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As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988

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19/04/2014 às 08:23
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5. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

A organização atual das Testemunhas de Jeová começou no fim do século 19. Naquela época, um pequeno grupo de estudantes da Bíblia perto de Pittsburgh, Pensilvânia, EUA, começou uma análise sistemática da Bíblia. Eles comparavam as doutrinas ensinadas pelas igrejas com o que a Bíblia apresenta. Eles começaram a publicar suas conclusões em livros, jornais e na revista que hoje é chamada A Sentinela Anunciando o Reino de Jeová.

Um dos membros desse grupo de estudantes da Bíblia, chamado Charles Taze Russell, embora tenha tomado à dianteira na obra educativa bíblica naquela época e tenha sido o primeiro editor de A Sentinela, não foi o fundador de uma nova religião. O objetivo de Russell e dos outros Estudantes da Bíblia, como o grupo era então conhecido, era divulgar os ensinamentos de Jesus Cristo e seguir o modelo deixado pelos cristãos do primeiro século. Visto que Jesus Cristo é o fundador do cristianismo, elas o consideram como sendo ele o fundador de sua organização.

Segundo Araújo (2004), o surgimento delas na cidade de Caicó/RN ocorreu por volta de 1972, quando um casal veio à cidade, mas logo foi embora. Depois deles, vieram duas senhoras chamadas Etelvina e Damiana, as quais impulsionaram o crescimento deste grupo religioso. Por fim, a partir de 1979, construiu-se o primeiro Salão do Reino (local onde se reúnem as Testemunhas de Jeová), o qual foi vendido após alguns anos e, em 2004, houve a construção de um novo Salão do Reino que perdura até hoje.

5.1 A transfusão de sangue e a fundamentação religiosa

As Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue total ou de seus quatro componentes primários – a saber, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma. Elas também não doam sangue nem o armazenam para seu próprio uso numa possível transfusão.

Um dos motivos que levam as Testemunhas de Jeová a recusarem as transfusões de sangue é que elas acreditam que a Bíblia Sagrada, ou a Palavra de Deus, proíbe tomar sangue por qualquer via.

A posição delas se baseia numa lei fundamental que Deus deu à humanidade. Logo após o Dilúvio, Deus permitiu que Noé e sua família comessem carne de animais. Ele só impôs esta restrição: não deviam consumir sangue, conforme o relato do livro bíblico de Gênesis, capítulo 9, versículos 3 e 4. Todos os humanos de todas as raças descenderam de Noé, de modo que toda a humanidade está sob a obrigação de obedecer a essa lei. Ela nunca foi revogada.

Mais de oito séculos depois, Deus repetiu essa lei à nação de Israel, dizendo que o sangue é sagrado, que representa a alma, ou a própria vida, conforme o relato do livro bíblico de Levítico, capítulo 17, versículo 14. Mais de 1.500 anos depois, os apóstolos cristãos ordenaram a todos os cristãos que ‘persistissem em se abster de sangue’, conforme o relato do livro bíblico de Atos capítulo15, versículo 29.

Sendo assim, para elas, é totalmente impossível se abster de sangue e, ao mesmo tempo, introduzi-lo no corpo por meio de uma transfusão. Portanto, diante da explicação bíblica acima exposta, elas entendem que, embora haja bons motivos médicos para evitar as transfusões de sangue, o mais importante é que Deus as manda abster-se do sangue porque ele representa a vida, que é algo sagrado para Ele.

Outros motivos é que, além dos riscos nas transfusões de sangue, existem tratamentos alternativos que a maioria das pessoas desconhece e os mesmos, como será demonstrado nas considerações finais, têm-se mostrado como sendo mais simples, seguros, eficazes e eficientes em procedimentos cirúrgicos, situações emergenciais; além do mais, estão disponíveis para qualquer paciente que assim o requeira.

5.2 Riscos das transfusões de sangue

A repórter especial da Revista Época e colunista da Época On Line, Cristiane Segatto, publicou um artigo intitulado “Menos sangue, por favor” em 10 de janeiro de 2011. Neste artigo, ela comentou um trabalho desenvolvido pela cardiologista brasileira Ludhmila Abrahão Hajjar sobre o excesso de transfusões de sangue ocorrido pelo motivo de que se a quantidade de hemoglobina cai a níveis inferiores a 10 gramas por decilitro de sangue, é necessário compensar essa perda durante o procedimento.

Essa cardiologista realizou um estudo com 512 pacientes do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. Eram doentes graves, com perfis semelhantes (tinham diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca) que foram submetidos a cirurgias cardíacas. Metade do grupo recebeu sangue quando o nível de hemoglobina caiu a 10 g/dL. A outra metade só passou pela transfusão quando o índice ficou abaixo de 7 g/dL. Qual foi o resultado? Aqueles que receberam menos sangue se recuperaram mais rapidamente daqueles que receberam mais. Outro resultado foi que a transfusão aumenta em 20% a taxa de mortalidade e de complicações clínicas a cada bolsa de sangue recebida.

Além disso, o excesso de transfusões acarreta três graves problemas. O primeiro é o risco de que o sangue esteja infectado por bactérias ou vírus, pois nem todos os bancos de sangue fazem o teste rápido do HIV e se o doador estiver na janela imunológica[12], o paciente poderá ser infectado. O segundo problema está relacionado aos custos, pois uma bolsa de sangue com 350 mililitros custa de R$300,00 a R$800,00. E o terceiro problema é a falta de doadores.

O trabalho dessa cardiologista provocou mudanças no ponto de vista dos médicos daquele instituto. O Dr. Noedir Stolf, chefe do departamento de cirurgia cardíaca, disse: “Nossa conduta agora é evitar a transfusão.” Acrescentou ele: “Nenhum outro estudo, porém, havia chegado a conclusões sólidas como esse.”

Falando ainda sobre a terapia transfusional, Guzzoni (2003, p. 17) discorre o seguinte:

Apesar da crescente conscientização dos perigos do sangue e da intenção de racionalizar o seu uso, estudos revelam que a prática clínica e a literatura médica mostram que a transfusão, como procedimento terapêutico, é principalmente um assunto de costume fundado em suposições empíricas e conjecturais, pois a utilização excessiva dos componentes sanguíneos é atribuída às ideias errôneas sobre seu valor, à falta de conhecimento das situações em que seu emprego não é justificável e à apreciação equivocada da incidência e da magnitude de suas eventuais complicações.

Ademais, Ligiera (2009, p. 165) sintetiza os riscos decorrentes das transfusões de sangue da seguinte maneira:

Ela (a transfusão) também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo. Em recente e conceituado trabalho científico, Herbert et al comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sanguíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva. “Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias. Primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológicas, imediatas ou tardias e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas. Alguns exemplos de doenças infecciosas e parasitárias, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais são: a AIDS (sigla, em inglês, para ‘síndrome da imunodeficiência adquirida’, causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a tripanossomíase (Doença de Chagas), a malária, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (vírus da leucemia e linfoma de células T Humano) e por outros protozoários e bactérias.

[...]

Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a terapêutica transfusional, tais como, erros humanos operacionais (por exemplo, transfusão da tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, por exemplo, a supressão do sistema imunológico do paciente, aumentando as chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões.

Corroborando o exposto acima, Marini (2005, p. 1) apresenta um comentário que uma publicação médica explanou extensivamente os riscos envolvidos nas transfusões da seguinte maneira:

As transfusões são perigosas. Podem causar reações do tipo hemolítico, leucoaglutinante e alérgico [...] O perigo principal é a infecção induzida pela transfusão [...] o maior perigo é a transmissão da hepatite não-A, não-B. Calcula-se que de 5% a 15% dos doadores voluntários são portadores deste vírus. Os testes laboratoriais prévios à doação, para detectar os anticorpos contra o"core" da hepatite B, permitem detectar entre 30% e 40% dos portadores do vírus da hepatite não-A, não-B [...] A vasta maioria dos casos de hepatite pós-transfusional são subclínicos, visto que a enfermidade evolui durante vários anos. Uma alta porcentagem de receptores infectados contraem cirrose […].[13]

Por fim, o Manual Técnico de Hemovigilância da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nas páginas 85 a 88 apresenta um quadro com um resumo das reações transfusionais imediatas e condutas gerais para o atendimento. No total, há 17 situações em que podem ocorrer reações por causa das transfusões, sendo niveladas quanto à gravidade. Vale mencionar que, em alguns deles, a incidência é desconhecida e, em outros, não há métodos de prevenção. Portanto, surge uma pergunta: será que a comunidade médica deve correr o risco de “salvar a vida” do paciente a todo custo ou deve ser respeitado o direito do paciente que em plena consciência e liberdade deseja não arriscar sua preciosa vida ao se submeter a esse procedimento?


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, percebemos que o direito fundamental das Testemunhas de Jeová de recusar transfusões de sangue está garantido na Constituição Brasileira de 1988, precisamente no art. 1º, III c/c art. 5º, caput e VI, mas para exercitar um direito fundamental, é necessário garantir uma vida digna e com liberdade de escolha.

O trabalho mostrou que o princípio da dignidade da pessoa humana foi eleito pela Constituição de 1988 como a fonte normativa dos demais direitos fundamentais, do qual emergem os demais direitos e garantias fundamentais, dando unidade e coerência ao conjunto destes. Em outras palavras, o direito à vida, à liberdade de religião, de consciência e de crença e à privacidade precisam ser exercidos em consonância com este princípio para que um direito não se torne absoluto nem mine a dignidade do ser humano.

Como observado, não há uma colisão de direitos fundamentais, mas sim, uma concorrência de direitos fundamentais, pois o titular do direito à vida e do direito à liberdade de religião é o mesmo. E dentro desta concorrência, caso ocorra um conflito interno, quem escolherá o direito a prevalecer é o próprio titular de tais direitos.

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Apesar de muitos juízes entenderem que o direito à vida é absoluto, devendo ser resguardado em todas as circunstâncias, alguns tribunais estão mudando o caminho percorrido pela jurisprudência e decidindo pela preservação do direito do paciente quando está consciente e apto para entender as consequências de suas decisões.

E mesmo que o paciente esteja inconsciente, tem validade legal a manifestação de vontade antecipada do paciente, por escrito, recusando determinado tratamento médico. Isto acontece em função da manifestação de vontade, observando, apenas, os requisitos de validade, ou seja, agente capaz, objeto não proibitivo pelo direito e forma prescrita em lei. No caso presente, cumpre acentuar que não se trata de objeto proibido pelo Direito, antes sendo decorrência direta do princípio da liberdade. Contudo, como medida preventiva, cumpriria ao paciente fornecer uma declaração própria de que está ciente de sua situação e das consequências que sua opção eventualmente possa acarretar. Ademais, essa antecipação de vontade tem respaldo legal tanto na Resolução CFM nº 1995/2012 quanto no Enunciado nº 528 da CJF, aprovado na V Jornada de Direito Civil.

Sabemos ainda que o poder familiar inclui a tomada de decisões que envolvem toda a vida dos filhos menores sob sua tutela. Não se pode negar, pois, essa atitude pelos pais, desde que os filhos sejam atingidos pela incapacidade jurídica para decidirem por si mesmos e mesmo que, incapazes, mas, tendo maturidade para tomar decisões, devem ser ouvidos. A decisão sobre não submeter-se a determinado tratamento médico, como visto, é perfeitamente legítima e, assim, inclui-se, como qualquer outra, no âmbito de decisão dos pais quando tratar-se de filho menor de idade.

As Testemunhas de Jeová não desejam dispor da própria vida. Elas desejam viver, aceitam todos os tratamentos médicos, exceto os tratamentos com transfusão de sangue, buscam assistência médica e desejam um tratamento adequado a fim de não ferir suas convicções religiosas.

No passado, a comunidade médica costumava encarar as opções terapêuticas a transfusões de sangue como extremistas, ou até mesmo suicidas. Mas, isso tem mudado nos últimos anos. No artigo intitulado “Por que vocês não aceitam transfusão de sangue?”, as Testemunhas de Jeová trouxeram um dado interessante. Em 2004, um artigo publicado numa revista médica declarou que “muitas das técnicas desenvolvidas para pacientes Testemunhas de Jeová em breve se tornarão procedimentos-padrão”.[14] Um artigo na revista Heart, Lung and Circulation (Coração, Pulmão e Circulação) disse em 2010 que “a cirurgia sem sangue não deveria se limitar apenas às Testemunhas de Jeová, mas fazer parte integral da prática cirúrgica básica”.

Diante disso, as Testemunhas de Jeová têm procurado métodos alternativos e buscado se informar cada vez mais sobre tais métodos. De modo que lhes foi fornecido um DVD com um documentário de médicos, expondo quais são os métodos alternativos, com o seguinte título “Alternativas à Transfusão de Sangue: série de documentários” produzido pela Watchtower Bible and Tract Society of New York e Distribuído pela Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

O documentário mostra como métodos alternativos: o uso de eletrocautérios, em vez de bisturis que ajudam cirurgiões ao se depararem com hemorragias. Há instrumentos não evasivos que permite ao cirurgião ver o interior do corpo, diminuindo as incisões cirúrgicas. Também existem drogas e aplicação tópica que ajudam a prevenir a perda de sangue. Outro método é a cola de fibrina. Há inúmeras técnicas de hemodiluição e reinfusão. Se houver perda de sangue, recorre-se a uma máquina chamada recuperação intraoperatória de célula. E, como estimulante para o corpo produzir mais sangue, existe um hormônio chamado eritropoietina (EPO).

As informações deste DVD confirmam as palavras de Diniz (2002, p. 210) ao afirmar que “a Testemunha de Jeová, ao escolher tratamento isento de sangue, não exerce o direito de morrer, mas o de optar por um tipo de tratamento médico.” Além disso, ela discorre também sobre alguns dos métodos alternativos mostrados no conteúdo do documentário, atestando a eficácia e a eficiência desses métodos na aplicação médica.

Esta decisão de recorrer aos tratamentos alternativos às transfusões de sangue, não passa despercebida pela mídia. Por exemplo, no artigo intitulado “Pacientes Testemunhas de Jeová se recuperam mais rápido”, as Testemunhas de Jeová na Austrália apresentaram um comentário de um jornal chamado The Sydney Morning Herald.

Este jornal, no dia 02 de outubro de 2012, afirmou que “os pacientes Testemunhas de Jeová – que recusam transfusões de sangue por motivos religiosos – na verdade se recuperam mais rápido que os outros pacientes”. Para isso, citou as palavras do professor clínico James Isbister, da Faculdade de Medicina da Universidade de Sydney, o qual disse que elas receberam um tratamento de mais qualidade, pois os médicos procuraram evitar perda de sangue, resultando num índice de sobrevivência melhor e um período de internação no hospital ou na UTI menor em comparação com pessoas que receberam transfusão de sangue durante a cirurgia.

Portanto, o direito de escolha a tratamento médico isento de sangue, por razões de consciência e convicções religiosas, possui pleno amparo legal e científico, devendo ser respeitado não só pela classe médica, mas por todos, pois além da legislação ser favorável à autonomia do paciente, as técnicas alternativas à transfusão de sangue existem e estão disponíveis. Ademais, esse não é um direito apenas das Testemunhas de Jeová, mas de todo cidadão brasileiro.

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Sobre o autor
Diego Weber da Nóbrega

Estagiei por 3 anos no TJRN, precisamente na Vara da Família, Infância e Juventude da cidade de Caicó/RN. Estagiei por 6 meses na Defensoria Pública do RN na cidade de Caicó/RN. Sou graduado em Direito pela UFRN e Especialista em Direito Processual Civil pela UCAM. Por fim, fiz um artigo jurídico sobre o direito de recusa das Testemunhas de Jeová com respeito às transfusões de sangue.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Diego Weber. As testemunhas de Jeová e o direito fundamental de recusa às transfusões de sangue na Constituição brasileira de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3944, 19 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27471. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Curso de Direito da UFRN/CERES – Campus de Caicó/RN, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de Bacharel em Direito sob a orientação do Professor Dr. Orione Dantas de Medeiros.

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