáticos - Considerando o Brasil possuir a maior frota de aviões executivos do hemisfério sul, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil que aponta para uma média de 12 mil aeronaves registradas e uma frota náutica esportiva em torno de 168 mil unidades segundo dados do Departamento de Portos e Costa da Marinha do Brasil – seria possível reduzir sensivelmente as alíquotas hoje aplicadas em carros e motos de todo o Brasil e com isso garantir uma maior justiça fiscal”.
Os Estados repassam cinquenta por cento da sua arrecadação para os Municípios, fruto da arrecadação do licenciamento dos veículos licenciados em seu território, como define a Constituição Federal:
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
III – cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios;
Nesta hipótese, os Estados deverão repassar 50% do produto da arrecadação do IPVA para os Municípios onde estiverem matriculados os veículos. Como por nós afirmado no artigo “Não Incidência do ISS Sobre a Atividade de Produtoras e Distribuidoras de Conteúdo Audiovisual” (2013, pág. 5):
“A reforma tributária de 1988 acarretou de forma surpreendente o aumento da arrecadação dos Municípios, que incorporam o movimento de descentralização de recursos tributários, nunca os municípios tiveram uma importância relativa tão elevada na administração pública nacional.”
Corroborando com os indícios de aumento vertiginoso da arrecadação municipal, José Roberto Rodrigues Afonso e Erika Amorim Araújo em A Capacidade de Gasto dos Municípios Brasileiros: Arrecadação Própria e Receita Disponível (2000; pág. 35):
“A receita própria municipal (não computadas as transferências recebidas) vem apresentando excelente desempenho nos últimos anos. Desde a promulgação da Constituição de 1988 até 2000, o volume de recursos próprios dos municípios elevou-se em cerca de R$ 12,2 bilhões, um acréscimo de aproximadamente 196%. Seu crescimento médio anual foi duas vezes mais rápido que o dos tributos estaduais e que o dos federais (ver Tabela 1). Em 2000, a receita tributária municipal atingiu um dos maiores níveis históricos: cerca de 1,7% do PIB, mais de R$ 18 bilhões anuais, montante que supera a principal transferência federal líquida, o Fundo de Participação Municipal (FPM), da ordem de R$ 13 bilhões”.
Portanto, justificar a PEC 140/12 com base na necessidade de se aumentar a arrecadação dos Estados-membros é uma falácia e se contradiz logo nos parágrafos seguintes da proposta, ao afirmar que em contraposição a exação do IPVA sobre aeronaves e embarcações, haveria a diminuição das alíquotas do mesmo imposto sobre veículos automotores - algo impensável justamente ante a necessidade de se diminuir a frota de carros.
Em conjunto com a PEC 140/12 tramita também a PEC 283/13 proposta pelo Deputado Vicente Candido da Silva, que visa amenizar os efeitos da PEC 140/12, excluindo do campo de incidência as embarcações destinadas à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas:
“155. (...)
III – não incidirá sobre veículos aquáticos e aéreos de uso comercial, destinados à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas.”
Consta como justificativa da PEC 283/13 que as alterações sugeridas, em relação a PEC 140/12, beneficiariam as transportadoras com uma regra imunizante, considerando que os mercados de transporte de passageiros são oligopolistas e facilmente repassariam o aumento dos custos para o cliente final:
“A exclusão das aeronaves de uso comercial justifica-se pelo fato de que tais veículos sejam utilizados na prestação de um serviço de grande abrangência e utilidade nacional: o transporte de passageiros ou de cargas, mercados oligopolistas, que têm muita facilidade em transferir para os seus preços quaisquer incrementos nos seus custos, o que poderia resultar num efeito macroeconômico indesejado: maiores índices de inflação”.
Em linhas gerais a própria existência da PEC 283/13 já é uma demonstração do reconhecimento de apenas um dos diversos efeitos negativos da instituição do IPVA sobre embarcações e aeronaves. Ou seja, apenas um entre os diversos efeitos ocasionados por este absurdo tributário é combatido.
Além da imposição do IPVA por si só ser um abuso que provavelmente aniquilará mais uma vez qualquer chance de termos um país também voltado para uma das nossas maiores riquezas, o mar, a ânsia arrecadatória não encontra limites nem em termos de isonomia da exação, como foi o caso do Rio de Janeiro que revogou a única isenção, antecipando-se a pretensa instituição do IPVA, para embarcações com mais de 30 anos de fabricação:
Dispositivo da 2.877/97 revogado pela Lei 5.430/09:
Art. 5º - Estão isentos do pagamento do imposto:
VIII - embarcações e aeronaves com mais de 30 (trinta) anos de fabricação;
Em termos comparativos o mercado automobilístico é um dos setores da indústria mais incentivados, sem falar no custeio da malha rodoviária que é altíssimo e da poluição causada por este meio de transporte. Estamos na contramão da atual lógica desenvolvimentista.
3.1. O Conflito de Competência
Outro ponto a ser ressaltando, como bem asseverou o Min. Francisco Rezek, citando a obra de Rubens Gomes de Souza (2011; pág 72) é que a competência para legislar sobre direito marítimo ou aeronáutico é exclusiva da União:
“Os Estados-membros têm competência para legislar supletivamente sobre tráfego e trânsito nas vias terrestres, sendo natural, assim, a atribuição constitucional de competência impositiva sobre a propriedade de veículos automotores. Mas, em nenhum ponto, a autonomia estadual se estende ao campo da navegação marítima ou aérea. A competência para legislar sobre direito aeronáutico e marítimo é exclusiva da União. Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União. Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União.
Portanto, aduz-se que a competência para instituir, inclusive, tributos sobre embarcações e aeronaves é exclusiva da União. Por aplicação da lógica quem suporta a repercussão da atividade sobre seu território tem o direito de realizar exações sobre os bens que nele circula, assim como o encargo de fiscalizá-la.
O Ministro Sepúlveda Pertence, relator do RE 134.509/AM, destacou o eminente conflito de competência que se daria caso os Estados-membros passassem a ter legitimidade ativa para a cobrança do IPVA sobre embarcações e aeronaves:
“Já as aeronaves e embarcações devem ser registradas no Registro Aeronáutico Brasileiro e no Tribunal Marítimo, respectivamente, nos termos da legislação relativa. No tocante às aeronaves nacionais, dispõe o Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei nº 32, de 18/11/66) que são bens registráveis para efeito de sua condição jurídica, só podendo constituir objeto de direito através de assentamentos no Registro Aeronáutico Brasileiro do Ministério da Aeronáutica, órgão encarregado de emitir os certificados de matrícula que é condição para utilização (arts. 10 e 12). Quanto às embarcações, a Lei nº 2.180, de 5/2/54, exige o registro de sua propriedade no Tribunal Marítimo, registro este que tem o efeito de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade, sendo que, para as de menos de vinte toneladas, vale como registro a inscrição na Capitania dos Portos, que dela fornecerá cópia ao Tribunal Marítimo (arts. 75, 76 e 80).”
Aliomar Baleeiro em Direito Tributário Brasileiro (1973; pág. 251) traça interessante análise sobre o panorama das constituições pretéritas em relação a competência para a instituição de tributos sobre embarcações e aeronaves:
“O Ato Adicional de 1834 (Lei 16/34) incluía na receita geral as taxas sobre a navegação em águas territoriais e nos grandes Rios, e a Lei 108/40 inseria na competência do Governo Central direitos sobre embarcações estrangeiras que passavam por território nacional, o imposto sobre barcos do interior e o imposto sobre a venda de embarcações nacionais, enquanto que às províncias eram atribuídas a taxa sobre a viação nas estradas provinciais. As Constituições de 1891 (art. 7º, 2º), de 1934 (art. 62, II) e de 1937 (art. 20, II) incluíram entre os tributos da União os direitos de entrada, saída e estadia de navios, tornando livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já houvessem pago imposto de importação. No regime constitucional vigente, compete à União instituir imposto sobre transportes, terrestres, aquáticos ou aéreos, exceto os intramunicipais (Constituição, art. 21, VIII). Já as aeronaves e embarcações devem ser registradas no Registro Aeronáutico Brasileiro e no Tribunal Marítimo, respectivamente, nos termos da legislação relativa. No tocante às aeronaves nacionais, dispõe o Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei nº 32, de 18/11/66) que são bens registráveis para efeito de sua condição jurídica, só podendo constituir objeto de direito através de assentamentos no Registro Aeronáutico Brasileiro do Ministério da Aeronáutica, órgão encarregado de emitir os certificados de matrícula que é condição para utilização (arts. 10 e 12). Quanto às embarcações, a Lei nº 2.180, de 5/2/54, exige o registro de sua propriedade no Tribunal Marítimo, registro este que tem o efeito de conferir validade, segurança e publicidade de sua propriedade, sendo que, para as de menos de vinte toneladas, vale como registro a inscrição na Capitania dos Portos, que dela fornecerá cópia ao Tribunal Marítimo (arts. 75, 76 e 80).”
Quanto às repercussões econômicas da instituição de tributos estaduais ou municipais sobre aeronaves e embarcações a qual recai a competência da União (SOUZA; 2011; pág 11):
“Embarcações e aeronaves constituem meios de transporte de pessoas ou coisas cujos efeitos econômicos difundem-se e interpenetram toda a economia nacional, razão por que, se fosse caso de tributar-se as atividades correspondentes, a competência deveria ser naturalmente afeta à União”.
Como observou o Min. Francisco Rezek, em seu voto vista, nos autos do RE 134.509/AM aeronaves e embarcações não se vinculam aos Estados e Municípios por qualquer célula registral, sendo toda repercussão gerada pelo exercício do poder de polícia do espaço aéreo e marítimo suportada única e exclusivamente pela União:
"navios e aeronaves não se vinculam, por nenhum ato registral, à célula que é o município. Sequer aos Estados, visto que existem capitanias de portos que abrangem mais de uma unidade federada. E o registro aeronáutico é único - aí não se trata apenas de escapar às municipalidades, mas também a qualquer vínculo estadual.
Permitir a instituição de um tributo estadual ao invés de um federal, sobre a propriedade de embarcações e aeronaves seria subverter a ordem imposta pelo poder constituinte originário. Tal medida desvirtua o propósito para o qual o IPVA foi criado e desafia os limites de abstração da norma, apoiando-se apenas no caráter meramente fiscal ou patrimonial do tributo, se descuidando da justiça fiscal nele empregada. Em termos de Direito Comparado, a prática consgrada internacionalmente é a tributação apenas da circulação da riqueza, ou seja, tributa-se apenas a transferência da propriedade de embarcações e aeronaves.
A justificativa apresentada pelo Deputado Assis Carvalho para a aprovação da PEC 140/12 se baseia na necessidade do aumento da arrecadação dos Estados-membros e na necessidade de tributar o patrimônio de acordo com a capacidade contributiva:
“Com o consequente aumento da arrecadação do IPVA, quando da cobrança deste tributo sobre a propriedade de veículos automotores aéreos e aquáticos - Considerando o Brasil possuir a maior frota de aviões executivos do hemisfério sul, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil que aponta para uma média de 12 mil aeronaves registradas e uma frota náutica esportiva em torno de 168 mil unidades segundo dados do Departamento de Portos e Costa da Marinha do Brasil – seria possível reduzir sensivelmente as alíquotas hoje aplicadas em carros e motos de todo o Brasil e com isso garantir uma maior justiça fiscal”.
Como visto anteriormente, jamais os Estados tiveram tamanha arrecadação, sendo assim, a expansão da hipótese de incidência do referido tributo não se justifica. A outra justificativa de que seria possível, por via reflexa, a diminuição das alíquotas referentes aos veículos automotores, não convence. Se é necessário realmente o aumento da arrecadação por qual motivo se diminuiria as alíquotas de outros segmento de bens?
A frota de veículos automotores atinge ano após ano recordes, o Brasil a partir da década de setenta investiu pesado na malha rodoviária às custas do sucateamento das ferrovias e das hidrovias. O mundo caminha no sentido de diminuição do número de veículos nas grandes cidades, principais responsáveis pela emissão gás carbônico na atmosfera. Certamente a diminuição do IPVA acarretaria, da mesma forma que a criminosa diminuição do IPI causou, o aumento da frota de veículos.
Outro fator a ser considerado é o contexto atual da indústria de construção de embarcações amadoras, bem como, o impacto da aplicação generalista do conceito “embarcações” e “aeronaves” poderia causar. A década de 90 foi marcada pela “quebradeira” de boa parte dos estaleiros de construção de embarcações amadoras, devido as instabilidades econômicas vivida no Brasil. Não queremos que isso torne a acontecer.
Não restam dúvidas que o Estado depende da arrecadação de tributos para atingir seus objetivos fundamentais e que o IPVA seja um tributo eminentemente fiscal - seria uma grande ingenuidade afirmar o contrário ou negar a legitimidade do sistema tributário por seus próprios fundamentos. Contudo, tal poder-dever deve comportar certos limites, a tributação deve ser praticada de acordo com o ordenamento jurídico e com os postulados éticos e regras de mercado, guardando simetria com a lógica ínsita ao sistema tributário. Deve-se reservar especial reflexão para a análise sistemática dos efeitos produzidos, sobretudo, extrafiscais, pela criação ou expansão da hipótese de incidência de determinados tributos.
Segundo a boa técnica legislativa, o legislador deve acautelar- se do uso de conceitos vagos e indeterminados, sob pena de não produzir os efeitos desejados e produzir justamente os indesejados, tal tarefa não é das mais fáceis devido a semiótica dos signos linguísticos, mas deve ser perseguida, jamais esquecida.
3.2. A Cultura Náutica Por um Fio
Nos idos das décadas de 80/90 houve o fechamento de importantes estaleiros de construção de embarcações amadoras, desde lanchas a veleiros. A área naval propriamente dita foi massacrada pela crise econômica. Contudo, com o bom desempenho da economia brasileira em conjunto com programas de incentivo a indústria naval o mercado encontra-se atualmente em efervescência.
Contudo, o milagre econômico da indústria naval não é uma verdade absoluta e não chegou a todos os segmentos. Segmentos da indústria de construção de embarcações a vela, como exemplo, ainda lutam para quiçá se manterem no mercado. A realidade é que boa parte das embarcações no Brasil são embarcações antigas, construídas com aquilo que restou dos tempos áureos da década de 80 e 90.
Segundo a pesquisa de mercado realizado pela Associação Brasileira de Construtores de Barcos e Seus Implementos (ACOBAR) apenas 16% das embarcações nacionais são veleiros ou possuem capacidade de se locomover pelo vento, mais de 50% dos veleiros brasileiros têm tamanho igual ou menor a 26' (8 metros de comprimento), sendo que 35,6 % desses veleiros medem de 16 a 19' (equivalente a 5 metros). Ou seja, uma embarcação de 16’ pés usada custa em média R$ 10.000,00, valor este inferior a qualquer carro usado ou a carros populares. Certamente seus proprietários não se enquadram no conceito de alguém que detém alto poder aquisitivo como pretendem nos fazer acreditar. A PEC dos Jatinhos como ficou conhecida a PEC 140/12 tributa sim determinados segmentos com alto poder aquisitivo, mas tributa de forma injusta embarcações que em nada tem haver com isso - estabelecendo o mesmo peso para medidas diferentes.
A atividade náutica tem um potencial imenso para a geração de empregos diretos e indiretos, conforme se verifica do estudo realizado pela ACOBAR (2012), a principal associação voltada para o mercado de construção amadora no Brasil:
“As estruturas de apoio náutico no Brasil empregam aproximadamente 7.000 trabalhadores diretos e cerca de 5.000 trabalhadores temporários que são contratados durante os período de maior movimento. As marinas são, ainda, base de trabalho de cerca de 9.000 marinheiros particulares e seus auxiliares: funcionários contratados e pagos pelos proprietários e embarcações de médio e grande porte."
Dentro do mesmo setor de construção de embarcações de esporte e recreio há uma interessante e histórica linha de estaleiros que desenvolvem técnicas artesanais, como é o caso das embarcações construídas no Maranhão e em galpões (ACOBAR; 2012):
“É importante destacar que as características semiartesanais e altamente especializadas do processo de fabricação de uma embarcação de esporte e recreio viabilizam a coexistência de estruturas produtivas de diferentes tamanhos dentro do mercado sem prejuízo para a qualidade e competividade do produto final. Isso significa que pequenos estaleiros, que operam com padrões de qualidade de processo e produto mantêm-se ativos no mercado e disputam com produtos semelhantes fabricados por empresas de maior porte (...)”.
Em 2012 a comunidade náutica se reuniu para um abaixo assinado viabilizado pela Avaaz a ser direcionado à Câmara dos Deputados a fim de se manifestar contrária à PEC 140/12, reunindo a Associação Brasileira de Velejadores de Cruzeiro (ABVC), Associação Brasileira de Velejadores de Oceano (ABVO) e a ACOBAR:
“A matéria já foi objeto de discussão no STF em maio de 2002. Na época, a tentativa de impor o tributo era a mesma, mas sem a alteração constitucional e o Supremo vetou porque o IPVA (imposto sobre veículos automotores) é um sucessor da antiga TRU (Taxa rodoviária Urbana) e voltada apenas para veículos automotores terrestres. Agora, entretanto, com a tentativa de mudança da Constituição a manobra política poderá tornar a cobrança viável. O tema, que vem sendo defendido por alguns como sendo de “interesse popular" na verdade revela a ignorância sobre o uso dos veleiros. Sendo o IPVA um imposto para “veículos automotores”, jamais poderia incidir, por exemplo, sobre um veleiro, movido eminentemente por vento. Num veleiro, o motor é apenas auxiliar em manobras quando da atracação/desatracação ou em emergências causadas pela falta de vento. Não é cabível mais um imposto sobre qualquer uma das embarcações produzidas no Brasil - incluindo as lanchas. Todas as categorias de barcos já tem uma carga tributária elevada, que tem acarretado prejuízos junto a estaleiros, navegadores, trabalhadores das pequenas empresas e, por consequência, beneficiando a indústria estrangeira e as importações”.
No epíteto do presente artigo citamos uma frase de Amyr Klink que afirmava o seguinte “Acho que houve um momento da nossa história que a gente esqueceu do mar”. Não nos resta dúvida, realmente o mar foi esquecido, sobretudo, por aqueles que se julgam nossos representantes. Temos um dos mais belos e extensos litorais do mundo, nossas águas são calmas, ideais para navegação costeira, nossos ventos são moderados e temos sol praticamente o ano inteiro. Países como os Estados Unidos tem em apenas um estado uma frota de mais de cinco vezes a nossa frota nacional de embarcações amadoras brasileiras.
Velejadores do passado singraram oceanos em busca de novos continentes, em função da necessidade expansionista. Tanto na Europa quanto na América do Norte a vela é um esporte fortemente marcado pela presença da classe média uma embarcação a vela de médio porte não custa praticamente a metade de um carro.
Amyr Klink em Linha D’Água (2009; 86/87) faz um paralelo entre a realidade vivida na França e no Brasil, tentando inspirar o leitor de alguma forma:
“A França virou referência no mundo náutico, criou os parâmetros e as normas que faltavam. Resgatou a cultura, a memória e história, que alguns choravam ter pedido para os saxões da ilha em frente. Transformou portos decadentes em destinos turísticos, marinas, museus, núcleos de preservação. Viu surgir um negócios bilionário que, ainda mais que o turismo, só funciona em escala mundial: o do afretamento de embarcações consignadas e o consequente ciclo virtuoso de atividades relacionadas. Escolas de vela aos milhares, compra compartilhada ou consignada de barcos novos que podem ser usados por equivalência em bases espalhadas pelo mundo, crescimento das indústrias náuticas e turística, leis ambientais mais eficazes acopladas a novas tecnologias de saneamento. (...) Esse movimento tem enorme probabilidade de acontecer no Brasil, onde, melhor do que ter feito errado, nada foi feito. Mais do que na Europa, aqui haverá ao lado do econômico, um grande benefício social.”
Atenta a necessidade de manter a chama da cultura náutica viva, a Marinha do Brasil lançou o Programa de Mentalidade Marítima, chamado de Promar (2013) que, em seu relatório inicial afirma que:
“Historicamente, o Brasil nasceu com vocação marítima, não só por ter sido descoberto e colonizado por uma nação marítima, mas também por ter sofrido suas primeiras invasões pelo mar. O desenvolvimento nacional ainda é, e continuará sendo, dependente das vias marítimas para grande parte de suas atividades”.
E em conclusão:
“Entretanto, devido a fatores conjunturais, ocorreu migração econômica para o interior, com “as costas” voltadas para o mar em diferentes aspectos entre eles os transportes e a alimentação. Dessa forma, houve, no seio da população brasileira, uma degradação de mentalidade marítima, a ponto de, nos dias atuais, os brasileiros, em sua grande maioria, pensarem no mar apenas de forma lúdica”.
Como afirmado por Fernando Previdi (2013), existe um mundo de particularidades a serem consideradas, como, por exemplo, o uso habitacional que diversos velejadores conferem as suas embarcações:
“Os barcos de esporte e recreio, que muito diferente dos Automóveis, não necessitam de enorme investimento público para sua utilização (ruas, avenidas, viadutos, passarelas, muito asfalto, semáforos, etc), e também não concorrem o mesmo espaço público que o ônibus, o metrô, o pedestre e em nada contribui para o caos dos centros urbanos. Além disso os barcos ainda atendem a inúmeros quesitos de habitabilidade, e devido sua autonomia e autossuficiência, estão mais próximos de serem comparados com os sítios ou casas de campo/veraneio (longe dos centros urbanos), do que com os Automóveis”.
Não restam dúvidas de que o mar e o espaço aéreo não implicam em investimento de qualquer monta do seu custeio por parte dos Estados-membro que justifique a cobrança de qualquer tributo. Forçoso é acreditar que a teoria tridimensional do tributo e o caráter eminentemente fiscal dos impostos possa ser capaz de tamanha abstração: distanciar por completo a lógica da exação ao seu campo de incidência.
4. Conclusão
Os Estados-membros não podem passar a ter uma competência que lhe é estranha e que pertence exclusivamente à União, a qual recai todos os gastos para o custeio e risco da manutenção e fiscalização do espaço aéreo e das águas marinhas e fluviais, talvez os únicos bens que ainda são de fruição universal. A tributação de embarcações, nos moldes trazidos pela PEC 140/12 e 283/13 afiguram-se como uma afronta ao sistema jurídico vigente, desafiando os arquétipos traçados pelo poder constituinte na divisão das receitas entre os entes federativos.
O Brasil novamente persegue a contramão do mundo, ao aplicar seu famoso "jeitinho brasileiro" até em propostas de emenda à Constituição. Os efeitos da referida tributação terão como consequência o novo sucateamento do mercado naval de embarcações de recreio no Brasil, cujo custo, para classe média ainda é elevado. Comparasse nossas embarcações no Brasil aos carros de cuba, contudo, aqui, o nosso inimigo é o nosso próprio Estado.
5. Referência
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