1 – Introdução
Este artigo versará sobre o instituto da aposentadoria compulsória do agente público estatutário, a sua razão de ser frente aos direitos da personalidade e dignidade do servidor, bem como analisará a crescente tendência de realizar mudanças no limite etário do referido instituto. Tal instituto vem ganhando cada vez mais repercussão na gestão estatal em face do crescente aumento de expectativa de vida da população (incluindo os próprios agentes estatutários), gerando reflexos em questões previdenciárias e no seio da Administração Pública.
2 – O Instituto da Aposentadoria
Inicialmente, é importante entender o significado do instituto aposentadoria para, a partir dele, ser possível compreender as especificidades da aposentadoria compulsória. O renomado autor José dos Santos Carvalho Filho (2012, p 689) conceitua que “aposentadoria é o direito, garantido pela Constituição, ao servidor público, de perceber determinada remuneração na inatividade diante da ocorrência de certos fatos jurídicos previamente estabelecidos”.
A CRFB concentra as disposições acerca da aposentadoria do servidor público no Art. 40 e seus diversos parágrafos. Especialmente no §2º desse mesmo artigo há a previsão constitucional da aposentadoria compulsória. Contudo, deve ser frisado que as disposições sobre a aposentadoria dos servidores não se esgotam nesse artigo, pois, em algumas passagens, a própria CRFB faz remissão ao Art. 40.
Um claro exemplo disso é que, apesar de exercerem funções altamente relevantes para o cenário nacional, os membros do Judiciário, dos Tribunais de Contas e dos diversos Ministérios Públicos seguem as mesmas regras de aposentadoria que regem os servidores estatutários (desde os cargos mais subalternos aos de maior “renome” entre os candidatos de concursos públicos).[1] Muitas leis, complementares ou ordinárias, que dispõem sobre as carreiras acima mencionadas possuem disposições acerca da aposentadoria diversas das existentes na CRFB. Entretanto, deve-se realizar uma filtragem, isto é, verificar, no caso de leis anteriores à atual Constituição (caso da Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN), se houve recepção ou não da disposição legal. Para as leis posteriores a 1988 é preciso que se verifique a compatibilidade constitucional de suas disposições, principalmente no tocante à supremacia da Constituição.
Apesar de não ser objeto deste trabalho, impende afirmar que as disposições sobre a aposentadoria dos agentes públicos regidos por um contrato de trabalho (conhecidos como empregados públicos), servidores temporários, servidores que ocupem exclusivamente cargos em comissão e trabalhadores da iniciativa privada reger-se-ão pelo disposto nos Arts. 201 e 202 da CRFB e legislação infraconstitucional pertinente.[2]
Percebe-se, portanto, que a aposentadoria do servidor não possui conexão alguma com quaisquer formas de penalidades impostas ao mesmo, por mais vontade que o mesmo possua de continuar laborando. Porém, apesar de fortes críticas sofridas, ainda persiste no ordenamento jurídico pátrio a aposentadoria compulsória com caráter de sanção funcional, aplicável a magistrados e membros do Ministério Público. Assim, devemos desde já diferenciar a imposição da aposentadoria compulsória com caráter de sanção da aposentadoria compulsória imposta ao servidor por mandamento constitucional sem nenhum viés punitivo.
3 – A Aposentadoria Compulsória
A aposentadoria compulsória, muito conhecida no seio da Administração Pública como “expulsória”, não é novidade na ordem jurídica nacional, já havendo sua previsão expressa nas Constituições anteriores. A maior parte delas estipulou 70 anos como limite etário.[3] A Constituição de 1934 possuiu o maior limite: 75 anos, de acordo com o Art. 64, “a”. Já a de 1937 reduziu o limite para 68 anos, conforme Art. 156, “d”.
Outra informação relevante é a existência da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 457/2005, de autoria do senador Pedro Simon, propondo a majoração do limite para 75 anos. A argumentação utilizada para a elevação versa sobre o aumento dos gastos previdenciários em decorrência da elevação da expectativa de vida da população; o fato de que a pessoa não se torna automaticamente descartável intelectual e profissionalmente aos 70 anos de idade e a possibilidade de problemas depressivos.
O projeto sofreu diversas emendas, mas todas elas baseiam-se no fato de que a aposentadoria “forçada” aos 70 anos de idade deve ser alterada, tendo em vista a mudança da dinâmica social e da própria fonte de custeio e organização do sistema previdenciário, o que demonstra a magnitude do assunto para toda a sociedade.
A elevação da expectativa de vida e sua respectiva implicância na Previdência Social são pontos nodais das temáticas aposentadorias e pensões. É fato notório e salutar que, ao longo das décadas do século passado e da primeira década deste século, a expectativa de vida do brasileiro aumentou.[4]
Talvez a principal justificativa para a aposentadoria compulsória remonta ao fato de existir uma expectativa de que a pessoa ficará incapaz (ou terá maiores dificuldades) para as atividades laborativas quando atingir uma determinada idade.
Tal noção, aparentemente benéfica e com fundamentação rasa, poderia ter algum grau de legitimidade no Brasil de 50 ou 60 anos atrás, quando as condições sociais eram completamente diferentes das atuais. Ainda que atualmente coexistam “Brasis” com IDHs de Escandinávia e de países paupérrimos da África lado a lado, é inegável que houve consideráveis avanços no campo da medicina, saneamento básico, educação e condições sociais em geral.
Logo, em uma análise superficial da sociedade brasileira, o quadro existente antigamente é completamente diferente do atual, possibilitando que pessoas mais velhas, ainda que com as limitações naturais de idade mais elevada, possam exercer atividades físico-laborativas e intelectuais normalmente. Já se poderia considerar uma agressão à dignidade dos idosos crer que os de antigamente fossem incapazes intelectualmente automaticamente aos 70 anos de idade, visto que a história nacional (e mundial) possui diversos expoentes, não só na área jurídica, que produziram trabalhos memoráveis.
A Lei 10.741/03, conhecida como “Estatuto do Idoso”, tem como objetivo assegurar direitos e criar um microssistema de proteção e apoio ao idoso. Antes mesmo da existência desse diploma jurídico já seria possível, através da principiologia de proteção à pessoa existente na CRFB e na aplicação hermenêutica da mesma, deduzir que o idoso não é um ser incapaz justamente por ser idoso. Transformar um estágio natural da vida humana em presunção total de incapacidade é um completo contrassenso social.
Impedir o servidor idoso de exercer suas atividades profissionais quando apto é algo que fere sua dignidade e é o Estado atuando de maneira discriminatória. O idoso, em muitos casos, possui uma emotividade mais diferenciada e, com isso, a chance de desenvolver problemas depressivos pode aumentar e, contraditoriamente, fazer com que a sociedade despenda recursos para o tratamento médico e psicológico daquele cidadão.
Logicamente que toda uma gama de patologias “específicas” para idosos podem vir a afetá-los e transformá-los, nos casos mais graves, em relativa ou absolutamente incapazes de fato ou de direito. Nesses casos, o afastamento das atividades laborativas é medida de proteção para a própria pessoa e, indiretamente, proteção do bom funcionamento das atividades da Administração Pública. Com isso, garante-se a proteção da dignidade humana e a continuidade eficaz do serviço público.
É consenso que os idosos possuem uma limitação natural por conta da própria idade. Porém, como regra geral, sua experiência de vida pessoal e profissional pode vir a ser útil para o trabalho. Logicamente que o mero fato de alguém ter mais ou menos idade não a torna “voz da sabedoria profissional ou pessoal” dos fatos. Entretanto, adotando-se uma visão simplória, a inexperiência e vigor dos jovens e a experiência e menos vigor dos idosos, ao se encontrarem (ou colidirem), são meios aptos a produzir métodos e trocas sociais úteis.
Outra questão fundamental que possui interdependência com a longevidade do idoso é que o mesmo, quando em atividade, não representa um forte encargo para a Previdência, pois contribui para a mesma e mantém-se trabalhando. Isso possibilita que o arrecadado seja destinado a pessoas que realmente necessitem de algum auxílio governamental, baseando no princípio da solidariedade social do ramo previdenciário, em que se contribui para o sistema, e não apenas para si mesmo.
Não é raro nos dias de hoje, por diversas razões (saída tardia dos jovens da casa dos pais, necessidade de complementação da renda, dentre outras), que os aposentados exerçam outra atividade econômica a fim de cobrir os gastos pessoais e familiares. No caso de agentes públicos é possível verificar, por exemplo, que vários ex-ministros dos mais diversos tribunais, ao serem aposentados compulsoriamente, passaram a advogar.
O mesmo pode ser dito de um professor universitário altamente qualificado que, ao atingir 70 anos de idade e com uma vasta gama de conhecimentos que poderiam ser utilizados pela Administração, deixa de ser aproveitado e, fatalmente, exercerá a mesma atividade na iniciativa privada, demonstrando, assim, sua plena capacidade profissional e intelectual. Mais grave ainda é quando o referido profissional leciona na área pública e privada concomitantemente, visto que será perdido um profissional que possua as duas visões de atuação (público x privada), o que é uma experiência enriquecedora.
No caso de ex-ministros acima mencionados, cria-se uma situação peculiar: a pessoa é aposentada e começa a receber proventos com base em uma imaginária incapacidade intelectual e profissional e, ao mesmo tempo, passará a atuar na iniciativa privada, certamente sendo muito bem remunerado. Essa boa remuneração advirá dos anos de experiência e do próprio conhecimento adquirido. Ora, é uma situação esquizofrênica criada pelo próprio Estado, já que este procura ser eficiente na gestão dos gastos, especialmente na área previdenciária, e ele mesmo possui um mecanismo que ajuda a cria-los em momentos desnecessários.
Mais um ponto a ser destacado é que, por conta das diversas emendas constitucionais que alteraram as regras previdenciárias do servidor estatutário (e outras diversas e complexas regras de transição entre as emendas), a aposentadoria compulsória acaba por ser almejada por muitos servidores que não desejam ou não podem se aposentar em “outra modalidade”.
Servidores que “contam os dias” para a aposentadoria demonstram possuir um enorme espírito de frustração com a própria função ou o trabalho em si, passando a enxergar a atividade laborativa pública como um mero transcurso temporal entre o dia seguinte ao recebimento dos valores do contracheque e o último dia antes do próximo recebimento. Com isso, deixa-se de lado a importância da presteza, eficiência e dedicação ao trabalho para o qual prestou concurso público (ainda que a pessoa não tenha prestado concurso público, referida condição não pode servir como escudo eterno para ineficiências ou falta de zelo para com o trabalho).
Com as mudanças no mercado de trabalho, não é incomum que muitas pessoas “experientes” troquem a iniciativa privada pelo serviço público ou, o que é cada vez mais comum, que jovens estudem por anos para poderem ingressar em uma carreira atraente na área pública. Assim, o elastecimento da idade limite lhes será benéfico, pois poderão se aposentar pelas regras previstas no serviço público; poderão usar o tempo na área pública para somar com o labor na área privada ou, o motivo mais nobre, continuar a prestar serviços para a sociedade por mais tempo, mesmo já podendo se aposentar.
Aos servidores que, podendo solicitar a aposentadoria, permanecem em atividade, é concedido o abono de permanência. O pagamento do referido abono é vantajoso para ambas as partes, haja vista que o servidor, na prática, “deixa” de pagar a contribuição previdenciária (o abono corresponde ao valor descontado) e o governo economiza com a permanência do referido servidor. A economia advém do fato de ser mais barato manter o pagamento do abono a um servidor experiente na atividade a ter que arcar com a aposentadoria e a inatividade do mesmo. Além disso, para a própria atividade há vantajosidade, pois mantém uma pessoa experiente atuando em determinada lotação, evitando-se, assim, demorados e custosos procedimentos de remoção, abertura de concursos públicos, vacância no setor/localidade de lotação...
O aumento da idade também pode ser entendido como uma valorização do trabalho da pessoa que possua condições e disposição para se dedicar ao mister público. “Jogar fora” anos de experiência profissional por conta de uma previsão legal e constitucional equivocada é demonstrar que o Estado atua da maneira menos eficiente possível, afrontando violentamente o princípio constitucional da eficiência.
3.1 A Necessidade de Oxigenar a Administração
Existem linhas argumentativas, defendidas especialmente por setores da magistratura, que entendem que a limitação aos 70 anos é benéfica por proporcionar uma oxigenação e entrada de novas ideias, afastando determinadas “oligarquias” da cúpula dos tribunais. A referida linha argumentativa é instigante e merece uma análise mais pormenorizada.
Os setores, incluindo os da magistratura, que criticam o aumento do limite etário o fazem sob a alegação de que novas pessoas atingirão os cargos mais rapidamente e poderão renovar os entendimentos, recebendo as confluências dos novos tempos. Além disso, poderão ser promovidos em menos tempo.
Averiguar a aposentadoria compulsória sob o prisma da promoção é observar a temática por um prisma egoístico, pois deixa de lado toda uma gama de situações que afetam milhares de cidadãos e servidores, bem como o quadro orçamentário nacional. A questão da oxigenação de ideias e mentalidades é mais profunda do que a mera ilação que os mais jovens são mais revolucionários que os mais velhos.
Um magistrado mais idoso e “conservador” necessariamente não será mais maléfico ou benéfico que um magistrado jovem e “liberal”. A diversidade de ideias é fundamental na atividade jurídica e muito salutar para conter os abusos das maiorias de ocasião ou excessos de “minorias”. Outro ponto é que a idade, por si só, não pode ser parâmetro para aferir uma melhor ou pior atividade à análise jurídica. Experiência de vida, formação pessoal (família, nível social, instrução educacional), aperfeiçoamento profissional, temperamento e vivência na área são fatores que ajudam e certamente contribuem para uma análise racional e menos passional das questões.
Recentemente, os Tribunais Superiores vêm proferindo decisões de vanguarda, garantindo ou reafirmando direitos fundamentais para grupos excluídos, além de efetuarem interpretações que se coadunam com grau axiológico esperado em sociedades avançadas. E, como prova de que mais idade não significa ser um “reacionário” que ignora as novas questões sociais, os ministros são, obrigatoriamente, maiores de 35 anos e já atuam profissionalmente há bastante tempo.
Certamente haverá membros extremamente conservadores ou extremamente revolucionários e, dependendo da situação, isso poderá ser bom ou ruim. Contudo, Justiça é equilíbrio e sensatez, sendo que os órgãos colegiados permitem o debate de ideias e o atingimento de um “voto médio”. Uma medida salutar para permitir a oxigenação permanente das ideias é o oferecimento e aproveitamento efetivo de cursos, palestras, seminários, jornadas... A constante atualização e busca pelo aperfeiçoamento intelectual deve ser incentivada e difundida pelos mais diversos tribunais, de modo a atingir magistrados e servidores.
Quanto ao argumento de que a elevação da aposentadoria compulsória ajudaria a manter “dinossauros na magistratura”[5], dificultando ou impedindo uma modernização ou arejamento nos diversos tribunais, é preciso verificar mais detidamente a questão.
O Poder Judiciário não está imune a membros corruptos e que não fazem jus ao cargo que ocupam. Também é fato que há determinadas “correntes” nos tribunais que se eternizam nos cargos de direção, contribuindo para uma falta de ar novo. Contudo, correlacionar a elevação da idade da aposentadoria compulsória dos magistrados com a necessidade de afastar os “dinossauros”, apesar do seu forte apelo retórico, nem de longe é uma solução, total ou parcial, da questão.
O fato de um “dinossauro” atingir os 70 anos e ser obrigado a deixar o tribunal não necessariamente promove a pretendida oxigenação, tendo em vista que o magistrado aposentado possui fortes alianças no órgão. Assim, a influência de uma “corrente política” dentro do tribunal possui grande probabilidade de se eternizar por mais tempo, ainda que um ou outro “líder” deixe a toga por conta da idade.
Deve-se ressaltar também que a própria falta de democracia na eleição dos cargos de direção dos tribunais contribui e muito para a manutenção de “grupelhos” e/ou “afilhados”, tendo em vista o limitado número de membros votantes. Não é a toa que as associações de classe dos magistrados pleiteiam a participação de todos os membros do tribunal na eleição, de modo a dificultar a eternização de determinada “corrente política” e também pelo fato de que uma decisão da cúpula afetará a todos e, por tal razão, faz-se premente a maior participação dos que sofrerão as consequências.
4 – Conclusão
O debate acerca do limite etário é extremamente urgente e necessário, pois gera consequências que repercutem no presente e que poderão repercutir gravemente em um futuro não tão distante. Obviamente que as discussões precisam levar em conta todos os interessados e ouvir opiniões divergentes, mas algo facilmente visualizado é que a forma atual não é a melhor. Caso entenda-se que aumentar a idade puramente não é a melhor solução, pode-se partir para outra solução, como a avaliação funcional diferenciada ou uma perícia médica para determinar a condição física e mental do servidor idoso...
Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, p.689-691.
[1] No caso dos magistrados, Art. 93, VI, CRFB; para os membros dos Tribunais de Contas, Art. 73, §3º e, por sua vez, para os integrantes do Ministério Público, Art. 129, §4º, que dispõe que se aplica, no que couber, as regras constitucionais dos magistrados, acarretando, assim, a incidência das regras do Art. 40 da CRFB.
[2] Há outro tipo de aposentadoria, de alcance muito restrito, previsto no Art. 53, V do ADCT, conhecida como aposentadoria do ex-combatente.
[3] Art. 95, §1º da Constituição de 1946, Art. 100, II da Constituição de 1967 e Art. 101, II da Constituição de 1969.
[4] Conforme dados do IBGE amplamente divulgados na imprensa, no período de 1980 a 2011 a expectativa aumentou mais de 11 anos, estando no patamar de 74 anos em 2012. Os dados do IBGE são utilizados pela Previdência Social para efetivar o cálculo de diversos benefícios e, quanto mais longeva uma população, maior será a tendência de aumentar o número de idosos que, por sua vez, viverão mais que os idosos “anteriores”. Com isso, cria-se uma pressão sobre a população economicamente ativa, que tenderá a ficar mais reduzida, pressionando o governo a criar novas fontes de custeio ou a onerar financeiramente a parcela da população em atividade e, em certos casos, também a parcela inativa.
Acesso em 14/05/2013, às 22:16 hs: http://economia.uol.com.br/ultimas-oticias/infomoney/2012/11/29/ibge-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-mais-de-11-anos-entre-1980-e-2011.jhtm
[5] Expressão utilizada pela ex-Ministra do STJ, Eliana Calmon.