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As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988

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19/04/2014 às 08:23
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3. ALGUNS CASOS EM ANÁLISE

Nos casos segundo os quais pacientes Testemunhas de Jeová estão inconscientes, mas consignam em documento sua vontade, autorizando procuradores a agirem em seu nome, bem como nos casos dos menores de idade, representados por seus genitores, importa ressaltar a posição jurídica e doutrinária.

No primeiro caso, o direito básico à autonomia sobre o corpo não deixa de existir com a perda da consciência do paciente. O paciente, ainda que inconsciente, é um indivíduo dotado de opiniões, sentimentos e convicções que devem ser respeitados. Além disso, o direito de uma pessoa capaz de determinar o curso de seu tratamento médico, conforme seus valores e objetivos não se perdem quando ela fica inconsciente ou de outra maneira é incapaz, se previamente indicou, de posse de suas faculdades mentais, o tratamento desejado.

Por isso, para ver garantido o seu direito de recusar tratamento médico com sangue, quando inconsciente, as Testemunhas de Jeová preparam e portam consigo um documento denominado Instruções e Procuração para Tratamento de Saúde, de amplo alcance legal nos termos do artigo 104, do Código Civil de 2002, pois se trata de uma manifestação de vontade.

Coerentemente, quando um paciente, antes de se tornar incapaz, expressou de modo claro o seu ponto de vista sobre o que ele considera tratamento médico inaceitável, tanto o médico como o hospital devem respeitar a sua decisão, inclusive quando ele já não pode expressar audivelmente a sua vontade.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1995/2012, dispondo sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, regulamenta que o médico deve respeitar e levar em consideração a vontade antecipada do paciente ao tomar decisões que necessita de sua vontade expressa. Por exemplo, o art. 2º, §§1º e 3º estabelece que se o paciente tiver designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico, bem como as diretivas antecipadas dele prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.

Como afirmou o professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Marco Segre, “mesmo no caso de choque, coma, ou outro impedimento à expressão da vontade do paciente, desde que esta (vontade) tenha sido anteriormente documentada, somos da opinião de que o médico não deve afrontá-la”.[9]

Por fim, o Enunciado nº 528 do Conselho da Justiça Federal aprovado na V Jornada de Direito Civil, dispõe que é válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

No segundo caso, há duas situações com posicionamentos diferentes. A primeira é quando o menor não amadurecido é representado pelos pais. A grande maioria dos operadores do direito defende o uso da transfusão de sangue, em desfavor da oposição manifestada pelos pais, considerando tal decisão como abuso do poder familiar. Desse modo, a vida do menor deve ser sempre preservada, tendo o médico que obter do Poder Judiciário, a autorização para a realização da operação.

Sabemos que aos pais, detentores do poder familiar, incumbe o dever de realizar todo o possível para manter a saúde e a vida de seus filhos. Pertence a eles também, indubitavelmente, a iniciativa da formação religiosa até que seus filhos, chegados à idade adulta, possam decidir pela religião a ser por eles seguida e assumir, pessoalmente, as consequências desta opção.

Entretanto, é fácil ver quão diferente é quando os genitores que se importam com o filho, solicitam um tratamento médico de alta qualidade, isento de sangue, de genitores que negligenciam qualquer tratamento médico a seu filho!

Além disso, não há negligência ou qualquer espécie de culpa quando os pais solicitam aos médicos que usem meios alternativos para o tratamento de sangue em seus filhos. Assim, havendo outras vias, a recusa a uma determinada técnica médica pelos pais ou responsáveis, não é suficiente para configurar abuso do poder familiar ou a culpa em qualquer de suas modalidades.

A segunda situação envolve um menor amadurecido e ciente de suas decisões. Muitos doutrinadores e juízes aplicam uma doutrina denominada de Doutrina do Menor Amadurecido (Mature Minor Doctrine). Segundo essa doutrina, considera-se menor amadurecido aquele paciente que, embora não tenha atingido a idade da maioridade civil, é dotado da capacidade de tomar decisões independentes, compreendendo a natureza e as consequências do tratamento médico proposto, podendo aceitá-lo ou recusá-lo.

Isso está coerente com o artigo 12 da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral no dia 20 de novembro de 1989, a qual estabelece que: “Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.”

Além do mais, na legislação brasileira encontramos dispositivos que fornecem subsídio para a referida doutrina. Por exemplo, o art. 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece, ao adolescente a partir de 12 anos, o direito de externar e de realizar suas convicções, sejam elas políticas, de crença religiosa ou de índole totalmente individual; o art. 5º, parágrafo único do CC/02 elenca hipóteses que o menor de 16 anos poderá se emancipar; o menor de 16 anos já pode retirar o título de eleitor e votar, conforme o art. 14, §1º, III, a da CF/88.

Por fim, não podemos esquecer que a Lei nº 8.069/90, a qual regulamenta o ECA, nos seus arts. 15 c/c 16, II e III, diz que a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo, não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível, ouvir o menor na medida de sua maturidade.


4. DO “PATERNALISMO” MÉDICO À AUTONOMIA DO PACIENTE

Até o surgimento da Segunda Grande Guerra, as relações entre médicos e pacientes seguiam o que alguns autores convencionaram chamar de ética hipocrática[10]. Fundada no princípio da beneficência, ela determinava ao médico que assumisse a postura de “protetor do paciente”, justificando-se qualquer medida destinada a restaurar sua saúde ou prolongar sua vida. Esse paradigma, conhecido como “paternalismo” médico, legitimava a intervenção do profissional por seus próprios critérios, mesmo sem a anuência do paciente ou contra sua vontade expressa.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, começou-se a superação desse paradigma. O marco foi o Código de Nuremberg de 1947, destinado a regular as pesquisas com seres humanos. Fundado no princípio da autodeterminação da pessoa, ele estabeleceu o consentimento informado como requisito para a validade ética das experiências médicas.

Com isso, alteraram-se os paradigmas da ética médica: o “paternalismo” e a beneficência cederam lugar à autonomia do paciente como fundamento da bioética. O paciente deixou de ser um objeto no contexto médico e tornou-se um sujeito de direitos fundamentais. Como afirma Barroso (2011, p. 664), “cabe ao paciente anuir ou não com determinado exame ou tratamento; o médico não pode se substituir a ele para tomar essa decisão ou impor qualquer espécie de procedimento, ainda que fundado em critérios técnicos.”

4.1 Princípios da bioética

A bioética sustenta-se em quatro princípios basilares: autonomia, consentimento informado, beneficência e justiça.

O princípio da autonomia ou da autodeterminação, segundo Marini (2005, p. 3), “é aquele que visa reconhecer o direito da pessoa humana de decidir acerca da utilização de determinado procedimento ou tratamento médico, livre de interferência ou pressão externa, levando em conta seus valores mais íntimos.”

De acordo com Sgreccia (2009, p. 183), este princípio “implica tratá-las como sujeitos autônomos – em que por autonomia se entende a capacidade de agir com consciência e sem constrição – e tutelá-las quando a autonomia delas se reduz ou até está ausente.”

Em outras palavras, este princípio concede à pessoa a liberdade de tomar suas decisões sem a interferência ou a imposição de outros, baseando-se em suas convicções bem alicerçadas. Dworkin (2003, p. 319) comenta o seguinte:

Nos contextos médicos, essa autonomia está frequentemente em jogo. Por exemplo, uma Testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstância desse tipo.

O jurista alemão Roxin (2008, p. 202), seguindo essa mesma linha de pensamento, afirma:

Em tais situações a questão jurídica é em princípio clara. Não haverá punibilidade, porque não é permitido tratar um paciente contra a sua vontade. Se um canceroso se recusa a deixar-se operar (como, por exemplo, o caso do penalista Peter Noll, muito discutido e também documentado pela literatura), a operação não poderá ser feita. A vontade do paciente é decisiva, mesmo nos casos em que um juízo objetivo a considere errônea, ou que seja irresponsável aos olhos de muitos observadores. Também quando a mãe de quatro filhos proíbe aos médicos, por motivos religiosos, que lhe ministrem uma transfusão de sangue que lhe salvaria a vida – este caso realmente ocorreu – devem os médicos curvar-se e deixar a mulher morrer.

Muitos argumentam que forçar uma transfusão de sangue num paciente seria uma defesa ao “bem-estar da coletividade”, mas tal raciocínio é uma afronta ao princípio em análise e à liberdade de decisão do próprio paciente, pois como admite Fioravante (2010, p. 39), “o princípio da autonomia é justamente o individual e não o coletivo, ou seja, é a ideia de cada um possuindo o direito de cuidar de si. Se prevalecer o desejo do coletivo, a autonomia torna-se inválida.”

O corolário imediato desse princípio é a obrigação do consentimento informado ou consentimento conscientizado aos tratamentos médicos por parte do sujeito ou de quem pode legalmente representá-lo. Leiria (2009, p. 13) corrobora:

O princípio do consentimento esclarecido (ou informado) requer que o médico, antes de qualquer intervenção terápica ou cirúrgica, esclareça ao paciente os benefícios e riscos correspondentes, bem como informe acerca de alternativas ao tratamento proposto, possibilitando, assim, que o doente escolha o tratamento que reputar mais conveniente.

Tristam Engelhardt Júnior (2004, p. 158) afirma que:

O princípio do consentimento expressa a circunstância de que a autoridade para resolver disputas morais em uma sociedade pluralista, secular, só pode ser obtida a partir do acordo dos participantes, já que não deriva de argumentos racionais ou da crença comum. Portanto, a permissão ou consentimento é a origem da autoridade, e o respeito ao direito dos participantes de consentir é a condição necessária para a possibilidade de uma comunidade moral. O princípio do consentimento proporciona a gramática mínima para o discurso moral secular.

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Portanto, o direito ao livre e informado consentimento compreende o direito de consentir para participar de um tratamento sem coerção, sem enganação e com competência, assim como o de se retirar do tratamento, por completo ou em parte.

Tal princípio está presente tanto no Código de Ética Médica, nos seus artigos 22 e 34[11] quanto no Código Civil de 2002, no seu art. 15, in verbis: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Cumpre salientar que esse artigo deve ser interpretado, conforme a justificativa do Enunciado nº 533 da CJF, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, na perspectiva do exercício pleno dos direitos da personalidade, especificamente no exercício da autonomia da vontade. O “risco de vida” será inerente a qualquer tratamento médico, em maior ou menor grau de frequência. Por essa razão, não deve ser o elemento complementar do suporte fático para a interpretação do referido artigo.

Além do mais, a jurisprudência assim se manifestou:

EMENTA: INTERVENÇÃO CIRÚRGICA. CONSENTIMENTO INFORMADO INOBSERVÂNCIA DO ART. 15 CC/02. PRECEDENTES. DANO MATERIAL. PERDA DA CHANCE. DANO MORAL CONFIGURADO. O paciente deve participar na escolha e discussão acerca do melhor tratamento tendo em vista os atos de intervenção sobre o seu corpo. Necessidade de informações claras e precisas sobre eventual tratamento médico, salientando seus riscos e contraindicações, para que o próprio paciente possa decidir, conscientemente, manifestando seu interesse através do consentimento informado. No Brasil, o Código de Ética Médica há muito já previu a exigência do consentimento informado ex vi arts. 46, 56 e 59 do atual. O CC/02 acompanhou a tendência mundial e positivou o consentimento informado no seu art. 15. A falta injustificada de informação ocasiona quebra de dever jurídico, evidenciando a negligência e, como consequência, o médico ou a entidade passa a responder pelos riscos da cirurgia não informados ao paciente. A necessidade do consentimento informado só poderá ser afastada em hipótese denominada pela doutrina como privilégio terapêutico, não ocorrentes no presente caso. (REsp 1035346. Publicação em 24.03.2008. Relator Ministro Francisco Falcão)

O terceiro princípio basilar da bioética é o da beneficência, o qual direciona o médico a intervir sempre de modo benéfico para o paciente. Mas, isso não significa que ele fará o que achar melhor para aquele segundo seu julgamento e habilidades. Pelo contrário, compartilhará com o paciente a responsabilidade e a análise do melhor tratamento, respeitando a decisão tomada por aquele. E, no caso em análise, há boas técnicas e tratamentos isentos de sangue que vem sendo desenvolvidos graças a essa atitude compreensiva e altruísta de vários profissionais da medicina.

O último princípio basilar da bioética é o da justiça, que conforme Marini (2005, p. 2), “justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las.”

Dessa forma, os pacientes Testemunhas de Jeová cumprem sua parte, buscando alternativas às transfusões de sangue e comunicando à classe médica. Por sua vez, a classe médica faz sua parte por interessar-se, estudando-as e ampliando os tratamentos disponíveis para qualquer pessoa e, por fim, o Estado em vez de impor um determinado tratamento ou terapia ao paciente, possibilita o acesso às alternativas, zelando pela saúde pública.

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Sobre o autor
Diego Weber da Nóbrega

Estagiei por 3 anos no TJRN, precisamente na Vara da Família, Infância e Juventude da cidade de Caicó/RN. Estagiei por 6 meses na Defensoria Pública do RN na cidade de Caicó/RN. Sou graduado em Direito pela UFRN e Especialista em Direito Processual Civil pela UCAM. Por fim, fiz um artigo jurídico sobre o direito de recusa das Testemunhas de Jeová com respeito às transfusões de sangue.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Diego Weber. As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3944, 19 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27471. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Curso de Direito da UFRN/CERES – Campus de Caicó/RN, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de Bacharel em Direito sob a orientação do Professor Dr. Orione Dantas de Medeiros.

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