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ADIN 2591: o direito do consumidor e os bancos

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01/03/2002 às 00:00
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7. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA FÉ PARA O EQUILÍBRIO CONTRATUAL BANCÁRIO.

Devemos expor ainda que o Código de Defesa do Consumidor introduziu dois princípios elementares do novo direito dos contratos, os princípios da boa fé e da justiça contratual. Modernamente, o contrato não é mais visto como algo estático e individual, mas como algo dinâmico e social, necessário para o comércio jurídico e satisfação de interesses legítimos. Com essa nova perspectiva realativiza-se o princípio pacta sunt servanda e abre-se espaço para a justiça contratual, a tutela da confiança e a boa fé. O contrato, então, deve ser o instrumento de necessidades individuais e coletivas, não para a supremacia de um contratante sobre o outro ou para que esse enriqueça às custas daquele. A expressão alemã Treu und Glauben [38] resume de forma muito apropriada qual o comportamento que se espera das partes no contrato.

Destarte que o princípio da boa-fé exerce função importante no trato dos chamados contratos de adesão, tal qual é o contrato bancário, pois é justamente neste tipo de ajuste onde costumam aparecer os maiores abusos, pelo fato de o aderente ora consumidor não ter o poder de alterar substancialmente o conteúdo contratual.

A sociedade de consumo impõe o modo de contratação em massa, que se expressa, principalmente, em nossos dias, por tais tipos de contratação, nos quais o contratante adere às cláusulas "em bloco", sem discussão das mesmas justamente pelo fato do contratante não poder estipular o conteúdo do contrato, é que a boa-fé, nessa modalidade de contrato, deve ser analisada sob o ângulo objetivo.

Não há como se analisar a real vontade dos contratantes em um contrato de adesão. Não se pode saber o que se passa no íntimo deles no momento de contratar. Sobre a boa-fé objetiva, bem escreveu Cláudia Lima Marques [39]. "Efetivamente, o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações possui uma dupla função na nova teoria contratual: I) como fonte de novos deveres anexos; e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos".

A primeira função do princípio da boa-fé objetiva na nova concepção de contrato diz respeito aos chamados, pelos alemães, Nebenpflichten (deveres anexos ou secundários). Os deveres anexos representam aqueles deveres que não estão expressos no contrato, não são deveres, por assim dizer, que as partes possam "visualizar". Poder-se-ia dizer que são eles deveres implícitos em um contrato bancário.

Os deveres anexos não dizem diretamente com a vontade. Eles estão intimamente ligados com a boa-fé objetiva, desvinculando-se completamente da análise da volição das partes. De acordo com Clóvis de Couto e Silva [40] estes deveres "podem nascer e desenvolver-se independentemente da vontade."

A segunda função, ou seja, a boa-fé objetiva atuando como limitadora do exercício abusivo dos direitos subjetivos, é função de extrema valia no âmbito da teoria contratual moderna, uma vez que, com o desaparecimento cada dia maior da liberdade de contratar, para a parte débil da relação contratual, a parte economicamente mais forte como um Banco exerce abusivamente seu direito subjetivo de contratar, fazendo-o sem quaisquer limitações (Princípio da autonomia da vontade) e violando regras estipuladas nos contratos celebrados. É neste sentido que leciona Luis Renato Ferreira da Silva [41], considerando que "a regra da boa-fé objetiva implica numa série de efeitos que podem ser esquematicamente resumidos a) no controle corretivo do Direito estrito, b) no enriquecimento do conteúdo da relação obrigacional; e c) na negação em face do postulado pela outra parte. Todos estes efeitos se produzem a partir de critérios objetivo e não baseados na subjetividade do intérprete e do aplicador da lei. "

É importante que se tenha presente a noção de boa-fé dentro de critérios objetivos. Procurando a boa-fé nas intenções subjetivas dos contratantes, entraríamos dentro do campo da moral interna destes, local onde estão localizados sentimentos de difícil medida e constatação por terceiros. Além disso é incompreensível a mensuração da boa-fé subjetiva dentro de um contrato bancário, normalmente de adesão, impessoais e aplicados em massa, onde não se concebe uma instituição financeira com conflitos morais internos.

Assim, uma grande inovação do Código de Defesa do Consumidor, talvez a mais importante, foi sem dúvida alguma, a inserção da regra geral sobre a boa-fé. Assim como o §242 do BGB alemão, e o art. 1134 do CODE, os arts. 4º, III, e 51, IV, da Lei 8.078/90, são verdadeiras cláusulas gerais sobre a boa-fé, pelas quais o Direito Brasileiro há muito tempo clamava.

No que tange ao princípio da boa fé temos também o ensinamento de Renata Mandelbaum onde " assim, através da aplicação dos princípios que regem a nova realidade contratual, busca-se a segurança jurídica, mas não através da liberdade contratual, onde imperava a supremacia da "palavra dada" (pacta sunt servanda), mas através da tutela da confiança e da boa fé, banhados pelo princípio da justiça contratual [42].

O mestre Humberto Theodoro Júnior [43], inclusive, que "nosso Código - referindo-se ao Código Civil - não contém norma específica sobre o tema, mas a doutrina e a jurisprudência entendem, à unanimidade, que dito princípio também prevalece, entre nós, como princípio geral de direito". E também na lavra do professor Clóvis do Couto e Silva [44], quando referia: "Quando num código não se abre espaço para um princípio fundamental, como se fez com o da boa-fé, para que seja enunciado com a extensão que se pretende, ocorre ainda assim a aplicação por ser o resultado de necessidades éticas essenciais, que se impõe ainda quando falta disposição legislativa expressa". Também neste sentido temos a Professora Olga Maria do Val [45] onde anota que "Com o advento do Código do Consumidor, o princípio da boa-fé, de regra de interpretação, de princípio jurídico aplicável como fonte de direito, subsidiariamente portanto, foi elevado a categoria de norma jurídica (norma princípio). A partir de agora, é norma posta, de observância obrigatória, cogente (a teor do art. 1º da Lei 8.078/90)".

Tanto que no artigo 4º do Código do Consumidor vamos encontrar que "A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores" resultando, em decorrência desse dispositivo, que a boa-fé "deixa de ser elemento subjetivo nas relações jurídicas, e passa a ser elemento objetivo, ou seja, de apuração obrigatória na formação dessas relações jurídicas (a não ser nas hipóteses de responsabilidade objetiva, sem culpa), de vez que foi erigida (a boa-fé) à categoria de norma princípio.

Com efeito, dispõe o inc. IV do art. 51, da Lei 8.078/90, que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que sejam incompatíveis com a boa-fé". Ora, tal condição consagra o princípio da boa-fé [46] como de eficácia plena pois que sem qualquer efeito - absoluta nulidade - quando as cláusulas contratuais o contrariarem.

A condição plena desse princípio levou Cláudia Lima Marques [47] a apontar que "Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC; neste trabalho, porém, estamos destacando igualmente o princípio da transparência (art. 4º, caput), o qual não deixa de ser um reflexo da boa-fé exigida aos agentes contratuais".

No tocante a aplicação da boa-fé, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar [48] ressalta que "a inter-relação humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e lealdade, indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência social. A expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente indissociável da vida de relação, sem o qual ela mesma seria inviável".

E continua o Ministro: "Isso significa que as pessoas devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à constituição de tais relações (diligencia in contrahendo); e que devem também comportar-se segundo a boa-fé se projeta a sua vez nas direções em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os direitos devem exercitar-se de boa-fé; as obrigações têm de cumprir-se de boa-fé" [49].

Aliás, sobre o tema, valho-me da opinião do professor Nelson Nery Junior [50] um dos autores do anteprojeto que deu origem ao CDC, a seguir transcrita: "Muito embora nosso Código Civil não contenha preceito expresso no sentido de que as relações jurídicas devam ser realizadas com base na boa-fé, como ocorre no direito alemão (§ 242 do BGB - Leistung nach Treu und Glauben - "Prestação segundo a boa-fé"), essa circunstância decorre dos princípios gerais do direito e a exigência de as partes terem de comportar-se segundo a boa-fé tem sido proclamada, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. O comportamento das partes de acordo com a boa-fé tem como conseqüência a possibilidade de revisão do contrato celebrado entre elas, pela incidência da cláusula rebus sic stantibus, a possibilidade de argüir-se a exceptio doli, a proteção contra as cláusulas abusivas enunciadas no art. 51 do CDC, entre outras aplicações do princípio. No sistema brasileiro das relações de consumo houve opção explícita do legislador ao primado da boa-fé.

Com menção expressa do art. 4º, nº III, do CDC à "boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores", como princípio básico das relações de consumo - além da proibição das cláusulas que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade (art. 51, nº IV) - o microssistema do direito das relações de consumo está informado pelo princípio geral da boa-fé, que deve reger toda e qualquer espécie de relação de consumo, de contrato de consumo." Portanto, a boa-fé na relação de consumo procura dar equilíbrio ao contrato, afastando a prevalência, nas cláusulas, da vontade de um em detrimento do outro, restabelecendo a posição de equivalência entre o fornecedor e o consumidor. Diz respeito à consciência das partes contratantes, à sua intenção. Visa, por conseqüência, limitar os desvios na relação contratual de consumo.


8.CONTRATO BANCÁRIO COMO UM CONTRATO DE ADESÃO [51] E A REGÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR [52].

O contrato de adesão [53], segundo a pesquisadora belga Françoise Domont-Naert, em tradução da Procuradora de Justiça do Rio de Janeiro, Dra. Maria Henriqueta A. Fonseca Lobo [54], "constitui aquele cujo conteúdo foi total ou parcialmente estabelecido de modo arbitrário e geral anteriormente ao período contratual. Caracteriza-se pela ausência de negociação individual prévia em vista do acordo das vontades. Apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de condições gerais ou individuais estabelecidas unilateralmente por uma das partes..."

De observar, segue a autora, "que o contrato de adesão, como tal, não é considerado abusivo. Ele corresponde a uma estandardização necessária das relações comerciais na qual a negociação individualizada dos termos do contrato dificilmente encontra seu lugar.

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O abuso não resulta do fato que o consumidor é obrigado a aderir a este ou aquele texto pré-impresso, mas, efetivamente, do conteúdo eventual de uma convenção de cuja redação ele não participou, e que ele não poderá modificar, visto a relação de forças existentes entre as partes confrontadas, e que provavelmente ele encontrará uniformizada no setor respectivo. A abusividade de cláusulas, adianta a autora, cria, em detrimento do consumidor, um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato. E há abuso quando o consumidor sofreu um prejuízo desproporcionado resultante, diretamente, de um desequilíbrio flagrante entre os direitos e os deveres recíprocos dos parceiros da relação. Daí a qualificação desta lesão em qualificada, e, uma vez verificada, o contrato fica eivado de vício insanável, acarretando a nulidade absoluta, eis que constitui culpa in contrahendo o fato de se comportar para com o contratante de contrária à boa-fé [55]".

Segundo o ensinamento do jurista J. Oliveira Ascensão, " Em Portugal [56] usa-se a terminologia cláusulas contratuais gerais. Representa a transposição da expressão alemã iallgemeine GeschŠftsbedingungen e da italiana condizioni generali di contratto, melhoradas por se falar em cláusulas e não condições Talvez se pudesse ter prosseguido o melhoramento falando em cláusulas negociais gerais. As cláusulas contratuais gerais são cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam, respectivamente, a subscrever ou aceitar. Estão reguladas pelo Dec.-Lei n. 446/85, de 25 de Outubro, remodelado pelo Dec.-Lei n. 220/95, de 31 de Agosto, na sequência da Directiva n. 93/13/CEE, de 5 de Abril.. É aí que surge a disciplina do que se designa no Brasil cláusulas contratuais abusivas. [57]

Na concepção da jurista Cláudia Lima Marques [58] "aquele cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur,, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito".

O contrato de adesão caracteriza-se por permitir que seu conteúdo seja preconstruído por uma das partes, eliminada a livre discussão que precede normalmente à formação dos contratos. Orlando Gomes [59], inclusive, fazia distinção entre contrato de adesão e contrato por adesão.

Distinção que é feita a partir não do modo de consentir, que se mostra insuficiente, porque abrangente, mas de outras peculiaridades, tais como a uniformidade e a abstratividade das cláusulas preconstituídas unilateralmente. Assim, nos contratos de adesão se incluiriam aqueles em que o contratante aderente não tem qualquer possibilidade de rejeitar as cláusulas uniformes estabelecidas previamente.

Ainda importante o pronunciamento do jurista Carlos Alberto Bittar [60] nos dá uma clara noção desta proteção contratual: " A propósito o direito codificado delimita o alcance dos contratos de adesão e proíbe a inserção de certas cláusulas, que considera abusivas, declarando-as não escritas, e portanto de nenhum efeito vinculatório, a saber: as limitativas e as elisivas de responsabilidade do disponente, as de transferência de responsabilidades a terceiros, as contemplativas de obrigação iníquas ou abusivas, as de intervenção de ônus da prova, as de indicação previa de árbitros".

Conhecido na doutrina e na jurisprudência [61][62], o contrato de adesão, de grande utilização pelos entes financeiros, recebeu, pela primeira vez no Brasil, tratamento legislativo ao ser identificado no Código de Defesa do Consumidor no artigo 54. [63]

Portanto, o contrato de adesão surge como necessidade de o Direito adequar-se às exigências econômicas e sociais, compatíveis com a modernidade da economia de escala, produção em série, consumo em massa, pressa do agir dos sujeitos envolvidos nas transações. Deixada para trás a fase em que os contratantes se reuniam para discutir cláusula a cláusula até formação definitiva da avença. Ao consenso opõe-se agora a aderência, ao contrato de comum acordo, o contrato de adesão, ficando as cláusulas ao encargo unilateral de uma das partes, no caso, o fornecedor a estabelecê-las previamente. Trata-se de método de conclusão de contrato que subverte o modo normal de formação dos atos negociais, refletindo-se necessariamente em novos métodos de interpretação dos contratos e de manuseio de suas cláusulas. Por outro lado, o contrato de adesão não se confunde com as chamadas cláusulas gerais do contrato, embora com elas traga traços muito íntimos. Enquanto as cláusulas gerais de contratação constituem conjunto de regras ou normas, identificadas terminologicamente como regulamentos internos, estatutos, normas de serviços, servindo de fonte para a realização das avenças, os contratos de adesão passam a ser a concretização dessas cláusulas contratuais gerais.

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Sobre o autor
Celso Marcelo de Oliveira

consultor empresarial, membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial, do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito Societário, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, da Academia Brasileira de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Processual e da Associação Portuguesa de Direito do Consumo. Autor das obras: "Tratado de Direito Empresarial Brasileiro", "Direito Falimentar", "Comentários à Nova Lei de Falências", "Processo Constituinte e a Constituição", "Cadastro de restrição de crédito e o Código de Defesa do Consumidor", "Sistema Financeiro de Habitação e Código de Defesa do Cliente Bancário".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Celso Marcelo. ADIN 2591: o direito do consumidor e os bancos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2741. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Estudo jurídico enviado aos Ministros do Supremo Tribunal Federal como fonte alternativa de direito ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2591.

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