A evolução do processo penal

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11/05/2014 às 10:54
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4. O PROCESSO PENAL NA DEMOCRACIA MODERNA

A democracia moderna surge em resposta aos mandos e desmandos ocorridos na Idade Medieval (ou Idade Média) e é fruto do iluminismo, que apregoa o individualismo, a razão, a liberdade, fraternidade e outros elementos tão esquecidos durante os governos absolutistas. Foi iniciada pelos burgueses40, que desejosos pela liberdade no comércio, dão impulso a um movimento ideológico, artístico, popular e político.

Todas as instâncias sociais sentem o impacto desses ideais, em especial o povo que, conclamado a participar da vida política do Estado, vê a possibilidade de mudar os contornos históricos que lhe sobrecarregam. Ademais, a opressão, as pestes e as misérias do final do século XVII são campos férteis para uma mudança da forma de governo41.

Afonso da Silva42 divide os estágios da democracia moderna em: (i) Estado de Direito, fase que reinou o liberalismo econômico, tendo a liberdade e o individualismo como super direitos; (ii) Estado Social de Direito, período marcado pelo propósito de conciliar o capitalismo com o bem-estar social; (iii) o Estado Democrático de Direito, em que há um equilíbrio dos direitos individuais e sociais, pois se busca efetivar a saúde, o trabalho e a educação, sem olvidar de garantir a liberdade, a ampla defesa, o contraditório, a igualdade material e, principalmente, a dignidade do ser humano.

O primeiro momento, denominado como Estado de Direito, começa com o fim do absolutismo, tendo um conceito tipicamente liberal. As bases do Estado de Direito, também denominado de Estado Liberal de Direito, são a subordinação à lei, a divisão dos poderes e a tutela dos direitos individuais. A lei é considerada como um sistema de proteção em face dos abusos do poder, pois emana do Poder Legislativo, órgão composto por representantes do povo, decorrente da separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário)43.

É necessário fazer a ressalva de que existe toda uma discussão acerca do que seria propriamente Estado de Direito. Chevallier44 assinala três sentidos para Estado de Direito, um formal, outro material e um substancial. Vidal Neto45, por seu turno, preceitua que qualquer Estado pode ser um Estado de Direito, ao passo que doutrina dissidente sustenta que o Estado de Direito representa uma função de legitimação e de luta contra o absolutismo, como registra Perez-Luño46. Sem dúvidas, a expressão Estado de Direito remota uma história longa e complexa. Entretanto, sem pretender aprofundar essa discussão teórica, adota-se o conceito dado por Verdú47 sobre Estado de Direito, caracterizado como mecanismo de contenção do exercício ao poder, como forma de romper com as utópicas do absolutismo para centrar a função do poder estatal na razão, onde os súditos passaram a ser considerados cidadãos livres.

Na prática, o início do Estado de Direito permite que diversos comerciantes de pequeno porte fomentem suas economias, vez que a movimentação do mercado e, principalmente, com os consumidores determinando o preço dos produtos, os primórdios do Estado Liberal proporciona uma economia equilibrada com poucas desigualdades. É a livre iniciativa que marca o início da democracia liberal. O Estado serve apenas para assegurar a liberdade e a propriedade, interferindo muito pouco nas relações sociais48. Foi o que Nunes49 denominou de Capitalismo de Concorrência.

A revolução industrial provoca um movimento de concentração de poder econômico. Investir na indústria, antes de ser lucrativo, é uma atividade muito custosa e exigia imissões financeiras de grandes portes, realidade distante dos pequenos produtores. Foi a partir daí que surgem os bancos, entidades capazes de reunir pequenos comerciantes; aparecem as sociedades por ações, há um enorme investimento em tecnologia, o progresso técnico se impõe como saída para evolução científica, ocorre uma unificação do mercado mundial, internacionalização do capital e, ao invés de existirem pequenos comerciantes, passa-se a contar com grandes potências econômicas, que através de acordos entre si, devendo determinar o preço do mercado. Essa fase é marcada por crises cíclicas, conhecida como fase do capitalismo monopolista50. O Estado de Direito sente duras quedas, vez que o poder econômico volta a dominar o poder político, a liberdade e o individualismo são tidos como direitos estanques, havendo uma afetação no campo social.

Os grandes detentores do poder econômico, influentes no poder político, não desejam abrir mão das suas enormes fatias do bolo. Investir no social significa majorar os tributos, enrijecer direitos trabalhistas, proporcionar um plano previdenciário com bases sólidas, medidas custosas para o capital monopolista51. Logo, conter os movimentos sociais, revelados pela criminalidade, será mais vantajoso através de mecanismos processuais mais rígidos, distantes, por óbvio, dos preceitos democráticos.

Ressurge a necessidade de o Estado intervir na economia, através do desenvolvimento de políticas e prestação de serviços públicos capazes de proporcionar redistribuição de riqueza e justeza social52. Dá-se início à segunda grande fase da democracia moderna: o Estado Social de Direito.

O movimento social firmava seus fundamentos nos princípios da igualdade material e solidariedade, exprimindo a questão social e erigindo o problema da miséria e da fome causado pelo capitalismo industrial monopolista. A demanda social, no dizer de Miguel Calmon:

Exigiu a passagem da preponderante auto-representação como sociedade para a da comunidade, da competição para solidariedade, [...] das abstenções para as prestações, da liberdade de uns para a segurança de todos, ou seja, da liberdade individual para segurança social53.

Há uma remodelação do capitalismo, e se busca equilibrar as bases liberais com a necessidade de melhor prover a sociedade. O modo de produção deverá observar as mazelas sociais, promovendo, através do Estado interventor, opções para reduzir as desigualdades provocada pela revolução industrial, já que a neutralidade estatal no início da democracia moderna custou caro para o povo. Afinal, como sói dizer Verdú, “o quantitativo social refere-se à correção do individualismo clássico liberal para afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social”54.

Porém o Estado Social, com o passar dos anos, revela que é insuficiente pensá-lo como Estado Material de Direito, pois se verifica ambiguidades em sua construção, ideologias opostas dentre de um mesmo modelo, o que desvenda as diversas interpretações dadas à palavra social. Não à toa que a Alemanha nazista se dizia social (baseada na Constituição de Weiber), a Itália Fascista e o próprio Brasil durante o governo de Getúlio Vargas também possuíam discurso distribuidor. Pertinente a conclusão de Bonavides de “que o Estado Social se compadece com regimes políticos antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”55. Por isso nota-se que se os excessos cometidos pelos liberais proporcionaram uma tremenda desigualdade social, guiça as atrocidades cometidas em alguns Estados nesses moldes interventor.

A Alemanha de Adolf Hitler é um dessa incompatibilidade, por tentar minorar os danos sociais em seu país através da opressão aos judeus, considerados por ele um mal para sociedade, pois não repartiam o que ganhavam e ainda impunham duras regras de comércio. A justificativa de cumprir os deveres da Constituição de Weiber foi instaurado um processo penal condutor de holocaustos e um regime social totalitário56.

A desvalorização provocada nesse período fez sentir a necessidade de proteger com unhas e dentes direitos inerentes à pessoa humana. A declaração dos direitos humanos de 1948 é um exemplo claro disso57.

Sendo assim, ergue-se a nova fase da democracia moderna, marcada pelo pluralismo (de ideias, culturas e etnias), pela sociedade livre, solidária e justa, pela participação do povo, sendo um procedimento de libertação da pessoa humana do formato opressor reconhecendo os direitos “individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício”58.

O próprio Estado Democrático é aquele voltado para efetivar os direitos do homem:

O Estado Democrático de Direito é a expressão contemporânea do Estado de Direito, conferindo-lhe um sentido material e uma unidade de sentido orientada para a realização de objetivos que consubstanciam u ma auto-representação da comunidade política, sendo estruturado e conformado a partir da programaticidade constitucional. O Estado Democrático de Direito é essencialmente, de acordo com o texto, e conforme exigência do contexto brasileiro, um Estado programático59

Para Bobbio:

[...] direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos60.

O Estado Democrático de Direito, portanto, tem como função a efetividade dos direitos fundamentais que passaram a ser reconhecidos nessa fase da Democracia Moderna.

A tríplice relação, proposta desde o início do presente capítulo, terá oscilações na Democracia Moderna, pois enquanto a Constituição e o Processo Penal no Estado de Direito darão prioridade à liberdade, no Estado Social a solidariedade é o fio condutor da sociedade, ao passo que o Estado Democrático de Direito tem como fator legítimo o equilíbrio entre os direitos individuais e sociais.

Nessa nova era democrática o processo penal deve se basear na Carta Magna e possuir a missão de tutelar os direitos individuais do acusado como forma de impedir os abusos do poder punitivo do Estado, sendo vedado conceder um tratamento diferenciado entre aquele que está sendo perseguido penalmente e a vítima que reclama uma investigação, é um momento de tratamento isonômico, conforme esclarece Nores:

Ello requiere que se acuerde tanto a la víctima que reclama investigación y juicio, como al imputado, durante el proceso penal, um trato que será igual, cualquiera sea su condición personal: no puede Haber ni privilégios (“ley privada”) ni discriminación de ninguna naturaleza, ni por ninguna razón, ni durante el proceso, ni em la decisión final. A la vez, cualquiera que sea el sentido que ésta adopte, deberá ser equitativa e imparcial61.

Não se justifica mais os sistemas opressores vistos em outras épocas. É com respeito aos direitos específicos de cada ser humano que poderá se condenar alguém. A par disto, num olhar mais profundo, observa-se diversos questionamentos à Democracia Moderna e às suas bases estruturais. Contesta-se, nesse diapasão, se o atual estágio democrático não revelaria uma Democracia Pós-Moderna. Como se a própria modernidade tivesse tido seu término após o novo paradigma da linguagem.

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Bauman62, um dos defensores da pós-modernidade, afirma que a falta de segurança e a perda da credibilidade da modernidade, inseridas numa sociedade de consumo em que as relações pessoais se dão em tom de fluidez e de maneira angustiante, caracteriza um novo patamar de Democracia.

Beck e outros63 defendem a existência de uma modernidade reflexiva, entendendo que a insegurança e incerteza suscitada por Bauman não são possíveis de revelar a mudança para uma pós-modernidade, pois esses mesmos elementos se encontram na modernidade. Para esse autor, a modernidade reflexiva serve para indagar as bases estruturais da modernidade, se localizando após a modernidade, mas antecedendo o estágio pós-moderno.

No entanto, concorda-se com a doutrina defensora da modernidade, sob o argumento de que se as promessas da modernidade sequer foram cumpridas, como se pode imaginar a transição para uma era pós-moderna? Isso é ainda mais grave em países latinos americanos, como é o caso do Brasil, de modernidade tardia. O reconhecimento da fluidez das relações pessoais, de uma mudança no conceito de cidadania não implica um novo estágio democrático, mas, sim, que a evolução ou adequação da Democracia Moderna será determinante para um processo penal justo.

Isso, além de tudo, reflete outro “calcanhar de Aquiles” do Estado Democrático de Direito, que diz respeito a sua efetividade ou o modo pelo qual deve buscar sua plenitude. Em apertada síntese, verifica-se que as teorias procedimentais e substancias são dois caminhos distintos que procuram realizar o Estado Democrático.

Os procedimentais, como pretende Habermas64, através da teoria do discurso, compreendem que o procedimento racional é o modus operandi real de concretização da Democracia Moderna. Os substancialistas-materiais, como é o caso de Streck65, centralizam seu comando de efetivação nos direitos fundamentais, defendendo que pouco importa o procedimento adotado, pois o significante mesmo é a eficácia dos direitos fundamentais pelos meios legítimos, sem dar tanta relevância para os procedimentos ou meios pelos quais se chegou ao resultado pretendido. Tavares, inclusive, aponta com exatidão de que forma se pode ter um procedimento racional que prima pela eficácia dos direitos fundamentais sem preterí-los, senão vejamos:

A configuração de um sistema jurídico racional só será conseguida mediante utilização conjunta de regras e princípio, de modo a estruturar um sistema de vinculação à lei, que será fechado na medida em que se veja complementado por princípios, de cujos parâmetros não se pode afastar a decisão jurídica. Como ainda assim esse modelo não pode servir de garantia de que em todas as decisões se proceda a uma vinculação entre o argumento utilizado e as regras e princípios, é indispensável que se construa sobre essas regras e princípios um modelo de procedimento racional, que pode ser entendido tanto como um procedimento não institucionalizado como o procedimento institucionalizado de direito judiciário66.

A importância da evolução do processo penal é uma forma de identificar os fundamentos democráticos que embasam os sistemas processuais penais, revelando a função, de acordo com o modelo adotado, que deve assumir o processo penal em um Estado Democrático de Direito.

 


 

5. CONCLUSÃO.

Consoante restou positivado, o processo penal tal como é concebido hodiernamente no Estado Democrático de Direito, surgiu em contraposição aos arquétipos postos em determinados momentos históricos, e essa evolução dos sistemas que se tem conhecimento hoje é fruto de frustradas experiências históricas de outros modelos. Esse entendimento visa, em última instância, garantir que o texto supremo não seja manejado de forma a retroagir para lapsos temporais medievais, em que não se preocupavam com o indivíduo enquanto ser específico e especialmente considerado. A situação jurídica atual, inclusive, exige uma visão futurística, pois o arcabouço jurídico já não é mais suficiente para tutelar no seu pleno os direitos individuais que são garantidos aos cidadãos67.

Nessa nova fase de evolução humana, não se deve larguear qualquer conjectura de um processo penal constitucional, se não aquele que visualize na norma fundamentadora a bússola que conduzirá todo o sistema de condenação. Devido processo legal, contraditório, ampla defesa, vedação às provas ilícitas, juiz natural, promotor natural, dentre as outras garantias deixam de ser meros indicadores do caminho a ser seguido para serem parâmetros obrigatórios68.

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Sobre o autor
Luiz Gabriel Batista Neves

Advogado Criminalista. Mestrando em Direito Público na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-Graduando em Ciências Criminais no Juspodivm. Professor de Processo Penal da Escola Superior da Advocacia da Bahia (ESA). Graduado em Direito pela Universidade Salvador. Presidente do Conselho Consultivo dos Jovens Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Estado da Bahia. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCcrim). Associado ao Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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