1. INTRODUÇÃO
A licitação é um instituto de suma importância para a atividade administrativa, uma vez que ela é salva guardadora da isonomia, além de fazer com que a Administração obtenha a proposta mais vantajosa trazendo economicidade e eficiência.
Segundo o magistério de Hely Lopes Meirelles (2009, p.274):
Licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse. Como procedimento, desenvolve-se através de uma sucessão ordenada de atos vinculados para a Administração e para os licitantes, o que propicia igual oportunidade a todos os interessados e atua como fator de eficiência e moralidade nos negócios administrativos.
Este instituto é um marco imanente aos próprios fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito, por ser uma res publica, e também característica da Administração Pública moderna que irrompe com a antiga forma patrimonialista de gestão pública.
Deste modo, o constituinte originário, acertadamente, concebeu a licitação como obrigatória, ressalvados alguns casos especificados na legislação.
Sua natureza jurídica tem como nascedouro a nossa Constituição, no inciso XXI, do artigo 37. In verbis:
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Posteriormente, temos a lei n.º 8666 de 20 de junho de 1993, que traça normas gerais para toda a Administração, bem como, outras leis que também tratam da temática de forma subsidiária ou suplementar.
O presente ensejo tem como objeto, opostamente, uma hipótese em que não se observará o princípio da obrigatoriedade da licitação, com amparo em uma das ressalvas previstas na lei. Trata-se da dispensa do procedimento licitatório ocasionada por situação de emergência, em que esta última se dará por fato do agente público.
Diante do exposto, veremos nos seguintes tópicos a configuração fática da emergência fabricada e a necessidade de dispensa da licitação e contratação direta, inclusive a sua subsunção através de procedimento específico. Por conseguinte, abordaremos a respeito da responsabilidade do agente que venha ocasionar tal situação.
2. DA LICITAÇÃO DISPENSÁVEL E DA EMERGÊNCIA FABRICADA
O legislador consagrou na lei de licitações e contratos da Administração Pública, hipóteses em que a licitação será dispensável ou inexigível. A primeira quando o procedimento for juridicamente possível, mas por questões casuísticas e por observância do interesse público, sua aplicação configurar-se-á mais onerosa ou menos eficiente para a Administração. Neste caso, verifica-se que a dispensabilidade insculpida no artigo 24, detém natureza discricionária a ser analisada pela autoridade no caso concreto. Porém, também estão dispostos casos de dispensa em que o procedimento escapará a análise de mérito administrativo, sendo vinculada a sua aplicação. São os casos previstos no artigo 17, in fine.
Segundo as lições de José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 238), a dispensabilidade da licitação detém dois aspectos que lhe são intrínsecos: o da excepcionalidade e da taxatividade. Neste sentido, a dispensabilidade sempre se configurará em situações que fogem à situação de normalidade. Já o segundo caráter, é corolário da obrigatoriedade, de modo a tornar segura sua observação o legislador inseriu rol taxativo, de modo que o administrador não pode, de forma alguma, escapar-se das situações dispostas na norma.
Quanto à inexigibilidade, esta se subsume as situações em que a licitação for inviável, segundo Di Pietro (2011, p. 388), pelo fato de que haverá apenas um objeto ou pessoa. Fazendo-se inexistir ipso facto a competição.
Estas hipóteses, por sua natureza, foram dispostas em rol exemplificativo, no artigo 25.
Dados os devidos apontamentos quanto às ressalvas ao princípio da obrigatoriedade nos voltaremos ao objeto de nosso estudo.
A hipótese de licitação dispensável por situação de urgência encontra-se alocada no inciso IV do artigo 24, vejamos:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Na situação de emergência ou de calamidade pública, há um risco de comprometimento no atendimento. Por conseguinte, possibilidade de lesão a pessoas, bens públicos e outros que exijam a proteção da Administração.
Destarte, ambas as situações se configuram por uma situação adversa que, por força natural ou provocada pelo homem, faz surgir à necessidade urgente de atendimento. A diferença de uma para outra é que, na primeira, o comprometimento da resposta do Poder Público é parcial e na última, substancial.
Assim, a emergência é particularizada e destina-se a atender uma determinada necessidade isolada. Em virtude desta, a calamidade pública compromete todo um conjunto de necessidades.
Dispõe o decreto n.º 7257/2010, incisos III e IV do artigo 2º. Que define as situações para fins de transferência de recursos da União para outros entes federativos.
In verbis:
III - situação de emergência: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;
IV - estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;
Necessário advertir, que há, demasiada divergência doutrinária em relação a estes conceitos, deste modo, por uma questão de interpretação analógica de nível entre as fontes de direito, optamos por extrair a concepção legal destes institutos.
A partir desta conceituação se aduz um ponto seminal e muito controverso acerca da possibilidade ou não de contratação por emergência fabricada. É que o legislador não tratou de conceituar os institutos. Desde modo, faz-se oscilar a sua abrangência, tanto na doutrina quanto na jurisprudência acerca de sua possibilidade.
A norma não menciona que tais situações ocorrem exclusivamente por causas naturais ou por ação do homem, fazendo incidir uma interpretação extensiva, trazendo o cabimento da dispensa por fato do agente público. Contudo, concebem esta possibilidade alguns doutrinadores como Marçal Justen Filho (2010, p. 307) e Maria Silvia Zanela Di Pietro (2011, p. 392), inclusive algumas jurisprudências, que abordaremos apuradamente nos tópicos seguintes.
Além da configuração da situação emergencial, há também, o cumprimento do critério temporal de 180 dias, ou seja, a contratação deve se voltar a atender exclusivamente a situação emergencial, não devendo ultrapassar este período. Assim, não cessada a emergência ou sendo o objeto, de caráter extenso, deve-se renovar a contratação, de modo a refazer todos os atos que ensejaram a primeira situação.
Logo, se o objeto for contínuo, como a contratação de uma empresa de coleta de lixo hospitalar, deve-se realizar a licitação tempestivamente, incorrendo nas responsabilidades legais caso não o faça. Assim, deve-se aproveitar inclusive o prazo da contratação emergencial para realizar o procedimento licitatório.
Por fim, o agente público deve seguir o procedimento descrito no artigo 26, pois a dispensa da licitação não prescinde da necessidade do cumprimento de certas formalidades, sobretudo com o fito de cumprir os princípios imanentes à Administração Pública.
É sob este mister que a dispensa seguirá o seguinte procedimento:
Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos. Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I - caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso;
II - razão da escolha do fornecedor ou executante;
III - justificativa do preço.
IV - documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Percebe-se que a instrução do processo de dispensa deve ser devidamente fundamentada. Sobretudo quanto aos aspectos referentes à escolha do contratante, a caracterização da urgência e sua adequação como meio efetivo para a eliminação do risco.
Quanto à expressão “no que couber” do parágrafo único, pode trazer certa confusão. Nos casos em que incidirem o cabimento das hipóteses previstas, deve o agente providenciá-las e autuá-las no processo, de forma que, a sua omissão poderá acarretar sua responsabilidade por inobservância da formalidade.
A emergência fabricada, segundo o magistério de Marçal Justen Filho (2010, p. 307) acontece quando por desídia administrativa não se realizou o procedimento licitatório tempestivamente, fazendo gerar a urgência pela possibilidade de lesão a bens jurídicos curados pelo Estado, devendo o agente responsável ser punido.
Ora, estará incorrendo em duplo erro o administrador que diante de situação urgente não realizar a contratação direta. Pois, o ofício da Administração é a realização do bem comum, consagrado em nossa Constituição pelo princípio da supremacia do interesse público. Assim é que a jurisprudência recente do TCU assentou seu entendimento.
Acórdão n° 1.876/2007 do Plenário do TCU, conforme segue:
1. A situação prevista no art. 24, VI, da Lei n° 8.666/93 não distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa, sendo cabível, em ambas as hipóteses, a contratação direta, desde que devidamente caracterizada a urgência de atendimento a situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.
(…)
14. Consoante bem definiu o Voto que fundamentou a Decisão n° 138/98 – Plenário acima referenciado, a ausência de planejamento e a contratação direta fundamentada em situação de emergência caracterizam situações distintas, não necessariamente excludentes. Estará incorrendo em duplo erro o administrador que, ante a situação de iminente perigo, deixar de adotar as situações emergenciais recomendáveis, ainda que a emergência tenha sido causada por incúria administrativa. Há que se fazer a clara definição da responsabilidade: na eventual situação aludida, o responsável responderá pela incúria, não pela contratação emergencial.
Destarte, houve uma mudança diametralmente oposta ao antigo posicionamento desta Corte de Contas que antes, considerava a incúria administrativa como um requisito negativo à dispensa de licitação por emergência.
Acórdão Plenário n.º 347/94, relatoria do Min.Carlos Átila:
(...)
Além da adoção das formalidades previstas no art. 26 e seu parágrafo único da Lei nº
8.666/93 são pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso IV, da mesma Lei:
1 – que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída a culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
2 – que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou vida de pessoas;
3 – que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
4 – que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado.
Baseando-se na interpretação lógica de que não pode o administrador beneficiar-se de sua conduta viciada. Também considerando o conceito clássico de emergência ou calamidade pública, que é incompatível com o inciso IV do artigo 24.
(...)
O que se pode aduzir do novo entendimento jurisprudencial é que se passou a permitir a contratação direta por emergência fabricada. Devendo, todavia, serem punidos, os responsáveis, por sua conduta culposa ou dolosa. É o que veremos no tópico seguinte.
3. APONTAMENTOS SOBRE A RESPONSABILIDADE DO GESTOR EM SEDE DE EMERGÊNCIA FABRICADA
Ora, não é difícil perceber, com uma breve análise jurídica, que a conduta do agente público causador da emergência fabricada se subsume à lei de improbidade administrativa[1]. Ressalvadas as competências voltadas às sanções penais, civis e administrativas.
Assim, a conduta do agente público desidioso claramente vem descrita no artigo 10 e inciso VII, conforme se vislumbra adiante:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
(...)
VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente;
Assim, percebe-se imperiosa a aplicação da lei, independentemente da natureza subjetiva da conduta, ou seja, dolo ou culpa. O que se verificará no caso concreto são a extensão do dano e a conduta para se dosar as sanções.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que fora apresentado, verificamos a possibilidade da dispensa da licitação no caso colocado à baila.
Entretanto discordamos de tal posicionamento, pelos seguintes motivos:
- Quando o legislador engendrou a hipótese de contratação emergencial, tratou de conceber dois institutos consagrados no Direito Administrativo que já eram dispostos em outros diplomas. O da emergência e da calamidade pública. Deste modo, percebe-se a verdadeira e clara intenção do legislador em estabelecer que tais contratações se realizassem em casos de desastres, sejam estes naturais ou provocados pelo homem, verbi gratia, um incêndio criminoso.
- Dessarte, está com vício de legalidade a dispensa de licitação por emergência fabricada e todos os atos que nela engendrarem são nulos, devendo ser desfeitos, salvo, como bem explicitado por José dos Santos Carvalho Filho (2008, p. 153), nos casos de impossibilidade de invalidação, pelo decurso do tempo ou pelo direito adquirido da coletividade.
- Não pode, por expressa determinação legal - artigo 16 in fine da lei n.º 8.443, de 16 de julho de 1992 - a Corte de Contas julgar regular, uma dispensa de licitação por emergência fabricada, mesmo que tenha sido ocasionada por conduta culposa do agente, como exemplo, o agente que não contrata tempestivamente uma empresa de limpeza em um hospital. Este realizará a dispensa, mas esta por está com vício inquinado no objeto, contaminará todos os atos que partirem de tal iniciativa.
- É extremamente preocupante o fato de querer que se torne legitima a dispensa de contratação por emergência fabricada, pelo fato de que a Administração pode convalidar atos ilícitos. Tal feito feriria de morte todos os princípios a ela elencados. Ademais, deve-se punir severamente o agente causador de fato. Pra que este mesmo não volte a acontecer e que o próprio agente não volte a atuar neste âmbito.
- Por fim, discordamos da existência legal da hipótese firmada no tema e asseveramos que a operação da licitação, garante o mister da Administração, o cumprimento dos seus fins constitucionais. Não deve o agente público colocar, por qualquer motivo que se ache justo, os fins a frente dos meios. Pois, tal conduta estará quebrando a isonomia e a legalidade imanente ao nosso Estado Democrático de Direito, deturpando tudo que fora garantindo com a nossa atual ordem democrática e republicana, historicamente conquistados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.