Restrições ao trabalho da mulher:

entre normas discriminatórias e protecionistas

31/03/2014 às 08:33
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Partindo do exame de algumas normas vigentes no início do século XX sobre as restrições impostas ao trabalho da mulher, analisam-se as que remanesceram no ordenamento jurídico hodierno, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

RESTRIÇÕES AO TRABALHO DA MULHER: entre normas discriminatórias e protecionistas.

Fabiana Santalucia Fernandes

Resumo: Partindo do exame de algumas normas vigentes no início do século XX sobre as restrições impostas ao trabalho da mulher, analisam-se as que remanesceram no ordenamento jurídico hodierno, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse prisma, pondera-se sobre eventual caráter discriminatório ou protecionista, tendo em vista, notadamente, o princípio da igualdade, consagrado pelo art. 5º, inciso I, da CF. Ao final, apresenta-se conclusão sobre o assunto abordado.

Palavras-chave: Trabalho. Mulher. Proteção. Discriminação.

Sumário: Introdução. 1 Restrições ao trabalho da mulher. 2 Trabalho noturno. 3 Trabalho em condições insalubres, perigosas e penosas. 4 Trabalho extraordinário. 5 Trabalho com peso. Conclusão.

 

INTRODUÇÃO

Durante vários anos, a legislação brasileira possuiu caráter demasiadamente tutelar em relação à mulher, fixando muitas normas que, atualmente, seriam tidas como injustificáveis e, por que não dizer, discriminatórias, mormente à vista da sociedade evoluída em que vivemos.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, seguida da realização de modificações na própria legislação infraconstitucional, os preceitos em comento, já não recepcionados pela primeira, acabaram, porém, sendo efetivamente revogados do texto normativo, remanescendo, a rigor, apenas aqueles de cunho eminentemente protecionista que teriam por fim salvaguardar a integridade física da mulher, especialmente enquanto mãe.

Nesse contexto, tem o presente artigo por objetivo analisar as principais circunstâncias que ensejaram a incidência de normas desse estilo, ponderando-se sobre o seu efetivo caráter protecionista ou discriminatório, à vista da evolução ocorrida entre as normas então vigentes no início do século XX e as que hoje se encontram previstas na legislação pátria.

    

1  RESTRIÇÕES AO TRABALHO DA MULHER

                        Estabelece o art. 5º, inciso I, da Constituição Federal de 1988 que:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

 

                        Na mesma senda, prevê o art. 7º, inciso XX e XXX, desse mesmo diploma legal que:

 

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

 

                        Como bem se vê, vigora, a rigor, no ordenamento jurídico hodierno o princípio da isonomia entre os gêneros, o qual, dentre outras razões, restou estabelecido pela ordem constitucional como forma de coibir práticas discriminatórias contra a mulher que pudessem lhe restringir o mercado de trabalho, ação esta corriqueira nos tempos pretéritos.

                        Embora as normas constitucionais anteriores já assegurassem, ainda que de modo parcial, os direitos acima mencionados, vedando a discriminação em função do sexo, tem-se, por outro lado, que o entendimento largamente propagado naquela época se apresentava bem dissonante do que é hoje difundido no meio jurídico.

                        Nesse sentido, preleciona DELGADO (2010, p. 732), para o qual alguns dispositivos da CLT “sob o aparentemente generoso manto tutelar, produziam efeito claramente discriminatório com relação à mulher obreira”.

                        Vejamos a seguir as principais circunstâncias que atraiam a incidência de normas dessa espécie, bem como a forma como estas se encontram atualmente disciplinadas pela legislação vigente.

2 TRABALHO NOTURNO

 

Sob o ponto de vista fisiológico, é cediço que o trabalho noturno, a princípio, mostra-se prejudicial tanto à saúde da mulher quanto do homem, sendo, por tal razão, recomendado o afastamento de ambos desse turno.

A circunstância em foco, porém, não era assim compreendida pelo legislador pátrio no começo do século XX, o qual, sem qualquer substrato científico, fez inserir no ordenamento jurídico então vigente norma restritiva ao trabalho noturno da mulher, supostamente de caráter protecionista.

Nesse contexto e reforçando a divisão sexista de atividades à época ainda reinante, promulgou-se o Decreto n.º 21.417/1932, o qual veio a proibir, com algumas exceções, o trabalho noturno de mulheres, no período compreendido entre as 22h00 e as 05h00, em estabelecimentos comerciais ou industriais, fossem eles públicos ou particulares.

Seguindo essa tendência, a própria redação inicial do art. 379 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) acabou confirmando tal proibição, vista ainda como regra geral.

Entretanto, com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e alterações legislativas posteriores, a restrição em comento acabou sendo revogada por completo do ordenamento vigente, uma vez que grosseiramente discriminatória.

Nesse contexto e guiadas especialmente pelo princípio da isonomia, as normas trabalhistas atualmente vigentes, permitem o trabalho noturno da mulher em qualquer local, desde, é claro, que observados os preceitos contidos no art. 73 da CLT.

À vista, entretanto, da necessidade de se assegurar distinção à mulher que se encontra vivenciando situação de gestação, até mesmo por se tratar de medida de saúde pública, restou acolhida pelo ordenamento jurídico pátrio a previsão contida no art. 7º da Convenção n.º 171 da Organização Internacional do Trabalho, que assim estabelece:

 

Artigo 7

1. Deverão ser adotadas medidas para assegurar que existe uma alternativa do trabalho noturno para as trabalhadoras que, a falta dessa alternativa, teriam que realizar esse trabalho:

a) antes e depois do parto, durante o período de, pelo menos, dezesseis semanas, das quais oito, pelo menos, deverão ser tomadas antes da data estimada para o parto;

b) com prévia apresentação de certificado médico indicando que isso é necessário para a saúde da mãe ou do filho, por outros períodos compreendidos;

i) durante a gravidez;

ii) durante um lapso determinado além do período posterior ao parto estabelecido em conformidade com o item a) do presente parágrafo, cuja duração será determinada pela autoridade competente e prévia consulta junto às organizações mais representativas dos empregadores e de trabalhadores.

Em se tratando, pois, de trabalho noturno, não existem mais restrições no ordenamento jurídico pátrio em relação ao labor desempenhado por mulheres, ressalvadas, obviamente, as medidas acima transcritas, aplicáveis àquelas que se encontrem em ciclo gravídico-puerperal.

3 TRABALHO EM CONDIÇÕES INSALUBRES, PERIGOSAS E PENOSAS

A exemplo do obtemperado em relação ao trabalho noturno, o labor desempenhado em condições insalubre, perigosas e penosas, não se mostra, a rigor, mais prejudicial ao gênero feminino ou ao masculino.

Com efeito, suprimidos, reduzidos ou mesmo distribuídos os riscos ocupacionais do labor desempenhado, dentro de um sistema racional de trabalho, atividades desse estilo, efetivamente, não se revelam capazes, por si só, de produzirem mais danos à mulher que ao homem, exceção feita, obviamente, àquelas que se encontram em estado gravídico.

A despeito de tal circunstância, o legislador do pátrio, no início do século XX, fez novamente inserir no ordenamento então vigente normas restritivas ao trabalho da mulher, em se tratando de labor desempenhado em condições insalubres, perigosas ou penosas.

A primeira delas veio prevista na própria Constituição Federal de 1934, a qual, em seu art. 121, §1º, alínea “d”, proibia o trabalho de mulheres em indústrias insalubres, norma esta repetida até a carta constitucional de 1967.

Já a segunda norma restritiva restou enxertada no art. 387 da CLT, o qual assim dispunha:

 

Art. 387 - É proibido o trabalho da mulher:

a) nos subterrâneos, nas minerações em sub-solo, nas pedreiras e obras, de construção pública ou particular.

b) nas atividades perigosas ou insalubres, especificadas nos quadros para este fim aprovados. 

 

Com o advento da Constituição de 1988 tais restrições, entretanto, mostraram-se uma vez mais superadas por conta do princípio da isonomia, claramente incompatível com aquelas, pois também grosseiramente discriminatórias.

No caso, então, de trabalho em condições insalubres, perigosas e penosas, não restam no ordenamento jurídico pátrio restrições ao labor desempenhado por mulheres, que, evidentemente, apenas podem ser tratadas com distinção se estiverem em ciclo gravídico-puerperal, por ser medida de saúde pública.

4 TRABALHO EXTRAORDINÁRIO

 

Na mesma senda do acima ponderado, tem-se indubitavelmente que, sob o ponto de vista fisiológico, o trabalho extraordinário não se mostra, a princípio, mais prejudicial à saúde da mulher que à do homem.

A despeito de tal circunstância, o legislador do pátrio, no início do século XX, fez uma vez mais inserir no ordenamento então vigente normas restritivas ao trabalho da mulher, em se tratando de labor desempenhado com horas extras.

Assim foram fixadas as seguintes regras nos arts. 374 a 376 da CLT, que, como bem se vê, obstacularizavam o trabalho extraordinário de mulheres:

 

Art. 374 - A duração normal diária do trabalho da mulher poderá ser no máximo elevada de 2 (duas) horas, independentemente de acréscimo salarial, mediante convenção ou acôrdo coletivo nos têrmos do Título VI desta Consolidação, desde que o excesso de horas, em um dia seja compensado pela diminuição em outro, de medo a ser observado o limite de 43 (quarenta e oito) horas semanais ou outro inferior legalmente fixado.
Art. 375. Mulher nenhuma poderá ter o seu horário de trabalho prorrogado, sem que esteja para isso autorizada por atestado médico oficial, constante de sua carteira profissional.

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Parágrafo único. Nas localidades em que não houver serviço médico oficial, valerá para os efeitos legais o atestado firmado por médicos particulares em documento em separado. 

Art. 376 - Somente em casos excepcionais, por motivo de força maior, poderá a duração do trabalho diurno elevar-se além do limite legal ou convencionado, até o máximo de 12 (doze) horas, e o salário-hora será, pelo menos, 25% (vinte e cinco) superior ao da hora normal.

Parágrafo único - A prorrogação extraordinária de que trata este artigo deverá ser comunicada por escrito à autoridade competente, dentro do prazo de 48 (quarenta e oito) horas.

 

A justificativa para essas previsões, eminentemente sexista, baseava-se na necessidade de se limitar a jornada de trabalho das mulheres por razões de ordem familiar e doméstica.

Nesse contexto, preleciona BARROS (2010, p. 1090) que tal posicionamento refletia “uma estrutura cultural arraigada de estereótipos sexistas, que atribuíam à mulher apenas o ‘papel’ secular de mãe e dona de casa, fortalecendo o mito da fragilidade feminina e o preconceito do homem, no tocante às atividades familiares e domésticas”.

É certo, entretanto, que a partir da evolução das relações sociais, a necessidade de se conferir maior inclusão à mulher no mercado de trabalho se sobrepujou frente aos estereótipos anteriormente reinantes, passando aquela a possuir ‘papel’ importante na economia familiar.

Assim foi que, com a promulgação da Constituição de 1988 e alterações legislativas posteriores, as restrições em comento acabaram sendo revogadas por completo do ordenamento vigente, pois também grosseiramente discriminatórias e destoantes do princípio da isonomia.

Em se tratando, pois, de trabalho extraordinário, não restam no ordenamento jurídico pátrio restrições ao labor desempenhado pela mulher, mostrando-se igualitária para ambos os sexos, nesse ponto, a prestação de serviço com horas extras.

 

5 TRABALHO COM PESO

Diferentemente dos outros casos acima examinados, as restrições impostas pelo legislador pátrio ao trabalho desempenhado com peso por mulheres se mostraram justificadas pela fisiologia desigual existente entre os sexos femininos e masculinos, especialmente à época de sua previsão normativa.

Com efeito, estudos realizados no âmbito da fisiologia humana já revelavam que o sistema muscular feminino se apresentava menos desenvolvido que o masculino, correspondendo a força muscular daquela, em média, a 65% (sessenta e cinco por cento) da força deste último, isto para mulheres com cerca de 20 (vinte) anos, havendo decréscimo nessa porcentagem na medida em que a idade fosse elevada.

Diante de tal circunstância e claramente em face da pouca inovação tecnológica existente à época, o legislador do pátrio, no início do século XX, fez inserir com razão no ordenamento então vigente normas restritivas ao trabalho da mulher, em se tratando de labor desempenhado com pesos.

A primeira delas veio prevista no Decreto n.º 21.417/1932, o qual, em seu art. 4º, proibia que mulheres empregadas em estabelecimentos industriais e comerciais desempenhassem atividades de remoção de materiais com peso superior ao estabelecido nos regulamentos elaborados pela autoridade pública.

Já a segunda norma restritiva restou enxertada no art. 390 da CLT, o qual assim dispunha:

 

Art. 390 - Ao empregador é vedado empregar a mulher em serviço que demande o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos para o trabalho continuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos para o trabalho ocasional.

Parágrafo único - Não está compreendida na determinação deste artigo a remoção de material feita por impulsão ou tração de vagonetes sobre trilhos, de carros de mão ou quaisquer aparelhos mecânicos.

 

Embora sejam compreensíveis os motivos que ensejaram as previsões normativas em tela, especialmente pela época em que foram redigidas, BARROS (2010) obtempera, de outro lado, se tratar de normas dispensáveis no tempo hodierno.

Nesse sentido, pontua que a desvantagem da fisiologia muscular feminina “[...] não constitui obstáculo que não possa ser removido por uma organização de trabalho eficiente e pela utilização dos modernos recursos de técnica, capazes de alterar a natureza das atividades que exigem força física” (BARROS, 2010, p. 1093). Conclui, destarte, que o ideal seria abolir a norma inserta no art. 390 da CLT, permitindo-se a submissão de cada caso a uma apreciação detida das condições pessoais da empregada, à época da prestação do serviço, de modo a se reduzir o tratamento desigual atualmente ainda vigente.

A proposta em comento, de fato, revela-se interessante, principalmente quando se percebe as inúmeras inovações tecnológicas que mais e mais vem reduzindo os esforços físicos regularmente exigidos em trabalhos desse estilo.

O exame individual de cada caso poderia resguardar a saúde da trabalhadora, que, por óbvio, se gestante, necessitaria de medidas cautelares especiais, como a própria realocação temporária para o desempenho de outra atividade, já que abortos espontâneos e partos prematuros se apresentam por vezes associados ao levantamento de cargas pesadas.

A grande questão, entrementes, seria a subjetividade que estaria envolvida no exame dessas condições pessoais da trabalhadora, pois, sem critérios objetivos, legalmente previstos, a violação aos direitos assegurados a esta última poderia ser facilmente provocada e dificilmente provada em eventual ação judicial.

De todo modo, em se tratando de trabalho desempenhado com pesos, ainda vigora no ordenamento jurídico pátrio a norma inserta no art. 390 da CLT, de observância obrigatória, não havendo que se falar, a rigor, em norma discriminatória, mas sim em norma eminentemente protetiva, embasada em critérios técnico-científicos.

CONCLUSÃO

 

Como bem se viu, no curso de um largo período de tempo houve a vigência de várias normas restritivas ao trabalho da mulher, muitas das quais, apesar de bem intencionadas, acabaram por se tornar extremamente discriminatórias, notadamente à vista da evolução da sociedade brasileira.

Por ser inequívoco que proteções normativas em demasia aumentam os custos do empregador e, por consequência, dificultam o acesso ao mercado de trabalho, fizeram-se imperiosas suas adequações ao meio social contemporâneo, especialmente para a garantia de igualdade entre os sexos, prevista pela Carta Constitucional de 1988.

Todavia, embora extirpados da legislação atual os preceitos discriminatórios e estabelecida uma igualdade formal da mulher no mercado de trabalho, é certo ainda se estar distante da isonomia substancial, almejada pela Constituição Federal vigente, que certamente apenas virá com o tempo, a partir de modificações nas tradições culturais.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: LTr, 2010.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2010.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

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