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Lei do Juizado Especial Federal e os delitos de menor potencial ofensivo

01/03/2002 às 00:00
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Em data de 13 de janeiro de 2002 iniciou-se a vigência da Lei nº 10259, instituidora dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, encetando discussões acerca da extensão do art. 2º parágrafo único do citado diploma legal à justiça estadual, que admitiu como delitos de menor potencial ofensivo todos aqueles em que a lei comine pena máxima não superior a dois anos.

De um lado, abalizadas opiniões preconizaram que referida lei federal ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo delineado pelo art. 61 da Lei nº 9099-95, em reverência ao princípio da igualdade (Marcio Tomas Bastos, Alberto Silva Franco, Luiz Flávio Gomes, em www.direitocriminal.com.br, em 27-07-2001); sob orientação diversa, defendeu-se que a definição de menor potencial ofensivo estabelecida pela Lei nº 9099-95 continuava em vigor no âmbito da Justiça Estadual, haja vista que a Constituição da República distinguiu, claramente, as justiças federal e estadual, não emergindo, desta distinção, mácula à isonomia (Jorge Assaf Maluly, em www.direitocriminal.com.br, 17 de agosto de 2001).

Para dirimir a controvérsia instada, força se faz observar o princípio da isonomia, felizmente lembrado por penalistas de escol.

Com efeito, exige-se que se aprecie, objetivamente, a real existência de fundamento autorizador da discriminação em sede legislativa. Vale dizer, deve-se investigar se o simples fato de determinados delitos pertencerem à esfera de competência federal e outros afetos à competência estadual autorizam, por si só, que uns sejam definidos como de menor potencial ofensivo e outros, de idêntica natureza, não o sejam, através da Lei.

A lei, enquanto instrumento de regulação social, deve tratar eqüitativamente os cidadãos, sem conter privilégios ou perseguições. Vale afirmar, nesta esteira, que o comando legal deve regular, de forma igual, todas as pessoas que estejam em situações equivalentes, desigualando-as, quando necessário [1].

Força é reconhecer, com Bandeira de Mello, que os diferentes estatutos jurídicos existentes na ordem jurídica submetem fatos e pessoas a específicas situações, sem que se consubstancie, por si só, em fator de desigualdade.

A dificuldade reside, entretanto, na aferição e objetivação de um critério que legitime a discriminação legal, sem que, para tanto, macule a isonomia. Celso Bandeira, com propriedade, giza seus elementos constitutivos:

- "que a desequiração não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

- que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;

- que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

- que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem jurídico" [2].

Os contornos estabelecidos por Bandeira de Mello permite, com a indispensável segurança, a solução do problema. De fato, o art. 20 da Lei nº 10.259, ao restringir a aplicação de referida legislação aos delitos de natureza federal, distanciou-se do princípio da isonomia resguardado pela Constituição Federal, haja vista que tratou situações faticamente iguais de forma desigual.

A Lei nº 10.259 consagra, ostensivamente, uma situação de desigualdade que não encontra substrato fático a autorizar a discriminação. Anote, a propósito, o seguinte exemplo: Caio e Tício, agricultores e amigos, estão em viagem para São Paulo: Caio, por excesso de velocidade, é parado por um policial rodoviário federal no exercício de seu mister funcional, quando, intencionalmente, pratica o crime de desacato contra referido agente público federal; Tício, entretanto, em uma rodovia estadual, é parado por um policial rodoviário estadual por excesso de velocidade, quando, intencionalmente, pratica o crime de desacato em face deste funcionário estadual no exercício funcional. Ambos são encaminhados para a Delegacia de Polícia, federal e estadual, respectivamente.

Caio, em razão de ter praticado o crime de desacato em face de um funcionário público federal estaria submetido à justiça federal, obtendo a transação penal e não se submetendo à prisão e nem ao processo. Por outro lado, Tício será preso em flagrante delito, deverá ser processado perante a Justiça Estadual para, querendo, aceitar eventual proposta de suspensão do processo a ser formulada pelo Promotor de Justiça.

Com indiscutível clareza, há total iniqüidade na aplicação do art. 20 da Lei nº 10259, eis que desrespeita e lesa o princípio da igualdade, pelas seguintes razões: há identidade de suporte fático e delitos de mesma natureza que, entretanto, possuem tratamento diferenciado e sujeita os respectivos autores do delito a benefícios distintos.

As palavras de Canotilho, citadas por Cláudio Dell’ Orto [3], merecem registro neste ensaio,quando leciona que

"quando não houver motivo racional evidente, resultante da natureza das coisas, para desigual regulação de situações de fato iguais ou igual regulação de situações de fato desiguais, pode considerar-se uma lei, que estabelece essa regulação, como arbitrária".

É de se admitir, nesta ordem de ponderação, que o art. 2º parágrafo único da Lei nº 10.259, enquanto regra posterior, derrogou o art. 61 da Lei n-9099-95, na forma do art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, devendo-se aplicá-lo retroativamente, a todos os processos em curso ou com trânsito em julgado, nos termos dos arts. 5º, inciso XL da Constituição Federal, e 2º, parágrafo único do Código Penal.

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Sob vértice diverso, o art. 20 daquele diploma legal há que ser desconsiderado pelos órgãos jurisdicionais, no exercício do controle difuso da constitucionalidade das leis, à vista de sua notória colidência com princípio da isonomia.


Notas

1.Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3 ed., atual., São Paulo: Malheiros, 1993, p. 10.

2.IDEM, IBIDEM, p. 41.

3.DELL’ ORTO, Cláudio. Efeitos da Lei 10259 de 2001 que instituiu os Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, in www.direitocriminal.com.br, de 23.07.2001.

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Sobre o autor
Renato de Lima Castro

promotor de Justiça da Comarca de Assaí (PR), ex-procurador do Estado do Paraná, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Renato Lima. Lei do Juizado Especial Federal e os delitos de menor potencial ofensivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2766. Acesso em: 20 abr. 2024.

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