RESUMO: Este artigo possui como escopo a análise do princípio da motivação das decisões quando da concessão das tutelas de urgência, em sua dimensão substancial. Verificou-se que, para além de uma motivação apenas formal e aparente, a garantia em estudo determina um dever para os membros do Poder Judiciário, no sentido de que as motivações das decisões devem ser vinculados aos requisitos da tutela que se defere ou se denega.
Palavras-chave: princípio da motivação das decisões judiciais, negativa de prestação jurisdicional, tutelas de urgência.
1 INTRODUÇÃO
Como se verificará adiante, é inquestionável o status de garantia constitucional e de direitos humanos do princípio da motivação das decisões judiciais.
No entanto, a provocação para a redação deste trabalho é oriunda de uma inquietação frente a algumas decisões judiciais evasivas e lacônicas, que indeferem sumariamente os pedidos de liminares e antecipações de tutela, sem demonstrar um raciocínio lógico razoável em suas fundamentações.
Impende analisar, assim, se o princípio em estudo possui um significado que não se esgota na formalidade, possuindo uma dimensão substancial, a determinar que os magistrados demonstrem um raciocínio coerente com a concessão ou a denegação da tutela.
2 O PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS E AS TUTELAS DE URGÊNCIA
O art. 93, IX da Constituição da República estabelece o princípio da motivação das decisões judiciais, assim enunciado: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.
Não obstante, é comum o jurisdicionado deparar-se na prática forense com decisões judiciais que apenas mencionam, genericamente, que “ausentes os requisitos, indefere-se a tutela antecipada”, ou “presentes os pressupostos ensejadores da medida, defiro o requerimento liminar de fls. x".
Questiona-se, portanto, se este tipo de decisão atende à garantia sob estudo. Basta ao órgão julgador encerrar no ato decisório uma motivação formal, ou está ele jungido a uma obrigação de analisar elementos específicos para a concessão ou denegação de uma tutela de urgência?
Note-se que, no caso de tutelas de urgência, está em jogo a própria efetividade da tutela jurisdicional e/ou o próprio direito lesado ou ameaçado, a justificar, portanto, um tratamento diligente dos órgãos do Poder Judiciário.
A fim de elucidar a questão, há que se frisar que o dispositivo constitucional estabelece verdadeira garantia fundamental dos indivíduos: embora não inserido no rol de direitos e garantias fundamentais constantes do Título II da Lei Maior, a sua natureza permite que assim se considere. Com efeito, trata-se de verdadeira limitação do exercício de uma das expressões do poder estatal, a favor dos indivíduos.
Nesse sentido, temos a lição de Flávio Renato Correa de Almeida:
Não é apenas o art. 5° da atual CF, que trata das garantias do cidadão, sob o aspecto processual. […] Por óbvio, qualquer norma constitucional pode trazer garantias individuais ou coletivas, basta que o seu conteúdo assim o indique, inimportando sua posição no corpo da Constituição. […]
O conteúdo da norma (do art. 93, inc. IX) é nitidamente uma garantia do cidadão, apesar de inserido no capítulo referente ao Poder Judiciário, e que, prima facie, parece apenas uma determinação quase administrativa, destinada aos órgãos jurisdicionais.
Assim não o é.[1]
A razão de existir do princípio é simples. Se o poder de dizer o direito foi atribuído ao Estado, os cidadãos devem ter a garantia de que esse poder não será exercido arbitrariamente, ilegitimamente. Outrossim, se o indivíduo tem o direito de levar a sua pretensão referente a um direito lesado ou ameaçado ao Poder Judiciário, também tem o direito de saber as razões pelas quais a tutela lhe é negada ou conferida.
Tais verificações - de legitimidade da decisão e das razões de acolhimento ou rejeição da tutela – apenas são possíveis se a decisão for devidamente fundamentada.
Com base nesse entendimento, a doutrina ensina que a exigência de motivação das decisões judiciais tem dupla função:
a) endoprocessual, conforme a qual:
a fundamentação permite que as partes, conhecendo as razões que formaram o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão. [2]
b) exoprocessual, segundo a qual a fundamentação se presta a viabilizar o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo nome a decisão é proferida. “Não se pode esquecer que o magistrado exerce parcela do poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal, ao povo. [3]
Após examinadas as funções exercidas pelo princípio em apreço, as quais justificam a razão de sua existência, não há lócus para duvidar que todo jurisdicionado possui o direito fundamental a decisões judiciais devidamente motivadas.
Note-se que, devido a essa natureza de fundamentalidade, o princípio da motivação das decisões também deve ser interpretado sob o prisma da máxima efetividade dos direitos fundamentais, como leciona Canotilho:
A uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas, é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).[4]
Logo, não se pode entender como respeitado o princípio ora enfocado quando a decisão traz uma motivação apenas aparente, mas mal feita ou ilógica. Não se trata de defender que o princípio apenas será atendido quando a fundamentação for “correta”; mas se exige que os fundamentos da decisão permitam a percepção do raciocínio empreendido pelo magistrado, o caminho lógico perseguido que culminou no decisum.
Em outras palavras, a motivação deve ter conteúdo substancial, e não meramente formal. É muito comum, sobretudo quando da concessão ou rejeição de tutelas de urgência, que sejam prolatadas decisões mal fundamentadas, que equivalem à ausência de fundamentação, porque não permitem conhecer o caminho lógico percorrido que subsidiou a conclusão.
Nesse sentido, uma decisão que defere ou indefere um pedido de tutela de urgência apenas se encontrará efetivamente fundamentada se em sua motivação o magistrado demonstrar a presença ou ausência dos seus requisitos autorizadores.
A doutrina pátria é uníssona no sentido de entender não fundamentada uma decisão referente à tutela de urgência sem que se demonstre a presença de seus requisitos na motivação:
Essas decisões não atendem à exigência da motivação: trata-se de tautologias, que, exatamente por isso, não servem como fundamentação. O magistrado tem necessariamente que dizer por que entendeu presentes ou ausentes os pressupostos para a concessão ou denegação da tutela antecipada; tem que dizer de que modo as provas confirmam os fatos alegados pelo autor (e também, como já se viu, por que as provas produzidas pela parte contrária não o convenceram). Em outras palavras, o julgador tem que “ingressar no exame da situação concreta posta à sua decisão, e não limitar-se a repetir os termos da lei, sem dar as razões do seu convecimento”.[5]
Na mesma esteira de pensamento, Marinoni afirma:
Deverá o juiz precisar as razões pelas quais entende existir ou não o fumus boni iuris e o periculum in mora. Quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento, a decisão deverá explicar a razão pela qual ocorreu a opção (ou não) pela reaçozação antecipada do direito, valendo dizer que o juiz estará obrigado a fundamentar a sua valoração sobre os bens que devem ser ponderados.[6]
Trazemos à baila, ainda, o pensamento de Teori Albino Zavascki: “como ocorre em relação a todos os demais conceitos indeterminados, também cabe ao juiz demonstrar, circunstanciadamente, o porquê da relevância e do risco de ineficácia, e esse deve ser o conteúdo de sua fundamentação”.[7]
Em suma, a decisão que acolhe ou rejeita o pedido de antecipação dos efeitos da tutela sem demonstrar o exame dos seus pressupostos autorizadores CARECE DE FUNDAMENTAÇÃO, e incorre em negativa de prestação jurisdicional, em afronta ao art. 93, IX, da Constituição.
Em outras palavras, a decisão que acolhe ou rejeita uma pretensão de antecipação dos efeitos da tutela apenas poderá ser reputada devidamente fundamentada se sua motivação contiver o exame acerca dos requisitos que a autorizam.
É dizer: por exemplo, para indeferir os pleitos de tutela antecipada, a decisão deve demonstrar a inexistência dos requisitos da medida, insertos no art. 273 do Código de Processo Civil, no caso do processo individual, ou art. 84, §3°, da Lei n.° 8.078/90, caso se esteja no âmbito do processo coletivo.
O mesmo se pode dizer em relação a liminares com natureza cautelar: deve-se demonstrar a existência do fumus boni iuris e do periculum in mora, ou, ainda, dos requisitos específicos de determinada medida.
Assim, reitere-se: a única motivação aceitável para deferir ou indeferir esses pedidos de tutela de urgência é aquela que demonstra a existência ou inexistência dos requisitos ensejadores da medida, sob pena de se implicar negativa de prestação jurisdicional.
Nesse sentido, pede-se vênia para relembrar a lição de Calmon de Passos:
decisão sem fundamento ou sem fundamento aceitável como tal, no mínimo que seja, é decisão nula, que não obriga e deve ser reformada, inclusive via mandado de segurança, com punição do culpado por essa violência desnecessária a uma garantia constitucional básica.[8]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. O princípio da motivação das decisões é efetiva garantia constitucional, consubstanciado do art. 93, IX, da Constituição da República de 1988;
2. O princípio da motivação das decisões não deve ser interpretado apenas de modo formal, haja vista o seu conteúdo substancial, indispensável para que a garantia proteja o direito dos jurisdicionados com efetividade;
3. Não atende ao princípio em questão decisões que concedem ou denegam tutelas de urgência sem demonstrar o efetivo exame dos pressupostos ou requisitos autorizadores da medida;
4. Decisões judiciais que concedem ou denegam tutelas de urgência e que possuem fundamentação genérica ou insuficiente equivalem a negativa de prestação jurisdicional, podendo ser atacada por recursos próprios previstos em lei, ou mesmo por meio do mandado de segurança.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Flávio Renato Correa de. Da fundamentação das decisões judiciais. Revista de Processo, n. 67, p. 200, jul./set. 1992
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Liv. Almedina, 1991.
DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1994.
PASSOS, Calmon de. Reforma do código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 1996.
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 1997.
[1] ALMEIDA, Flávio Renato Correa de. Da fundamentação das decisões judiciais. Revista de Processo, n. 67, p. 200, jul./set. 1992
[2] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 290
[3] Idem, ibidem. p. 290
[4] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Liv. Almedina, 1991. p. 233
[5] DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 298
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1994. p. 62.
[7] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 203.
[8] PASSOS, Calmon de. Reforma do código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 205-206.