O juiz das garantias: avanços e tropeços para uma conformidade constitucional

11/04/2014 às 17:40
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Analisa o juiz das garantias previsto no Projeto 8045/2010, novo Código de Processo Penal em trâmite no Congresso, destacando avanços e tropeços para uma conformidade com a base constitucional do processo.

INTRODUÇÃO

Entre as inovações almejadas pelo anteprojeto de Código de Processo Penal em trâmite no Congresso Nacional encontra-se a previsão do juiz das garantias com a tarefa de guardar a legalidade das medidas cautelares e salvaguardar direitos e garantias fundamentais.

Embora inegáveis avanços no sentido de maior proteção aos direitos e garantias individuais com a efetiva positivação do juiz das garantias, ainda sim deve ser alvo de reflexões. Assim este breve ensaio tem como objetivo analisar a conformidade do juiz das garantias com as bases constitucional do processo.

Nesse sentido, restou evidenciado que o anteprojeto perdeu a oportunidade de consubstanciar um avanço secular ao reafirmar a crença no juiz e retirar a possibilidade das partes de contribuir para o convencimento sobre a decisão.

JUIZ DAS GARANTIAS, MEDIDAS CAUTELARES, CONTRADITÓRIO E CONSTITUIÇÃO

Para tratar do juiz das garantias o texto do Anteprojeto reservou os artigos 15, 16, 17 e 18, Capítulo II, inserido no Título II, intitulado da Investigação Criminal, por sua vez incluído no Livro I, da Persecução Penal.

Há um deslocamento de um magistrado para a fase de investigação, que é de atuação predominante da polícia judiciária, presidente do inquérito, inobstante ocorra à participação do Ministério Público. Contudo, a competência da investigação não mistura com a função do judiciário, a este incumbe apreciar a legalidade das medidas solicitadas no curso da investigação que intervém na esfera particular do indivíduo, tal como é a prisão cautelar.

Isto é, caberá ao juiz das garantias o controle da legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos individuais e a atuação abrange todas as infrações penais não definidas como de menor potencial ofensivo.

Proposta a ação penal encerra-se a competência do juiz das garantias ficando impedido de participar do processo penal, caso efetivamente tenha proferido alguma decisão. Outro magistrado passa atuar, mas não fica vinculado às decisões tomadas, podendo dar outro rumo às decisões proferidas na fase preliminar.

Um juiz posicionado nesta fase de instrução não é novidade no mundo jurídico. Por exemplo, na Alemanha o juiz da investigação, ao lado do Ministério Público é responsável pelo controle da legalidade (FERNANDES, 1999).

No Brasil o anteprojeto enumerou a competência do juiz das garantias em quatorze incisos. Sem a intenção de esgotar toda análise foca-se na competência para decidir sobre o pedido de medidas cautelares (art. 15, V). Pois são através das medidas cautelares que o Estado intervirá com maior rigor na esfera da liberdade individual antes de uma sentença penal condenatória, assegurado todas os direitos e garantias processuais.

A finalidade das medidas cautelares é servir de instrumento para se alcançar o resultado da persecução penal ou a reparação civil. Podem ser impostas somente quando indispensáveis, quando houver a presença do fumus boni iuris e o periculum in mora.

De acordo com o texto apresentado ao Congresso as medidas cautelares dividem em reais e pessoais. As reais recaem sobre os bens e classificam em quatro modalidades (art. 599). Por sua vez, as cautelares pessoais incidem sobre a pessoa, física ou jurídica e são compostas por um acervo de quinze medidas (art. 521). São aplicáveis somente às infrações que culminam pena privativa de liberdade, isolada ou cumulativamente a outras penas (art. 522).

Com efeito, as medidas cautelares conforme tratamento dispensado no anteprojeto inovará o ordenamento jurídico e poderá trazer ganho em termos de garantia de direitos fundamentais.

Entretanto o problema enseja na decisão que decreta a medida cautelar. Isto porque, o ato representa a escolha do juiz, das garantias, que faz de forma solitária, sem a participação da pessoa a ser afetada pela decisão (BARROS, 2008), vigora a velha presunção eterna de fuga.

Ao manifestar pela decretação de alguma medida, no curso da investigação a decisão do juiz das garantias recai apenas sobre a representação da autoridade policial ou do requerimento do Ministério Público ou mesmo de ofício na hipótese de substituição de uma medida por outra.

Nessa esteira, insta indagarmos se esse modelo adotado pelo anteprojeto se ergue conforme a base constitucional do processo e mais que isso, o mero deslocamento de um magistrado para exercer a função do juiz das garantias é suficiente para garantir os direitos fundamentais da parte a ser afetada pela decisão do pedido de medida cautelar.

Veja o seguinte caso hipotético, bastante comum aos operadores do direito. Os advogados de defesa pedem a concessão da liberdade em face da ausência nos autos dos requisitos que autorizam a manutenção da custódia do acusado. Por derradeiro, o juiz denega o pedido, pois vislumbra no caso a necessidade de assegurar a ordem pública. Considere, entretanto, que o julgador escolheu a opção errada e manteve a prisão do cidadão sem a necessidade da medida, pois nos autos existiam provas da existência dos requisitos necessários para a decretação da prisão, nesse sentido o juiz agiu ilegalmente e violou frontalmente o direito a liberdade, dentre outros.

Agora considere o mesmo caso citado, sob a égide do anteprojeto, ou seja, já foi positivado e os preceitos normativos passaram a ser aplicados. Aquele mesmo magistrado é designado para desempenhar as funções do juiz das garantias, portanto, decidir sobre as medidas cautelares. Os advogados de defesa pedem a liberdade provisória, pergunta-se: o direito à liberdade seria violado ou não?

Para a proposta apresentada de um juiz com a função de controle de legalidade e garantia de direitos fundamentais na fase preliminar de investigação, com balizas constitucionais, em que pese certos avanços, a figura do juiz das garantias não é suficiente. Ao julgar pelo nome incorre-se no risco de compreender o instituto equivocadamente.

Longe de argumentos apaixonados o anteprojeto serve para prevalecer um discurso desfocado com o texto constitucional, que garante o contraditório a todos envolvido em processo administrativo ou judicial.  Por outro lado, mantém a crença, a fé na divindade da figura do juiz.

Primeiramente é primordial desprender de regras, conceitos e princípios erguidos fora do contexto do Estado democrático e constitucional. É na teoria de Fazzalari (1992) o ganho de contornos democráticos, ao separar processo do procedimento.

O procedimento são atos de preparação para o provimento, para tanto, constituiu de sequencia de normas, atos e situações jurídicas e posições subjetivas, sendo uma norma pressuposto para a subsequente. Por sua vez, o processo é procedimento, entretanto, realizado em contraditório, como garantia de participação das partes em simétrica paridade.

O engajamento desta teoria é de suma importância para libertar o juiz da tarefa de decidir solitariamente. Nas palavras de Cattoni (2000, p. 165): “processo, portanto, é procedimento discursivo, participativo, que garante a geração de decisão participada”.

Em segundo momento, para alcançar esse espaço discursivo entre as partes, a fim que o destinatário da norma figure também como seu próprio criador (HABERMAS, 1997) o juiz das garantias obrigatoriamente deve passar pelo filtro constitucional, e para tanto, ser erguido consoante os princípios constitucionais do processo, sustentado pelo contraditório, ampla argumentação, terceiro imparcial e fundamentação das decisões (BARROS, 2008).

O anteprojeto, de certo modo, deu um passo importante neste sentido, face a previsão do art. 519, segundo o qual, não se tratando de caso de urgência ou perigo da ineficácia da medida cautelar, a parte interessada será intimada.

Entretanto, uma análise detida é necessária para demonstrar que essa inovação não foi longe. Não basta prevê a participação da parte afetada se o juiz ao decidir está livre para fazer sua própria escolha.

O verdadeiro controle de legalidade e garantia de direitos só poderá ser feito, primeiro, pelas partes, segundo, se houver processualidade (LEAL, 2005) na fundamentação do juiz das garantias ao decidir a respeito das medidas cautelares, e, terceiro, que essa processualidade exija a fundamentação com base no contraditório. Portanto, a garantia se desloca para o campo da fundamentação.

De fato, neste ponto também o anteprojeto deu um passo adiante ao disciplinar a fundamentação que deve atender requisitos. Assim ao decretar, prorrogar, substituir ou denegar uma medida cautelar, a fundamentação deverá conter:

1)o fundamento legal da medida;

2)a indicação dos indícios suficiente s de autoria e materialidade delitiva;

3)as circunstâncias fáticas que justificam a adoção da medida e considerações sobre a estrita necessidade;

4)as razões que levaram à escolha, como também a aplicação cumulativa, se necessária;

5)no caso de decretação de prisão, os motivos pelos quais o juiz considerou insuficiente ou inadequada a aplicação de outras medidas cautelares pessoais;

6)a data de encerramento do prazo de duração da medida;

7)a data para reexame, quando obrigatório;

Apesar dos significativos avanços ao estabelecer os requisitos da fundamentação o anteprojeto perdeu a chance de dar um “pulo” importante em termos de adequação do juiz das garantias nas bases constitucionais do processo, bem como efetivar um instituto de garantia das liberdades constitucionais, justamente porque não inseriu no rol do art. 519 a obrigatoriedade do magistrado de observar o contraditório.

Preleciona Nunes (2007) que o contraditório deve ser compreendido como garantia da não surpresa, que impede do juiz proferir uma decisão fruta de sua subjetividade, surpreendendo às partes por uma escolha não prevista à vista do processo. No mesmo sentido Barros (2008):

A fundamentação da decisão é indissociável do contraditório, visto que garantir a participação dos afetados na construção do provimento, base da compreensão do contraditório, só será plenamente garantida se a referida decisão apresentar em sua fundamentação a argumentação dos respectivos afetados, que podem, justamente pela fundamentação, fiscalizar o respeito ao contraditório e garantir aceitabilidade racional da decisão. (BARROS, 2008, p. 135)

Ao não incluir a obrigatoriedade de observação do contraditório o anteprojeto abre espaço para cair novamente ao campo da subjetividade do julgador, que poder primeiro tomar a decisão balizada por pré-conceitos e depois fundamentar sua escolha, adequando aos dispositivos mencionados e desconsiderando a argumentação da parte que será afetada.

CONCLUSÃO

O anteprojeto de Código de Processo Penal em trâmite no Congresso Nacional prevê o juiz das garantias com o intuito de apreciar o pedido de medidas cautelares, resguardando a legalidade e para salvaguardar direitos e garantias individuais.

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Sem dúvida trás avanços em relação à velha e inadequada metodologia do Código de Processo de 1941 e alterações posteriores sobre as medidas cautelares, sobretudo a de prisão. Entretanto, a questão enseja diante da fundamentação que decreta a medida cautelar.

A ausência de processualização que garanta a observância do contraditório retira a possibilidade de participação dos interessados na decisão da medida cautelar o que mantém a velha crença na autoridade do juiz. Aliás, seja o magistrado investido na função do juiz das garantias, seja investido no juiz conforme a legislação em vigor nenhum deles está autorizada a atuar violando direitos e garantias individuais.

Enfim, o juiz das garantias demonstra-se novo rótulo melhorado, entretanto, colado ao velho recipiente.

REFERÊNCIAS

BARROS, Flaviane de Magalhães. A fundamentação das decisões a partir do modelo constitucional do processo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre, v. 6, 2008, p. 131-148.

BRASIL, Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo penal. In. BRASI. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal – Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas, 2009, 160p.

DINAMARCO, Cândido R. A instrumentalidade do processo. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. 413p.

FERNANDES. Fernando Andrade. O processo como instrumento de política criminal. 1999. 798f. Dissertação (Doutorado em Direito) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999.

GALUPPO, Marcelo Campos (Org.). O Brasil que queremos: reflexões sobre o Estado democrático de direito. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2006. 735 p. 

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. 219 p.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008. 281 p.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. O processo constitucional como instrumento da jurisdição constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.3, n.5 e 6 , p.161-170, 1º e 2º sem. 2000.

LEAL, Rosemiro Pereira. Ausência de processualidade jurídica como morte pelo direito. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.7,n.13 e 14 , p.164-171, 1º e 2º sem. 2004.

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Sobre o autor
Warlen Soares Teodoro

Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na linha de pesquisa o Processo na Construção do Estado Democrático de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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