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As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988

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19/04/2014 às 08:23
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Apresenta o direito fundamental das Testemunhas de Jeová de recusa às transfusões de sangue amparado na CF/88, abordando as razões jurídicas e bioéticas que embasam tal direito, tendo como princípio norteador o da dignidade da pessoa humana.

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal apresentar o direito fundamental das Testemunhas de Jeová de recusa às transfusões de sangue amparado na Constituição Brasileira de 1988, abordando as razões jurídicas e bioéticas que embasam tal direito, tendo como princípio norteador o da dignidade da pessoa humana. O tema proposto, com respeito à liberdade de religião e crença, é tratado na doutrina e na jurisprudência com posições diversas, de forma a enriquecer o estudo e a opinião a respeito da temática. A questão refere-se principalmente a uma aparente colisão de direitos fundamentais, em especial o direito à vida e o direito à liberdade, o qual engloba as liberdades de crença, religião e culto. Por fim, salienta os riscos ligados às transfusões e os tratamentos usados como alternativas para salvaguardar o direito do paciente. 

Palavras-chave: Direito fundamental. Dignidade da pessoa humana. Testemunhas de Jeová. Transfusões de sangue.

Sumário: Introdução. 1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 2. Direitos Fundamentais. 2.1 Do direito à vida. 2.2 Do direito à liberdade de religião, de consciência e de crença. 2.3 Do direito à privacidade. 2.4 Aparente colisão de direitos fundamentais. 2.5 Jurisprudência. 3. Alguns casos em análise. 4. Do “paternalismo” médico à autonomia do paciente. 4.1 Princípios da bioética. 5. Testemunhas de Jeová. 5.1 A transfusão de sangue e a fundamentação religiosa. 5.2 Riscos das transfusões de sangue. Considerações Finais. Referências.


INTRODUÇÃO

No Brasil, a Constituição de 1988 instituiu um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício de valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Em uma sociedade plural como a nossa, é natural que as diferentes manifestações de crenças religiosas, devam ser respeitadas pelo Estado brasileiro e pelos particulares. As visões diferentes de mundo podem entrar em conflito repercutindo na relação jurídica, como por exemplo, o problema que envolve médicos e pacientes, quando sobre qual o melhor tratamento para ser utilizado em determinadas situações. As recomendações médicas nem sempre se coadunam com os desejos dos pacientes. Por outro lado, eles permitem que os pacientes decidam por qual tratamento escolher, reconhecendo, dessa forma, o direito que cada ser humano possui de tomar decisões, ou seja, o direito de autonomia, sobretudo na área de saúde.

Há um conflito tenso entre médicos e pacientes sobre a questão da autonomia, especialmente no tocante às transfusões de sangue, pois a comunidade médica não concorda com a vontade do paciente, afirmando que o mesmo não possui os conhecimentos necessários sobre o tema, nem entende a gravidade do quadro clínico, bem como encaram de pequena importância as convicções e valores morais, religiosos, dentre outros, do paciente.

Dessa maneira, surgem algumas perguntas: o que fazer se um paciente, geralmente Testemunha de Jeová, nega-se a receber transfusão de sangue? E, se essa recusa se baseia em motivos religiosos? Qual deve ser a postura da classe médica? O profissional médico deve respeitar ou não a liberdade de recusa do paciente?  A questão tem provocado inúmeros debates que vão além do mundo jurídico. Busca-se aqui apontar os fundamentos jurídicos na Constituição de 1988 e na jurisprudência pátria.

Inicia-se analisando o princípio da dignidade da pessoa humana como um fundamento da ordem constitucional vigente no Brasil, invocado por aqueles pacientes, especialmente da religião Testemunha de Jeová, para tomar a decisão de recusar como tratamento as transfusões de sangue, independentemente do estado em que se encontra.


1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da Constituição de 1988, conforme o art. 1º, inciso III. Ao eleger tal princípio como um dos fundamentos da atual Constituição, o legislador explicita o seu papel fundamental como o de fonte normativa dos demais direitos fundamentais. É baseado na dignidade humana que emergem os demais direitos e garantias fundamentais, dando unidade e coerência ao conjunto destes.

O Supremo Tribunal Federal já vem reconhecendo, em vários de seus julgados, a grande importância e influência da dignidade da pessoa humana na aplicação e na proteção dos direitos dos cidadãos[1]. Sem dignidade, nenhum ser humano é capaz de viver normalmente, pois ela interfere no psicológico, abala a moral do indivíduo de tal forma que ele não percebe o valor da vida, não apresenta nenhum interesse em continuar vivo.

Comentado o tema, Martins (2005, p. 63) aduz que:

[...] o expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz, em parte, a pretensão constitucional de transformá-lo em um parâmetro objetivo de harmonização dos diversos dispositivos constitucionais (e de todo o sistema jurídico), obrigando o intérprete a buscar uma concordância prática entre eles, na qual o valor acolhido no princípio, sem desprezar os demais valores constitucionais, seja efetivamente preservado. [...] A dignidade da pessoa humana fornece, portanto, ao intérprete uma pauta valorativa essencial à correta aplicação da norma e à justa solução do caso concreto.

Ademais, a dignidade da pessoa humana constitui, na visão de Hozano (2007), qualidade inerente de cada pessoa humana, que a faz destinatária do respeito e proteção tanto do Estado, quanto das demais pessoas, impedindo que ela seja alvo não só de quaisquer situações desumanas ou degradantes, mas também lhe garantindo direito de acesso a condições existenciais mínimas.

Além disso, nas palavras de Bulos (2005, p. 83), esse princípio abarca três dimensões, sendo estas:

1ª) fundamentadora – núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2ª) orientadora – estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico constitucional; e 3ª) crítica – em relação às condutas. Os valores constitucionais compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado-guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da constituição; e o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade.

Por fim, cumpre observar que Barroso (2011) compreende a dignidade da pessoa humana em duas perspectivas: como autonomia e como heteronomia. Na primeira perspectiva, ela traduz as demandas pela manutenção e ampliação da liberdade humana, respeitados os direitos de terceiros e presentes as condições materiais e psicofísicas para o exercício da capacidade de autodeterminação. Na segunda perspectiva, tem o seu foco na proteção de determinados valores sociais e no próprio bem do indivíduo, aferido por critérios externos a ele.

Em vez de se contraporem, essas perspectivas se complementam na medida em que a formação da personalidade individual é afetada por percepções sociais. Entretanto, à luz do sistema jurídico brasileiro, “é possível afirmar uma certa predominância da dignidade como autonomia, o que significa dizer que, como regra geral, devem prevalecer as escolhas individuais” (BARROSO, 2011, p. 676).

Portanto, a dignidade da pessoa humana enquadra-se melhor como postulado normativo, visto que ele se diferencia dos princípios e regras quanto ao nível e função. Sua previsão na atual Carta Magna, não prevê situações genéricas ou específicas, nem, tampouco, fins a serem atingidos, mas somente dá suporte para a realização dos princípios fundamentais, direitos e garantias existentes em todo o ordenamento jurídico brasileiro.


2. DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Constituição Federal de 1988 está no topo da pirâmide normativa brasileira. De fato, a análise jurídica da questão em tela deve perpassar pelos preceitos fundamentais do sistema jurídico brasileiro. Deste modo, abordaremos os direitos fundamentais à vida (art. 5º, caput), à liberdade de religião, de consciência e de crença (art. 5º, VI) e à privacidade (art. 5º, X). Depois discutiremos a aparente colisão desses direitos e, por fim, apresentaremos o comportamento de parte da jurisprudência pátria sob o assunto.

2.1 Do direito à vida

 O direito à vida está previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sendo entendido, atualmente, não só como o direito de não ser morto por alguma pessoa, seja o Estado ou um particular, mas também de possuir uma vida digna.       Esse direito deve ser visto sob o aspecto da dignidade da pessoa humana, o qual é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o artigo 1º, inciso III da CF/88 e representa o núcleo axiológico em torno do qual transitam todos os direitos fundamentais.

Nas palavras de Pinho (2000, p. 72): “O direito à vida é o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, pois o exercício dos demais direitos depende de sua existência”.             Diante disso, este direito é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos constitucionais.

Além disso, na noção apresentada por Silva (1992, p. 181) este direito tem uma definição mais abrangente, a qual diz:

A vida humana é um processo que vai desde a concepção (para alguns, ou desde o nascimento para outros) e vai se transformando, até que muda de qualidade, deixando de ser vida para ser morte. Se a vida é um processo, ela integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). A vida é intimidade conosco mesmo, é um assistir de si mesmo e tomar posição de si mesmo. Por isso é que a vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos.

Sendo assim, o direito à vida garantido constitucionalmente engloba, não apenas, os elementos materiais físicos e psíquicos, mas também os elementos imateriais, ou seja, os espirituais do próprio indivíduo, considerando-o como uma pessoa livre e consciente de seus direitos e obrigações diante da lei.

Nesse sentido, o desembargador Marcos Antônio Ibrahim da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirma que:

O direito à vida não se resume ao viver... O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, a dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente, filosóficos que tão grave questão encerra. A liberdade de alguém admitir, ou não, receber sangue, um tecido vivo, de outra (e desconhecida) pessoa. (trecho do voto – vencido – do Desembargador Marcos Antônio Ibrahim no Agravo de Instrumento n.º 2004.002.13229, julgado em 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ). 

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Portanto, forçar alguém a receber um tratamento que não deseja é afetar seu direito a uma vida digna e com liberdade de tomar decisões. Ora, alguns talvez achem que negar uma transfusão de sangue seria suicídio. Mas, isso não está correto. Primeiro, porque o suicídio se dá quando alguém decide por livre e espontânea vontade pôr fim à sua própria vida. Quando alguém busca tratamentos alternativos à transfusão de sangue, está-se procurando ajuda médica. Rejeitar certo tipo de tratamento, não significa intencionalmente desejar a morte. Além do mais, a medicina de forma alguma dá garantias concretas de que uma transfusão de sangue será o único meio salvador de vidas, mesmo quando o quadro clínico é grave.

O próprio ordenamento jurídico brasileiro mostra-nos que esse direito não é absoluto, pois há hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. Por exemplo, a CF/88 no art. 5º, XLVII, a, admite a pena de morte em caso de guerra declarada; o Código Penal no art. 23 exclui expressamente a ilicitude da conduta que ocasione morte de outrem quando o ato é praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, bem como no art. 128, I e II, não se pune o aborto quando em risco a vida da gestante ou quando resultante de estupro.

2.2 Do direito à liberdade de religião, de consciência e de crença

O direito à liberdade representa uma conquista dos cidadãos pela manifestação de sua autonomia individual. É garantia positivada em diversas constituições de sistemas democráticos, sendo considerado como o fundamento da democracia, na medida em que possibilita a liberdade de atuação e serve como limite às opressões do Estado.

Leme (2005, p. 1) no seu artigo sobre as transfusões de sangue nos pacientes Testemunhas de Jeová e a colisão de direitos fundamentais, comenta sobre o conceito desse direito, citando as seguintes palavras de Bittar (2003, p. 96): “[...] consiste esse direito em poder a pessoa direcionar suas energias, no mundo fático, em consonância com a própria vontade, no alcance dos objetivos visados, seja no plano pessoal, seja no plano negocial, seja no plano espiritual”.

O direito fundamental à liberdade engloba os direitos à liberdade de religião, de consciência e de crença, os quais são assegurados pela CF/88, no art. 5º, VI, in verbis: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Além disso, esta liberdade está presente em diversos diplomas legais internacionais, sendo os mais destacados: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969); a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1953) e a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base na Religião ou Crença (1981).

Entretanto, a liberdade de religião diferencia-se da liberdade de consciência e da de culto. Os professores Canotilho e Moreira (2007, p. 609) posicionam-se da seguinte maneira:

A liberdade de consciência consiste essencialmente na liberdade de opção, de convicções e de valores, ou seja, a faculdade de escolher os próprios padrões de valoração ético e moral da conduta própria ou alheia. A liberdade de religião é a liberdade de adoptar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa. A liberdade de culto é somente uma dimensão da liberdade religiosa dos crentes, compreendendo o direito individual ou coletivo de praticar atos externos de veneração próprios de uma determinada religião.

Sendo assim, surge uma pergunta: em que violaria a ordem constitucional vigente o paciente que se recusa a receber transfusão de sangue? O advogado constitucionalista Bastos (2000, p. 14) responde da seguinte maneira:

A resposta à esta pergunta não oferece dificuldades: trata-se de uma seara própria de qualquer indivíduo - no caso presente, das Testemunhas de Jeová -, a que não é dado ao Estado penetrar. Aqui não há que se falar em ofensa à ordem pública, nem tampouco em violação aos bons costumes. A própria Constituição declara, como visto, que é assegurado o livre exercício dos cultos religiosos. Ora, o culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc.. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas “proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (parte final do inc. VI do art. 5º).

Dessa forma, a liberdade de religião não consiste apenas em o indivíduo estar autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Dentre estes, destacam-se os cultos religiosos e suas liturgias. Obviamente, isto também abrange a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como na escolha de tratamentos médicos.

2.3 Do direito à privacidade

O direito à privacidade é um direito fundamental garantido pela CF/88, no seu art. 5º, X, in verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Tal direito é uma necessidade básica do ser humano. Este decorre do nosso desejo de levarmos uma vida pacífica, com um mínimo de sossego, tranquilidade e não sermos incomodados em nossos relacionamentos mais íntimos, nem termos expostos fatos da nossa vida privada ao público de maneira desautorizada, bem como de conduzir nossas vidas com o mínimo de interferência, seja por parte de outra pessoa ou do próprio Estado.

Discorrendo sobre o assunto, Ferreira Filho (1994, p. 6) afirma:

O direito à privacidade é dos que reclamam a não-interferência, a não ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades públicas clássicas que impõem um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular do direito que não pode ser violada por quem quer que seja.

Assim sendo, o médico deverá tratar o paciente como um todo, não priorizando a saúde física em detrimento da saúde espiritual e emocional, sendo irrelevante que não compartilhe dos valores do paciente Testemunha de Jeová.

São o corpo, a vida e a saúde do paciente que estão em jogo e não os do médico, como decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quando decidiu que a recusa em receber uma transfusão de sangue é direito de todo paciente dotado de capacidade volitiva e intelectiva plena, merecendo respeito, ante as disposições constitucionais referidas.

2.4 Aparente colisão de direitos fundamentais

A colisão de direitos fundamentais dá-se quando, no momento do exercício destes direitos, há o confronto entre os mesmos ou entre eles e outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente.

Como visto anteriormente, a Constituição Federal de 1988 assegura a todos a liberdade de religião, sendo essa não apenas uma autorização para crer em algo, mas também inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Inclui ainda a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como por exemplo, na escolha de tratamentos médicos.

Foi abordado também o direito à privacidade, que decorre do desejo de levar uma vida com sossego e tranquilidade, não sofrendo interferência nos relacionamentos íntimos por parte do Estado ou de terceiros. Além disso, está inserido nesse direito o anseio de levar uma vida em paz com outrem, consigo mesmo e com sua consciência. Portanto, deve ser respeitada a liberdade de ação e escolha nos mais diversos aspectos da vida.

Analisando o direito à vida, observamos que esse é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos constitucionais. Entretanto, segundo o ministro Celso de Melo[2] “os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto”. Diante disso, o legislador vai além de prover a mera existência biológica do indivíduo, objetiva também resguardar sua intimidade, privacidade, consciência, crença, etc.

As Testemunhas de Jeová, por uma questão de consciência religiosa, recusam transfusões de sangue alogênico. Diante dessas considerações, cumpre agora analisar a seguinte indagação: há conflito entre o direito à vida e entre a liberdade religiosa e o direito à privacidade, no caso das Testemunhas de Jeová?

Neste caso, não se trata propriamente de colisão de direitos fundamentais, pois necessitaria de dois titulares, mas sim, de concorrência de direitos fundamentais, porque o titular dos bens jurídicos é o mesmo.

Sobre isso, Canotilho (1998, p. 1189) esclarece que “a concorrência de direitos fundamentais existe quando um comportamento do mesmo titular preenche os pressupostos de facto [...] de vários direitos fundamentais”. E, dentro desta concorrência, caso ocorra um conflito interno, Ferreira Filho (1994) entende que quem escolherá o direito a prevalecer é o próprio titular de tais direitos.

Portanto, na hipótese em questão – conflito entre o direito à vida e à liberdade – quem valorará tais direitos não será o médico e nem a sociedade, mas, sim, o paciente Testemunha de Jeová, o próprio dono dos bens jurídicos em conflito.

Assim, nem o médico, nem a sociedade podem interferir numa decisão extremamente pessoal. Cada qual possui uma maneira de pensar e agir. O fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana permite que cada cidadão tenha o direito de decidir quais os valores que pretende defender e os riscos que vale a pena correr.

Portanto, a transfusão de sangue forçada, mesmo vindo a proteger a integridade física do paciente, sacrificaria sua consciência e sua felicidade estaria comprometida. Tal ação fere a honra, a intimidade e a privacidade do indivíduo, sendo uma grande afronta à tutela do art. 5º, X, da Carta Magna. Nesse caso, seria apropriado buscar meios mais adequados de solucionar o problema sem agredir e violar o próprio corpo do paciente, como por exemplo, os tratamentos alternativos às transfusões de sangue.

2.5 Jurisprudência

Alguns tribunais brasileiros ainda entendem e defendem que o direito à vida é absoluto e deve ser preservado, não importando em que acredita e vive o paciente, tampouco respeitando o seu direito de ter uma vida digna, baseando-se em suas próprias convicções. Seguem-se abaixo alguns desses entendimentos.

A Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo como relator o Desembargador Sérgio Gischkow Pereira, entendeu que diante de uma emergência ou de iminente perigo de vida é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, e de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos.[3]

Igual posição foi a da Quinta Câmara Cível do Tribunal acima mencionado, tendo como relator o Des. Umberto Guaspari Sudbrack, entendendo que o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares.[4]

Numa pesquisa feita no sítio do Superior Tribunal de Justiça, encontraremos, por enquanto, apenas uma decisão que discorre sobre o assunto[5]. Um desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao julgar em 2007 o pedido de uma instituição hospitalar para que pudesse realizar uma transfusão de sangue contra a vontade de um paciente, que é Testemunha de Jeová, afirmou que o profissional da medicina tem o dever de tratar o internado, em caso de risco de vida, independente de seu consentimento. A apelação não foi julgada, em seu mérito, devido ao entendimento de que carece de interesse processual o hospital, ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue.

A primeira parte da ementa afirma que não cabe ao hospital fazer solicitação judicial para realizar um procedimento contra a vontade do paciente. A continuação da ementa mostra, contudo, um julgamento de mérito velado, ao dispor que não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente.

Esta afirmação está parcialmente correta. A saúde é garantida constitucionalmente em sua universalidade e integralidade, conforme os arts. 196 e 198 da CF/1988. Contudo, a parte final da ementa não coaduna com os preceitos legais: independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Em síntese, o acórdão determina que os médicos possam realizar o que quiserem com seus pacientes, sem que esses possam discordar do procedimento a ser adotado e que questões referentes a procedimentos médicos não devem ser levadas a juízo, pois o dever do médico de tratar tem como consequência o dever do paciente de se deixar tratar.

Entretanto, há posições mais atuais entendendo que a liberdade de crença deve prevalecer. Nesse caso, se fará a ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas não apenas a integridade física, a intelectual e psíquica também devem ser consideradas, ou seja, tutelar uma vida digna. Assim, essas decisões jurisprudenciais asseguram o direito a uma vida digna dos pacientes Testemunhas de Jeová, respeitando a sua recusa por motivos religiosos aos tratamentos que usam transfusões sanguíneas.

Por exemplo, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, tendo como relator o Des. Alberto Vilas Boas, entendeu que quando existir um confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. Além disso, considerou-se que a paciente estava lúcida, capaz e em condições de autodeterminar-se.[6]

Outra decisão em igual sentido foi a da Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo como relator o Des. Cláudio Baldino Maciel, entendendo que estando a paciente lúcida, capaz e expressando sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue, há inexistência do direito estatal de “salvar a pessoa dela própria”, quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Deve-se proteger o direito de escolha, calcado na preservação da dignidade, para que a paciente somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas.[7]

Por fim, a Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, tendo como relator o Des. Sebastião de Arruda Almeida, entendeu que a liberdade de crença, consagrada no texto constitucional não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os preceitos dela, não cabendo à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. Dessa forma, se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do paciente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense tal uso.[8]

Esse posicionamento se torna ainda mais preponderante quando o paciente está consciente e possui condições de discernir os efeitos de sua conduta. Foi assim que decidiu o juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, ao indeferir um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, o qual pediu autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente Testemunha de Jeová. O magistrado considerou que o pedido envolve valores constitucionais que necessitam de avaliação prudente, sob pena de institucionalizar-se uma relação ditatorial entre o Estado e o cidadão. Para ele, as autoridades públicas e o médico têm o poder e o dever de salvar a vida da paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. Entretanto, estando a paciente consciente e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana.

Frisou, também, que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico. A restrição refere-se a qualquer tratamento que envolva a transfusão e, especialmente, quando existem outras formas alternativas de tratamento. No seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos.

Outra decisão importante que reconheceu o direito de recusa à transfusão de sangue por convicção religiosa foi uma decisão da 12ª Câmara Cível do TJRS, tendo como relator o Des. Cláudio Baldino Maciel. Segue-se abaixo a referida decisão:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010)  

Para o desembargador, relator da matéria, não pode o Estado autorizar determinada e específica intervenção médica em uma paciente que expressamente não aceite, por motivo de fé religiosa, o sangue transfundido.

Considerou o magistrado que não se trata de uma criança, incapaz de expressar vontade própria com um nível de consciência juridicamente aceitável, ou se, por outro qualquer motivo, estivesse a pessoa desprovida de capacidade de discernir e de decidir lucidamente a respeito do seu destino. Ao contrário, ressaltou tratar-se de pessoa maior de idade, lúcida e consciente, cuja vontade manifesta e indiscutível não se apresenta sob qualquer aspecto viciada.

Afirmou ainda que não vê como possa ser submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial, tratamento este que não obstante possa lhe preservar a vida, retira dela toda a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido, desnecessária, vazia.

Não pode o Estado, concluiu o relator, intervir na relação íntima da pessoa consigo mesma, nas suas opções filosóficas, especialmente na crença religiosa, constitucionalmente protegida como direito fundamental do cidadão, mesmo que importe risco para a própria pessoa que a professa.

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Sobre o autor
Diego Weber da Nóbrega

Estagiei por 3 anos no TJRN, precisamente na Vara da Família, Infância e Juventude da cidade de Caicó/RN. Estagiei por 6 meses na Defensoria Pública do RN na cidade de Caicó/RN. Sou graduado em Direito pela UFRN e Especialista em Direito Processual Civil pela UCAM. Por fim, fiz um artigo jurídico sobre o direito de recusa das Testemunhas de Jeová com respeito às transfusões de sangue.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Diego Weber. As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3944, 19 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27471. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Curso de Direito da UFRN/CERES – Campus de Caicó/RN, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de Bacharel em Direito sob a orientação do Professor Dr. Orione Dantas de Medeiros.

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