Cheque: relação jurídica cartulária (ou cambiária) versus relação civil ou comercial

30/03/2014 às 14:53
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Emissão de cheque gera, necessariamente, duas relações jurídicas: uma cambiária e outra civil ou comercial.

CÓDIGO CIVIL: art. 888. A omissão de qualquer requisito legal, que tire ao escrito a sua validade como título de crédito, não implica a invalidade do negócio jurídico que lhe deu origem.

Por esse artigo do Código Civil, percebe-se claramente que, sempre que há a emissão de um título de crédito, existirão duas relações jurídicas.

Quando emito um cheque em favor de uma pessoa, fatal e invariavelmente, teremos uma relação cambiária (ou cartulária) e outra relação civil ou comercial.

Exemplo: Guilherme Cabral compra um carro de Valtir de Sousa e emite um cheque de R$ 50.000,00 à ordem de Valtir de Sousa. Houve uma relação civil de compra e venda de coisa (veículo). Se um de nós fosse comerciante de carros, haveria para esse comerciante uma relação comercial.

Assim, teremos duas relações jurídicas: a primeira, de compra e venda civil de um veículo, onde Guilherme Cabral figura como devedor da compra e Valtir de Sousa figura como credor da venda.

Agora, na emissão do cheque, em pagamento da compra e venda, na relação cartulária, Guilherme Cabral, titular da conta corrente e emitente do cártula de cheque, é o CREDOR, o Banco é o DEVEDOR e Valtir de Sousa é o favorecido ou beneficiário da quantia representada pelo cheque.

Vamos à lei do cheque (Lei 7.357, de 2 de setembro de 1985):

São requisitos do cheque:

Art. 1º. O cheque contém:

I - omissis

II - A ORDEM incondicional de pagar quantia determinada.

Obs.: veja que se trata de uma ORDEM e não de um pedido. O Credor, emitente, ORDENA ao Banco (devedor).

III - o nome do BANCO ou da INSTITUIÇÃO FINANCEIRA que DEVE pagar (sacado).

Obs.: veja que o BANCO está recebendo uma ordem. Em português claro, quem DEVE PAGAR algo é o DEVEDOR. Ao revés, quem tem a receber é o CREDOR.

É um pouco difícil para o leigo, em primeiro momento, conseguir distinguir a diferença entre a relação cambiária da relação civil (ou comercial).

A conta corrente é uma rubrica contábil do BANCO. É, também, chamada de funding ou operação passiva do banco. Daí, por que a conta corrente apresenta CRÉDITO quando depositamos e DÉBITO quando sacamos. Isso, porque a nossa conta corrente é uma rubrica do PASSIVO do banco. As contas do passivo, quando entram valores, são CREDITADAS e quando saem valores, são DEBITADAS (exceto as contas retificadoras do passivo, que não objeto deste artigo).

Quando depositamos em um banco, o BANCO passa a ser DEVEDOR da pessoa que depositou.

Veja, de forma singela, o texto abaixo:

“Uma empresa ou pessoa física é considerada credora quando possui aplicações/recursos disponíveis no seu cadastro junto a uma instituição financeira ou quando empresta dinheiro/equipamentos a terceiros.

O devedor por consequência é aquele que se utiliza dos recursos dos credores, por meio de empréstimos.

EX. Você é correntista de um banco e possui várias aplicações, entre fundos de investimentos, CDB e poupança junto a esta instituição, portanto você é credor deste banco. O banco paga a você a rentabilidade sobre os valores aplicados, hoje a taxas de 0,55% a 0,80% a.m., mas de onde vem o dinheiro para pagar essa rentabilidade?

O seu dinheiro é emprestado pelo banco a outras pessoas por meio de empréstimos, utilização de cheque especial, financiamento imobiliário etc. Essas pessoas são os devedores dos bancos, e com os ganhos dos empréstimos, onde as taxas variam de 1,5% a.m. até 12% a.m. no caso do cheque especial, são utilizados para pagar a rentabilidade de suas aplicações.

E a diferença entre a taxa dos empréstimos e a das aplicações, para onde vai? 

Essa diferença, que compõe o chamado SPREAD bancário, é utilizada para o custeio da estrutura dos bancos, e o que sobra (que é muito) é o lucro das instituições financeiras”.

http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090907231442AAnhgN4

Assim, numa análise perfunctória (e nem precisa mesmo ser aprofundada), percebe-se que SEMPRE, ao emitir um cheque, existirão duas relações jurídicas. Assim, confirma o art. 888, do Código Civil.

O artigo 888 quis dizer que: se o cheque que Cabral emitiu a Valtir não tiver fundos bancários, nem por isso a compra e venda será nula. Se Guilherme Cabral já passou o carro para seu nome, Valtir terá que entrar pela via judicial para tentar receber a quantia representativa do cheque, colocando no polo passivo, como executado, Guilherme Cabral, que é o emitente e DEVEDOR NA RELAÇÃO CIVIL (dívida essa, representada pelo título de crédito). Óbvio que o BANCO não tem nada a ver com a relação civil e, também, por óbvio ululante, não poderá figurar no polo passivo da execução, mas tão-somente o emitente do cheque.

Agora, se Guilherme Cabral possui fundos bancários e o Banco não cumpre a ordem, o banco figurará no polo passivo de uma cobrança judicial e, eventualmente, por danos morais, por não ter pago o cheque de Guilherme Cabral, sendo que havia saldo. O Banco é devedor de Guilherme Cabral e não de Valtir de Sousa.

Veja que já caiu em prova do CESPE a seguinte afirmativa:

“UM CHEQUE SÓ PODE SER ACEITO CAMBIÁRIAMENTE, SE CONTIVER OS REQUISITOS DA LEI”.

GABARITO: ERRADO. Por quê? Porque o cheque NÃO admite o aceite cambiário NUNCA.

Art. 6º da Lei do Cheque: “O cheque NÃO admite aceite, considerando-se como não escrita qualquer declaração com esse sentido”.

Veja que o CESPE deixou claro que se trata de ACEITE CAMBIÁRIO. Daí, ACEITE não tem nada a ver com ACEITAR um cheque, do português.

O que é o ACEITE CAMBIÁRIO:

“Art. 2º da Lei 5.474, de 18.07.1968: “ACEITE CAMBÍARIO é a declaração do reconhecimento da exatidão de um título de crédito e da obrigação de pagá-lo, a ser assinada pelo comprador, como aceite cambial”.

O aceite cambial só é admitido na DUPLICATA e na LETRA DE CÂMBIO, que são títulos emitidos pelo CREDOR/VENDEDOR, contra o devedor, que deverá dar a sua concordância.

Também, por isso, o cheque tem natureza jurídica QUESÍVEL ou quérable e a Letra de Câmbio tem natureza Levável ou portable.

O cheque é quesível porque o favorecido do crédito consubstanciado no cheque vai ao DEVEDOR (que é o banco) receber a ordem de pagamento.

Já a letra de câmbio e a duplicata, o DEVEDOR é quem vai ao credor pagar, por isso, de natureza levável.

 Espero ter esclarecido mais essa dúvida dos meus alunos. Fiquem atentos para a relação cambiária/bancária/cartulária.

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Sobre o autor
Guilherme Castro Cabral

Professor de curso preparatório há 36 anos, bacharel em Direito pela UNIMONTES, Especialista em Direito Empresarial, com especialização em Títulos de Crédito e monografia final da pós graduação cujo tema foi: OS TÍTULOS DE CRÉDITO E SUAS NUANÇAS. Ex professor universitário por oito anos, em Direito Comercial II - Títulos de Crédito (UPIS, CESUBRA, UNIP e UNICEUB - todas em Brasília - DF).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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