Sobre o aborto humanitário e a mulher como agente no crime de estupro

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Poderia a mulher agente no crime de estupro reivindicar direito ao aborto humanitário (art. 128, II, Código Penal)?

O aborto humanitário, ético ou piedoso é o nome dado ao aborto licitamente provocado por médico em mulher que tenha sido vítima de estupro, após o consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal. Na situação, haverá a excludente de punibilidade prevista no art. 128, inciso II do Código Penal.

Neste sentido, temos em pauta uma situação diversa da habitual, mas igualmente possível, na qual uma mulher violentaria sexualmente um indivíduo do sexo masculino, e resultaria por desenvolver uma gravidez. Sendo assim, resta a dúvida acerca da possibilidade de se aplicar o inciso II do Art. 128 do Código Penal ao caso, dando ao médico permissão para provocar aborto em gestante que tenha provocado, através de conduta criminosa, sua própria gravidez.

O aborto humanitário é uma figura criada para a proteção da integridade psicofísica da mulher, valor esse corolário da dignidade humana (MORAES, 2003).

No século XIX, o filósofo prussiano Immanuel Kant, ao tecer as conceituações fundamentais para o reconhecimento da dignidade humana, tratou, inicialmente de três ideias opostas e discriminatórias para sua compreensão.

A primeira ideia seria a do motivo, relacionada diretamente à moralidade. O motivo para uma ação poderá ser, segundo o pensamento kantiano, uma inclinação pessoal ou o dever por si mesmo. A inclinação pessoal estará presente quando fizermos escolhas com o objetivo de satisfazer um desejo ou preferência pessoal. Neste sentido, deveremos agir utilizando nossa capacidade de, ao menos, procurar se colocar acima dos interesses pessoais, e agir pelo que é racionalmente correto.

A segunda ideia seria a da determinação da vontade, associada à liberdade, ou seja, espontaneidade e voluntariedade da ação. A partir deste pensamento, a determinação de um indivíduo diante de sua própria conduta poderia ser autônoma (espontânea e voluntária) ou heterônoma, ou seja, imposta por terceiros. Neste último caso não haveria liberdade. Dessa forma, o indivíduo deverá agir segundo o dever por si mesmo, conforme o que é racionalmente correto, porém espontaneamente, de forma que assim é determinada a liberdade, na capacidade de determinar autonomamente a própria vontade.

Neste sentido, a determinação da vontade deverá partir da razão individual, sendo esta a única maneira de se agir independentemente de vontades alheias. A razão, por sua vez, é determinada a partir de um imperativo, que seria a terceira ideia da sequência. Os imperativos comandam a razão hipoteticamente ou categoricamente. Hipoteticamente quando a ação será boa apenas como meio de conseguir algo mais, e categoricamente quando boa em si mesma.

Logo, temos como correto agir sob o motivo do dever por si próprio, de forma autônoma, o que nos guia a determinar nossa razão categoricamente, e não para o bem de outras ações.

Dessa forma, para a determinação categórica de nossa razão, ou seja, para que o imperativo de nossa razão seja categórico, Kant elaborou algumas fórmulas que servirão como ferramentas para identificar o imperativo de nossa ação, fórmulas estas que traduzem o conceito do imperativo categórico.

A primeira seria a fórmula através da qual se imaginaria aquele imperativo, ou seja, aquele princípio para determinação da vontade como lei universal. Assevera em sua obra “Crítica à Razão Prática” (1788):

 

Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se simultaneamente, por tua vontade, lei universal da natureza. (KANT, 1788.)

Mormente tal fórmula, deverá o ser racional agir fazendo, anteriormente, a análise da possibilidade de universalização daquela conduta. Ou seja, observar se a ação será certa ou errada a partir de seu extremo, extremo esse no qual aquela ação fosse corriqueira. Desse modo, porém, não se estaria refletindo sobre as consequências da ação, mas apenas avaliando sua retidão através de uma perspectiva mais extrema, e, por conseguinte, mais fácil de se visualizar.

Foi, portanto, necessário explicar a teoria para chegar à última e mais relevante fórmula: a fórmula da humanidade, publicada na sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785), a qual ficou exposta através da seguinte passagem:

 

Supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. (KANT, 1785.)

Nesse sentido, chega à conclusão de que o homem, como ser racional, existe como um “fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade”, de forma que não deverá nunca ser considerado um mero meio para satisfação de outra vontade, mas sempre deverá ser tratado também como um fim.

Logo, Kant elabora um conceito que seria o carro-chefe da luta pelos direitos humanos, concluindo, ainda na mesma obra, que:

"No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”. (KANT, 1785)

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Desse modo, podemos concluir que todo ser humano deve ser respeitado em sua existência, por sua essência. É esta dignidade violada no momento em que um ser humano é tratado não como ser humano, mas como objeto, ocorrendo assim a coisificação do ser humano. A coisificação está presente quando um ser é utilizado por outro como um instrumento de satisfação da própria vontade, para cumprir seus propósitos individuais.

Outrossim, traz Nucci (2012) que:

Em nome da dignidade da pessoa humana, no caso a da mulher que foi violentada, o direito permite que pereça a vida do feto ou embrião. São os dois valores fundamentais, mas é mais indicado preservar aquele já existente. (NUCCI, 2012).

Neste sentido, uma mulher que violenta sexualmente um indivíduo do sexo masculino não tem, em momento algum, sua dignidade violada, não havendo, dessa forma, que se falar quanto a sopesamento entre sua dignidade e a vida do feto.

Outrossim, é o aborto humanitário decorrente de uma situação na qual a vontade da vítima foi suprimida, ou seja, conforme a teoria kantiana, a vontade foi heterônoma, de forma que a vítima não concorreu em qualquer forma de culpa, lato ou stricto sensu, para sua gravidez, para a gênese da referida vida, não podendo o direito obrigá-la ou constrangê-la a levar a gestação adiante.

De forma contrária, ao constranger homem a realizar consigo conjunção carnal, a mulher concorre em culpa ou dolo para sua própria gravidez, não podendo, portanto, extinguir uma vida que por sua culpa ou dolo se originou.

Em consonância com o disposto, conforme o princípio geral do direito do “nemo turpitudinem suam allegare potest”, afirmou o Superior Tribunal de Justiça que:

Gize-se que a paciente não desconhecia a instauração da ação penal, tanto que constituiu advogado tão logo decretada sua prisão, daí ser pertinente destacar que a ninguém é dado se beneficiar da própria torpeza[...]. (HC 172.970-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 2/6/2011. 6ª Turma).

 

 

Desta forma, vê-se a impossibilidade da mulher que pratica crime de estupro se beneficiar da excludente presente no artigo 128, inciso II do Código Penal, uma vez que sua dignidade não foi, de forma alguma, violada, não havendo absolutamente nada que se contraponha à vida do feto.

Referências:

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2003.

KANT, Immanuel. Kritik der praktischen Vernunft. Munique: Beck`sche Reihe, 2012.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

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