Inconstitucionalidade de se lecionar ensino religioso nas escolas municipais da rede pública

24/04/2014 às 10:16
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Trata-se de argumentos voltados a justificar a inconstitucionalidade de se lecionar ensino religioso nas escolas da rede pública.

INCONSTITUCIONALIADE DE SE LECIONAR ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DA REDE PÚBLICA

                                                                                                   

RESUMO

 A formalização pelo Brasil e o Vaticano da Concordata que trata da implementação do ensino religioso como matéria a ser lecionada nas escolas da rede pública para alunos do ensino fundamental no Brasil, sendo este um país laico, é caso de violação constitucional? É importante buscar responder tal questionamento, uma vez que se trata de assunto de relevância jurídico-social, vez que pode afrontar princípios básicos constitucionais como a laicidade do Estado e a liberdade de religiosa. Optou-se por uma pesquisa exploratória de procedimento bibliográfico e documental, bem como a aplicação de questionário fechado à religiosos e juristas. Concluiu-se, portanto que o a concordata firmada entre Brasil e Vaticano é inconstitucional por conter vício de materialidade quando estabelece o ensino católico como matéria primordial a ser lecionada, violando assim o princípio da liberdade religiosa e a laicidade do Estado.

 

Palavras-chave: Ensino Religioso. Inconstitucionalidade. Liberdade Religiosa.

INTRODUÇÃO

O presente artigo terá como principal objeto de análise o dispositivo constitucional que trata do ensino religioso bem como a concordata firmada em 2009, pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Vaticano, buscando responder a seguinte indagação: A formalização pelo Brasil e o Vaticano da Concordata que trata da implementação do ensino religioso como matéria a ser lecionada nas escolas da rede pública para alunos do ensino fundamental no Brasil, sendo este um país laico, é caso de violação constitucional?

Ainda importa mencionar a importância sociológica, qual seja os efeitos da formalização da concordata se depara com o direito de liberdade de crença garantido pela Constituição Federal, uma vez que o anseio social é receber a prestação educacional de forma equânime, sem deturpar qualquer dogma, seja ele de caráter ético, moral ou espiritual, não podendo com isso ser prestado educação estritamente voltada para a religião de um grupo específico de pessoas ou determinada classe social.

A pesquisa objetiva analisar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – lei nº 9.394/96, especificamente o art. 33 §§ 1º e 2º bem como o conceito de Laicidade e Liberdade Religiosa à luz da Constituição Federal em seu art. 5º VI; Investigar se o art. 11 §1º da concordata modificou o sentido do art. 33 §§ da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conceituar Laicidade e Liberdade Religiosa; realizar entrevista com religiosos e juristas para auferir os efeitos jurídicos da formalização da Concordata.

A pesquisa realizada foi do tipo exploratória, pois buscou encontrar respaldo para justificar a inconstitucionalidade da concordata. O procedimento técnico utilizado foi o bibliográfico, pois se valeu de estudos doutrinários acerca do que reza a nossa Constituição sobre o tema. Foi realizado também entrevistas com religiosos e juristas.

1     DA CONCORDATA FIRMADA ENTRE BRASIL E VATICANO

Antes de adentrar ao tema em questão, é de suma importância se fazer uma retrospectiva na história, a fim abordar como o ensino religioso se inseriu no contexto educacional e político brasileiro ao longo da história.

Sabe-se que o Brasil foi colonizado principalmente por portugueses, povo que adota como religião oficial o catolicismo, com isso é inegável que por tal motivo, o intuito dos colonizadores por décadas foi catequizar os que aqui residiam, impondo suas convicções religiosas sem respeitar a cultura e os rituais que se contrapunham aos ritos e costumes católicos.

É importante lembrar que a Igreja Católica manteve o controle educacional do país por um largo espaço de tempo o que dificultou ainda mais a retirada da responsabilidade educacional de “suas mãos”; o exemplo disso foi que apenas no ano de 1879, ainda no período imperial é que os alunos não católicos foram dispensados de frequentar aulas de Doutrina Cristã (assim era denominado as aulas de religião) nas escolas da rede pública e, por conseguinte os professores que não se filiavam ao catolicismo foram dispensados de prestar o juramente de fé católica. (CUNHA, 2009)

Entretanto, consta na história um retrocesso - se assim pode-se dizer-  no ano de 1930, o então presidente da república Getúlio Vargas, acolhendo a proposta do ministro da Educação, que estava sendo pressionado pela força reivindicatória dos dirigentes da Igreja Católica, edita o Decreto 19.941/31 estabelecendo a volta do ensino religioso ao currículo das escolas públicas. Ato contínuo, a Constituição de 1934, recepcionou tal preceito o que foi seguido por todas as outras Constituições, inclusive a de 1988. (CUNHA, 2009)

Insta frizar que de modo diverso das Constituições anteriores, a Constituição de 1988 considerou a matéria ensino religioso, como disciplina de horário normal e de matrícula facultativa. Nesse sentido é o que prevê o seu art. 210, §1º, in verbis:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.( BRASIL, 1988)

Neste mesmo ângulo, a legislação brasileira ao regulamentar o fomento da educação religiosa inserida em sua política pública educacional, quando elaborou a lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, - Lei de Diretrizes Base da Educação Nacional -, em seu art. 33, §§, (conforme veremos mais adiante), que fora alterado pela lei 9.475 de 22 de julho de 1997 dando-o nova redação, estabeleceu parâmetros mínimos a ser adotado pelas escolas municipais da rede pública ao implementar em seu currículo a referida matéria.

Ainda assim é de extrema relevância explanar a diferença existente entre a nomenclatura referente a um tratado celebrado entre Estados e a Santa Sé. Quando o intuito é mencionar um tratado qualquer, pode se utilizar termos semelhantes como: acordo, ajuste, arranjo, compromisso, declaração, protocolo entre outros, todavia ao mencionarmos um tratado celebrado entre um Estado e a Santa Sé, dá-se o nome Concordata. Segundo Sérgio Pinto Martins:

A concordata é um tratado bilateral em que uma das partes é a Santa Sé e que tem por objeto a organização do culto, a disciplina eclesiástica, missões apostólicas, relações entre a Igreja Católica local e o Estado compactuante, tendo estes natureza supralegal. (MARTINS, 2010, p.211)

No ano de 2006, especificamente no dia 10 de abril, segundo dia de visita ao país, o papa Bento XVI encontrou-se com o presidente Lula no Palácio dos Bandeirantes em São Paulo, a fim de manifestar a sua intenção em firmar acordo com o Brasil no sentido de regulamentar privilégios tributários e o ensino religioso nas escolas públicas. Nesta data é que houve as primeiras negociações objetivando a assinatura da concordata (SORIANO, 2007)

Passados 2 (dois) anos, no dia 13 de novembro de 2008, a imprensa brasileira anunciou a chegada do presidente Lula à Roma tendo como objetivo principal, se entender politicamente com o presidente italiano Ítalo Berluscone, com quem viajaria a Washington para a reunião do G-20. Subsidiariamente foi noticiado que Lula iria visitar o papa Bento XVI no Vaticano com a companhia de sua esposa e quatro ministros, ocasião esta que auspiciosamente foi firmada a concordata entre os dois Estados. (CUNHA, 2009)

A concordata é constituída de 20 artigos que refletem a regulamentação de diversos assuntos, tais como: a organização e personalidade jurídica das instituições eclesiásticas; imunidades, isenções e benefícios fiscais; patrimônio cultural; casamento; regime trabalhista de religiosos. Em especial os artigos 9, 10 e 11 tratam de temas especificamente educacionais, quais sejam: reconhecimento de títulos acadêmicos, instituições de ensino católicas e ensino religioso nas escolas da rede pública. (CUNHA, 2009)

Tal ato surtiu grandes repercussões em todo país, uma delas é claramente visível na posição adotada pela AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) que divulgou nota pública assinada pelo então presidente Mozart Valadares Pires se manifestando contrária a assinatura da concordata. Segundo a Associação, a ratificação do texto “implicará em grave retrocesso ao exercício das liberdades e à efetividade da pluralidade enquanto princípio fundamental do Estado.” Não obstante, ressalta que o modelo constitucional brasileiro adota a laicidade do Estado e pede com veemência que os deputados e senadores atuem com “rigorosa conduta constitucional.”

A concordata foi aprovada pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e foi aprovada em votação simbólica no Congresso Nacional, sob significativas razões do PSOL e do PPS ao que tange a sua patente inconstitucionalidade. A sociedade civil também não deixou de manifestar a sua indignação, vale ressaltar a atuação da AMB e da OAB nesse sentido. Por fim, a concordata foi promulgada.

A Confederação das Igrejas Assembléia de Deus questionou a validade do acordo como um todo, por meio de ADIN, que foi rejeitada pelo ministro Joaquim Barbosa com fundamentando que o impetrante não era parte legítima para tanto. Entretanto tramita hoje ADIN impetrada pela Procuradoria Geral da República questionando o ensino religioso nas escolas da rede pública nos moldes que ficou estipulado pela Concordata. (FLOR, 2009)

Em suma, a ratificação da concordata acarreta efeitos jurídicos que se colidem com políticas públicas educacionais que visam efetivar o princípio da laicidade e a liberdade de crença nas escolas, tal visão já fora percebida pela sociedade, tanto que tramita hoje ADIN impetrada pela Procuradoria Geral da República, no sentido de questionar a constitucionalidade da concordata assinada e a implementação do ensino religioso nas escolas municipais da rede pública instituindo o catolicismo como religião primordial a ser lecionada.

 

2  O ESTADO LAICO E O PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA

Antes de adentrarmos especificamente na seara constitucional visando entender com mais clareza o que é, na verdade, o Estado Laico e o Princípio da Liberdade Religiosa, deve-se analisar a evolução das constituições ao que diz respeito ao aspecto: religião.

A Constituição de 1891, acompanhando os moldes ora trazidos pelo Decreto n. 119-A de 07.01.1890, torna o Brasil um país leigo, não confessional ou laico, com previsão expressa no texto constitucional, tanto que nesta constituição, não se invocou em seu preâmbulo a expressão: “sob a proteção de Deus” no momento de sua promulgação.

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Ao que tange ao ensino religioso, este foi vedado nas escolas públicas. Já na Constituição de 1934, embora o país continuasse laico, sendo inviolável a liberdade de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos desde que não contrariasse a ordem pública e os bons costumes, a matéria concernente ao ensino religioso estava disposta no art. 153, sendo considerada matéria facultativa; o que foi prosseguido pela Constituição de 1937.

Em 1946, o Estado continuava sendo Laico, entretanto mencionava-se na Constituição a expressão: “Deus” em seu preâmbulo, o que também ocorrera na Constituição de 1967. Por fim, em 1988, foi editada a nossa atual Constituição, que também adotou a laicidade, entretanto, da mesma forma que as precedidas, se valeu também em seu preâmbulo da expressão: “Deus”, e adotou o ensino religioso como matéria facultativa. (LENZA, 2011, p.113).

Ao verificar o contexto histórico das constituições, nos parece que embora o Estado seja Laico, houve grande importância em mencionar a expressão “Deus” nos preâmbulos, tanto que todas as constituições, exceto as de 1981 e 1937, invocaram “a proteção de Deus”.

Ao que se refere às constituições estaduais, todas assim o fizeram, somente o Acre é tido como exceção, o que chegou a ser discutido no STF onde este se posicionou no sentido de que o preâmbulo não tem relevância jurídica e a invocação da “proteção de Deus” não é norma de reprodução obrigatória, concluindo que o preâmbulo não tem força normativa, não cria direitos e obrigações, não tem força obrigatória, servindo apenas como norte interpretativo das normas constitucionais. (LENZA, 2011, p.883).  

Para José Afonso da Silva, existem três sistemas que podem classificar a relação Estado-Igreja e que devem ser observados, quais sejam, a confusão, a união e a separação. A confusão ocorre quando o Estado como um todo político se confunde com alguma religião, é o chamado Estado teocrático, a título de exemplo temos o Vaticano e os Estados Islâmicos. Já a união, consiste no relacionamento jurídico entre Estado e determinada igreja, ao que tange a sua organização e funcionamento. O Brasil adotou esse sistema a medida que a Constituição Política do Império, estabelecia que a religião Católica Apostólica Romana era a religião do império, devendo o Imperador, antes de ser aclamado, ter que jurar manter aquela religião em seu governo (art.103), todavia, a República principiou estabelecendo a liberdade religiosa com a separação da Igreja do Estado, o que acorrera antes da constitucionalização do novo regime, graças ao Decreto 119-A de 7.1.1890 confeccionado por Ruy Barbosa e expedido pelo Governo Provisório, instaurando com isso o sistema da separação. (SILVA, 2007, p.250)

Segundo Uadi Lammêgo Bulos, a Liberdade Religiosa é gênero das espécies Liberdade de Culto e Liberdade de Crença, sendo esta a liberdade de acreditar ou não em algo.  Não obstante afirma que:

A liberdade de crença engloba o direito de escolher a própria religião (aspecto positivo) e o direito de não seguir religião alguma, de ser agnóstico ou teu (aspecto negativo). O limite à liberdade de crença situa-se no campo do repeito mútuo, não podendo prejudicar outros direitos. (BULOS, 2009, p.354)

Neste mesmo prisma está Marcelo Novelino, entretanto, destaca que como toda liberdade garantida pela nossa Constituição Federal, a Liberdade Religiosa não é absoluta, devendo ser exercida em harmonia com os valores constitucionalmente consagrados, além do Estado não poder estabelecer tratamento discriminatório a uma igreja/religião em detrimento as demais, seja para beneficiá-la ou para prejudica-la. (NOVELINO, 2008, p.216)

Em sentido contrário, entendemos também que a liberdade de consciência e de crença pode direcionar o homem a aderir certos conceitos e valores morais, éticos e espirituais que não estejam ligados a nenhuma religião específica nem mesmo a algum sistema religioso. A título de exemplo temos os movimentos pacifistas, que embora trabalhem em prol de promover à paz mundial, banindo da sociedade em questão as guerras de caráter civil, etnológica e racial, não se relacionam nem se confundem com nenhuma vertente religiosa, muito pelo contrário, se desvinculam de apregoar qualquer forma de prevalência de uma religião ou crença face às demais. (BASTOS, 2002, p.334)

O Estado brasileiro, além de consagrar em seu texto constitucional a Liberdade Religiosa institui com isso o Estado laico, o que significa que ele se mantém indiferente as diversas religiões, ou seja, o Estado brasileiro não é ateu e nem religioso, é neutro. Tal afirmativa retrata a fiel conceituação e diferenças entre laicidade e laicismo, uma vez que a laicidade é a neutralidade na condução jurídica, legislativa e política do Estado em relação às religiões, contudo não veda nem inibe a manifestação de qualquer crença nem a realização de cultos ou rituais religiosos, desde que estes não firam a ordem pública. (BASTOS, 2002, p.336)

Acerca da Liberdade Religiosa, Pedro Lenza arremata explanando algumas considerações relevantes:

Dentro de uma ideia de bom senso, prudência e razoabilidade, a Constituição assegura o direito a todos de aderir a qualquer crença religiosa, ou recusa-las, ou ainda de seguir qualquer corrente filosófica, ou de ser ateu e exprimir o agnosticismo, garantindo-se a liberdade de descrença, ou a mudança da escolha já feita.

Portanto, não podemos discriminar ou reprimir. O preconceito deve ser afastado, a sociedade tem que conviver e harmonizar com escolhas antagônicas sem que o radicalismo egoísta suplante a liberdade constitucionalmente assegurada. (LENZA, 2011, p.887)

Por conseguinte, entender que o Direito a Liberdade Religiosa precisa ser aplicado em qualquer decisão que envolva política pública, associando-se sempre ao bom senso e a razoabilidade, evitando que o Estado cometa atos que firam direito já consagrado no texto constitucional, cabendo, portanto a sociedade como um todo, introjetar que a discriminação religiosa em nada se associa com o Estado Democrático de Direito, sendo necessário para que haja boa convivência social, que os integrantes que compõe determinado círculo de convivência, saibam suportar ideologias diferentes, a ponto de não promover atitudes que afrontam nem cerceiam o Direito de Liberdade Religiosa.

 

DA INCONSTITUCIONALIDADE DA CONCORDATA FRENTE À LAICIDADE DO ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA.

Para iniciar a explanar as razões pelas quais a Concordata assinada entre Brasil e Vaticano é inconstitucional, veja que o texto constitucional nos adverte acerca de como a religião deve ser tratada das relações públicas:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença [...]

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política,[...]; (BRASIL, 1988)

Em outra via, tem-se a educação como o primeiro direito social, elencado em nossa Constituição Federal em seu art. 6º na redação dada pelas ECs 26/2000 e 64/2010, sendo os direitos sociais de segunda dimensão, consistentes em prestações positivas a serem ofertadas pelo Estado a fim de perseguir melhores condições de vida. (LENZA, 2011, p.973)

É sabido que em nosso texto constitucional existe previsão de se lecionar ensino religioso para os alunos da rede pública municipal, entretanto faz-se necessário que tal previsão se adeque as liberdades públicas, tais como a liberdade de crença e a previsão de ser o Brasil um Estado laico. A priori, está claro que priorizar o ensino Católico fere frontalmente o principio da laicidade do Estado, pois como bem diz Alexandre de Morais (2008, p.48) “Não se poderá instituir nas escolas públicas o ensino religioso de uma única religião, nem tampouco pretender-se doutrinar os alunos a essa ou aquela fé.”

Por fim, toda norma infraconstitucional, como aduz Paulo Bonavides (2008, p.299): “deve se acomodar aos cânones da Constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos fundamentais.”, o que não ocorreu quando fora firmado a Concordata em questão, padecendo assim de vício material ou de conteúdo como esclarece a doutrina. Ratifica tal ideia Pedro Lenza:

Por seu turno, o vício material diz respeito à “matéria”, ao conteúdo do ato normativo. Assim aquele ato normativo que afrontar qualquer preceito ou princípio da Lei Maior deverá ser declarado inconstitucional, por possuir vício material. Não nos interessa saber aqui o procedimento de elaboração da espécie normativa, mas, de fato, o seu conteúdo. (LENZA, 2011, p. 234)

Entende-se que o ato do Brasil ser parte no acordo formado com o Vaticano, instituindo a “religião” Católica como a primordial a ser lecionada, padece de vício material, pois como bem disse Paulo Bonavides, a concordata não se adequou ao espírito da nossa Norma Maior sob os reflexos da laicidade e a liberdade religiosa.

Com efeito, o fato de se constranger pessoas de diferentes religiões ou até mesmos atéias ou agnósticas a negar suas convicções e serem “obrigadas” a assistir uma verdadeira aula de catequese, representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e a própria diversidade espiritual. (MORAES, 2008, p.46)

A temática é tão fundamental que as escolas públicas são obrigadas a manter a disciplina de ensino religioso em suas grandes a ser ministradas para os alunos do ensino fundamental, mas é claro, observando os parâmetros exigidos pela Constituição e pela Lei de Diretrizes Base da Educação.

Já as escolas privadas, podem adota-la como lhe parecer ser conveniente, ou seja, uma escola privada pode criar a ementa da matéria como lhe convier, ou de acordo com os dogmas religiosos do público que pretende alcançar, todavia, não pode impor determinada confissão religiosa a quem não o queira, logo, mesmo que o aluno ingresse em determinada escola privada em que seus gestores professam uma determinada fé e a matéria de ensino religioso seja ministrada de acordo com ensinamentos e regras de tal religião, é inadmissível que a escola (mesmo privada) imponha seus ensinamentos aos alunos. (SILVA, 2007, p.252)

Assim também dispõe a lei 9.394/96 em seu art. 7º, que diz:

Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino; (BRASIL, 1996)

Destaca-se que a inconstitucionalidade da concordata é advinda de vício material, ou seja, decorre do antagonismo entre a matéria suscitada e a Constituição Federal e não de vício de formalidade, já que qualquer Estado pode celebrar “acordos” com o Vaticano, tendo este apenas caráter estatal e não religioso. Sendo assim, é possível haver ajustes entre os Estados, excluindo-se, portanto alianças com a Igreja. Nesse prisma, está Celso Ribeiro Bastos

O referido preceito impede relações de dependência ou aliança entre Estados e as Igrejas, que não exclui vínculos diplomáticos com a Santa Sé, que no caso comparece como Estado e não como Igreja. (BASTOS, 2002, p.336)

Desta mesma forma, delimitar o ensino religioso, restringindo-o, por meio de um instrumento normativo internacional de forma a privilegiar determinada religião, ou corrente filosófica significa violar direito já consagrado. Não obstante, no clamor da elaboração de tal instrumento, não se observou a legislação nacional apta a regular questões educacionais, qual seja, a lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes Base da Educação- ao que tange a observância de princípios, uma vez que tal lei dispõe:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

[...]

VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; (BRASIL, 1996)

Com isso, entende-se que qualquer atividade pedagógica, seja pública ou privada, deve valer do respeito ao pluralismo de ideias, não impondo de modo algum a subversão aos valores e crenças adotados, devendo desvincular a atividade educacional de ensinamentos religiosos.

Entende-se que a família é competente para tanto e não a escola. Destarte que valores éticos e morais são bem diferentes de valores e dogmas religiosos. No mesmo passo e com a mesma cautela devida, importa em fazer valer o respeito à liberdade e o apreço à tolerância, seja para com os que têm determinada fé diferente do modelo adotado pela instituição de ensino, seja para com aqueles que não possuem fé em nenhum tipo de “deus”. E por derradeiro o referido art. trata da gestão democrática do ensino público, o que abarca todas as questões abordadas.

É comum que no Estado Social, haja pluralidade de pensamentos e de opiniões, todavia faz-se importante lembrar que o Estado Democrático de Direito tem como característica marcante, o respeito pelo próximo e o bom convívio entre os membros da sociedade, mesmo que estes sejam contrários às ideologias ou religiões particulares, foi por essa razão que o legislador quando criou a lei que aponta as diretrizes educacionais, dispôs como objetivo ligado à formação básica do cidadão a tolerância recíproca, veja:

 Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: 

[...]

IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. (BRASIL, 1996)

Como já dito, o ensino religioso nas escolas públicas deve assegurar o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de imposição:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (BRASIL, 1996)

Uma das questões mais importantes, está relacionada à formulação do conteúdo a ser ministrado; para tanto, importa em convocar as entidades civis de diferentes denominações religiosas para a construção deste, afim de não excluir nenhuma ramificação do processo pedagógico aplicado, assim expressa o §2º do art. 33:

Art. 33 [...]

[...]

§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (BRASIL, 1996)

Em contrapartida, ao se analisar o art. 11, §1º da Concordata: §1º:

Artigo 11 [...]

§1º O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. (BRASIL, 2009)

Pode se extrair o entendimento de que o ensino Católico é tido como a regra e as demais religiões como exceção, tendo estas, caráter subsidiário; o que é terminantemente vedado pela nossa política, pois como já visto não se pode priorizar determinada religião face às demais, por ser esta prática inadmissível em um Estado considerado laico.

Nas palavras de Luiz Antônio Cunha o que se pretende é justamente isso, privilegiar certa categoria religiosa, veja:

O que a concordata vaticana pretende é misturar uma vez mais a Igreja, não qualquer Igreja, mas a Igreja Católica, ao Estado. Como não dá para fazê-la voltar ao útero estatal onde foi aninhada durante séculos, o acordo, tratado ou simplesmente concordata pretende garantir-lhe privilégios inéditos. (CUNHA, 2009)

Desta forma, não restam dúvidas que a Concordata é inconstitucional, passível de ser revista pela nossa Corte Maior, extinguindo seus efeitos e abolindo da nossa ordem jurídica qualquer preceito que afronte a nossa Constituição Federal e interfira na postula laica adotada.

CONCLUSÕES

Sabe-se que por alguns anos o Brasil sofreu diretamente influências dos colonizadores portugueses, e aspecto que não se pode passar despercebido é que a religião professada por eles foi imposta a todos que não professavam a mesma fé. A religião foi preponderante na construção normativa de todas as Constituições, tanto que a partir de 1930, Getúlio Vargas reestabeleceu a volta do ensino religioso nas escolas públicas, o que foi adotado por todas as outras constituições. Repisasse que, embora o ensino religioso tenha voltado a ser ministrado o Estado permanecia laico desde a Constituição de 1890, que acompanhara os moldes trazidos pelo Decreto n. 119-A de 07.01.1890.

Hodiernamente tem-se como instrumento legal a lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, - Lei de Diretrizes Base da Educação Nacional, art. 33, §§, alterado pela lei 9.475 de 22 de julho de 1997, regulamentando a forma adequada em que a referida matéria deve ser lecionada nas escolas, não obstante, meados de novembro de 2008 o Presidente Lula assina uma concordata com o Vaticano priorizando o ensino católico nas escolas da rede pública, sendo aprovada pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e  aprovada em votação simbólica no Congresso, dando esta por ratificada e publicada.

Entende-se que a manobra política realizada, fere diretamente a ideologia adotada pela Constituição de 1988, uma vez que se prega ser o Brasil um estado laico, que respeita amplamente a liberdade e diversidade religiosa, não interferindo, não impondo, não prejudicando e nem beneficiando qualquer religião que seja. Logo, entende-se inconstitucional a concordata de forma a não ser legítima, pois fere os interesses sociais e individuais conquistados na constituição “cidadã”.

Ainda assim, consta esclarecer que o ato governamental de celebrar a concordata com o Vaticano encontra-se na verdade impregnado de vício material, porque de fato a concordata em si, não fora firmada com o Vaticano enquanto Estado e sim com o Vaticano enquanto Igreja o que é expressamente vedado pelo nosso ordenamento maior.

Para ratificar a ideia exposta neste trabalho, foi aplicado questionário fechado a 30 pessoas das áreas religiosas, pedagógicas e jurídicas para averiguar qual o posicionamento da sociedade sobre o tema. Embora grande parte dos entrevistados acreditem ser o ensino religioso importante na formação do aluno, não apoiam a ideia de ser este, voltado para o estudo de uma única religião, pois tal ato feriria o princípio da liberdade religiosa, que por sinal, já fora ferido quando a concordata que institui o ensino católico nas escolas municipais da rede pública foi ratificado pelo Brasil.

 

REFERÊNCIA

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 1. Ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos, 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CUNHA, Luiz Antônio. A Educação na Concordata Brasil – Vaticano. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302009000100013> Acesso em: 19 mar. 2012.

CUNHA, Luiz Antônio. Concordata: a educação na mira do Vaticano. Disponível em: <http://www.feim.org.ar/pdf/Luiz_Antonio_Cunha_Concordata_a_educacao_publica_na_mira_do_vaticano.pdf> Acesso em: 21 mar. 2012.

FLOR, Ana. AMB critica aprovação de acordo com Vaticano. Disponível em:  <http://www.amb.com.br/?secao=mostranoticia&mat_id=18467> Acesso em: 21 mar. 2012.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 15. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

MARTINS, Sérgio Pinto. Instituições de Direito Público e Privado, 10. Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 23. Ed. São Paulo: Atlas, 2008.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional, 2. Ed. São Paulo: Método, 2008.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

SORIANO, Aldir Guedes. O que está por trás da visita do Papa Bento XVI ao Brasil? Disponível em:  <http://yeshuachai.org/oldforum/viewtopic.php?f=5&t=1786> Acesso em: 19 mar. 2012.

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