Sumário: 1. Introdução; 2. O Direito Romano; 3. O contexto histórico da Alemanha na Idade Média; 4. O fenômeno da recepção do Direito Romano; 4.1 O conceito da recepção; 4.2 O objeto da recepção e o papel dos glosadores e dos comentadores; 5. Conclusão; 6. Bibliografia
Palavras-chave: história – direito romano – recepção – Alemanha – glosadores - comentadores
1. Introdução:
Este artigo tem como objetivo tratar da recepção do direito romano, especialmente na Alemanha, no período da Idade Média, tendo como paradigma histórico-jurídico o estudo desenvolvido por Franz Wieacker em sua obra “A história do direito privado moderno”, traduzida por Botelho Hespanha.
Não se pretende analisar em pormenores o fenômeno da “recepção”, mas apenas apresentar em poucas linhas as razões de seu acontecimento e o seu objeto na Idade Média. Para tanto, serão abordados os fatores políticos e econômicos daquele contexto histórico que influenciaram decisivamente a recepção do direito romano na Alemanha, destacando o papel das universidades.
O sistema feudal estava em ruínas e os governos centrais (os reinados da época) precisavam encontrar meios para legitimar o seu fortalecimento e a concentração do poder. E para alcançar tal desiderato, os reis encontraram nos estudos e nas obras desenvolvidos pelas universidades européias na Idade Média, com destaque para a Universidade de Bolonha na Itália, uma forma de reconstrução de um direito para legitimar um Estado forte centralizado.
Assim, a busca de uma legislação geral e universal tinha como pano de fundo a diminuição de um direito local e fragmentário para incrementar o poder do Estado – desejo dos reis naquela época, sendo que o direito romano, pela sua estrutura e generalidade, se enquadrava perfeitamente nesse propósito de nova racionalização do direito europeu na Baixa Idade Média.
2. O Direito Romano:
No intuito de facilitar a compreensão daquilo que foi objeto de estudo e “recepção” na Idade Média, faz-se necessário uma breve menção ao direito romano.
Direito romano é um termo histórico-jurídico que se refere, precipuamente, ao conjunto de regras jurídicas observadas na Roma antiga e, mais tarde, ao corpo de direito aplicado ao território do Império Romano e, após a queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C., ao território do Império Romano do Oriente. (MARKY, 1995, p. 05)
A história do direito romano abarca mais de mil anos, desde a Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum, em latim, 449 a.C.) até o Corpus Iuris Civilis elaborado pelo imperador Justiniano I (c. 530 d.C.).
Cezar Roberto Bitencourt leciona que:
O primeiro Código Romano escrito foi a Lei das XII Tábuas, contendo ainda as normas do Talião e da composição, que resultou da luta entre patrícios e plebeus. Essa lei inicia o período dos diplomas legais. (2002, p. 283)
A Época Justiniana, por sua vez, foi de 530 a 565 d.C e justamente este último período que exerceu forte influência na Europa a partir da Idade Média.
O Corpus Iuris Civilis ou ainda Direito Romano Erudito foi uma obra fundamental, publicada entre os anos 529 e 534 por ordens do imperador bizantino Justiniano I, que, dentro de seu projeto de unificar e expandir o império bizantino, viu que era indispensável criar uma legislação geral e congruente que tivesse capacidade de atender às demandas e litígios vivenciados à época.
A referida obra era composta por 4 (quatro) partes: 1ª) o Código de Justiniano, que continha toda a legislação romana revisada e compilada; 2ª)o Digesto ou Pandectas, composto pela jurisprudência romana; 3ª) as Institutas, que representavam os princípios fundamentais do direito; e 4ª) as Novelas ou Autênticas, que seriam outras leis formuladas por Justiniano, contendo reformas importantes, como no direito hereditário e matrimonial.
Não é exagerado dizer que, se não fosse a compilação de Justiniano, talvez o conhecimento do direito romano não tivesse perpetuado, e suas influências nos direitos modernos não teriam acontecido.
O Ocidente veio a redescobrir o Corpus Iuris Civilis perto do ano de 1100. As compilações presentes na referida obra passaram a ser estudadas nas universidades recém-formadas, com destaque para a Universidade de Bolonha na Itália. Conforme será abordado em tópico específico, merecem referência os glosadores e os comentadores como estudiosos do direito romano, produzindo verdadeira ciência do direito na Idade Média. (Wieacker, 2004, p. 135)
Dessa forma, o Direito Romano, em função de sua organização e generalidade, foi se tornando o fundamento principal da ciência jurídica em toda a Europa e, aliando-se aos elementos do Direito Canônico, concebeu o Ius Commune, que significa Direito Comum para todo o Ocidente.
3. O contexto histórico da Alemanha na Idade Média:
A Alemanha entrou na Idade Média em situação de muito arcaismo, o que a distinguia dos outros principais países da Europa.
Co-herdeira do império carolíngio, a Alemanha era um reinado com características feudais em progressivo processo de enfraquecimento. Não havia centralização e racionalização da organização judiciária e administrativa, haja vista a passagem de toda administração e da jurisdição real para as mãos dos senhores locais e das cidades mais importantes. (Wieacker, 2004, p. 97-99)
O rei concedia aos grandes senhores feudais, como funcionários reais, o exercício do poder judicial, militar e de cunhagem de moeda.
Essa partilha do poder real implicou uma concetranção da feudalidade territorial no interior. O senhor territorial adquiriu jurisdição no respectivo território.
Nas palavras de Wieacker, a consolidação do Estado territorial tornou impossível o desenvolvimento de uma ordem jurídica alemã supra-regional (nacionalização), na medida em que concentrou a criação do direito nos vários territórios. (2004, p. 100-101)
O referido autor denominou a situação de pulverização do direito. O direito era permeado por normas casuísticas, locais, baseadas apenas nos costumes, na tradição e experiência. O juiz atuava como verdadeiro oráculo.
Ou seja, a autoridade dos antigos juízes alemães não se baseava na formação acadêmica, na teoria, na disponibilidade de um patrimônio conceitual, mas na experiência prática, sensibilidade e no conhecimento da vida, além da autoridade social. Era o chamado direito prático.
Com a progressiva diferenciação social e econômica da Baixa Idade Média, os vários domínios da vida passaram a ser menos facilmente apreensíveis e o seu sentido jurídico específico passou a ser captável com menos certeza. Teve então início das dúvidas jurídicas que levavam os juízes a pedir pareceres jurídicos a colégios mais célebres (faculdades de direito), pois não dispunham de respostas para solucionar tais questões.
O direito local, fragmentado, desprovido de racionalidade e cientificização não conseguia mais dar as respostas necessárias para a pacificação dos novos conflitos sociais e para as relações econômicas que se desenvolviam. A complexidade das relações sociais e a diversidade tinham de ser equacionadas.
O capitalismo mercantil dos séc. XII e XIII exigia, por sua vez, uma nova estrutura jurídica, mais adequada às novas relações econômicas emergentes. Havia a necessidade de um direito estável que garantisse uma efetiva segurança institucional e jurídica às operações comerciais.
Isso caracterizou, na visão de Wieacker, a chamada crise do direito prático. (2004, p. 115-117)
Surgiu, então, a necessidade de uma racionalização e cientificização do direito. O antigo juiz local perdeu seu prestígio a favor do corpo de juristas letrados formados nas universidades – ensino do direito. Por designação dos reis, que mantinham fortes contatos com as universidades, os juristas letrados começaram a ocupar os cargos na organização judiciária – conselheiros do rei, advogados, registradores de propriedade (direito notarial), todos voltados à centralização do poder.
A atuação dos juristas letrados naquela época ofereceu certeza lógica e racionalidade às decisões tomadas, conferindo maior segurança jurídica às relações sociais, econômicas e administrativas, que propiciaram o fortalecimento do Estado em formação.
Nesse contexto, as universidades mereceram importante destaque, pois foram consideradas um pólo de formação dessas pessoas.
Aliás, as universidades constituiram campo fértil para o desenvolvimento de estudos voltados para um direito mais organizado, racional e centralizado que o direito consuetudinário medieval.
Em outras palavras, foram principalmente as universidades que deram o caminho para a racionalização e organização do direito naquela época. Como lembra René David:
As universidades nunca pretenderam impor soluções romanas. Estas nunca foram instituições supranacionais encarregadas da aplicação do direito. Apenas declararam como era necessário conceber o direito, e, partindo dos textos romanos, procuraram mostrar qual era, segundo sua opinião, o melhor direito e como se podia chegar ao seu conhecimento. A sua obra foi apenas de persuasão; não consistiu na imposição da uniformidade pela via da autoridade. (1978, p. 72)
E o direito romano-justinianeu atendia a essa concepção do bom direito, organizado de forma racional e dotado de generalidade, o que favoreceu o estudo do direito romano erudito pelas universidades, conforme será destacado em tópico específico. A jurisprudência (ciência) romana opunha a generalidade e a abstração de sua legislação ao casuísmo do direito consuetudinário feudal.
O contexto histórico da crise jurídica da Baixa Idade Média na Alemanha propiciou, portanto, um campo fértil para o fenômeno conhecido como recepção do direito romano.
4. O fenômeno da recepção do direito romano:
4.1 O conceito da recepção:
A recepção constitui expressão, nas palavras de Wieacker, da continuidade da história universal do homem ou, pelo menos, da continuidade das grandes culturas. (2004, p. 130)
Não constitui simples adoção de uma ordem jurídica estranha por determinada sociedade. A recepção implica necessariamente assimilação e voluntariedade. A comunidade jurídica receptora é concebida como sujeito e não como objeto da recepção.
Em função da recepção do direito romano na Alemanha no final da Idade Média, os conflitos e as complexidades das novas relações sociais e mercantis passaram a ter suas resoluções baseadas em uma regra jurídica obtida racionalmente, e não mais com base nos valores creditados à tradição e aos costumes locais, e se constituíram em um sinal de que a vida pública alemã havia se racionalizado intelectualmente.
Por esta via chega Wieacker à sua tese principal: a recepção foi, na verdade, uma forma de organização científica do corpo do direito alemão.
4.2 O objeto da recepção e o papel dos glosadores e comentadores:
A recepção não foi uma simples transposição do direito Justiniano, tal como concebido na Roma antiga, para a Alemanha e grande parte da Europa medieval. A influência gerada pelo direito romano decorreu principalmente dos estudos realizados nas universidades europeias, destacando-se a escola dos glosadores e dos comentadores.
Os glosadores constituíram a primeira grande escola do período que se iniciou no século XII na Universidade de Bologna, na Itália. Dedicaram-se ao estudo do direito romano por uma metodologia analítica que tinha como principal objetivo preservar o texto ao explicitar o seu sentido literal através das chamadas “glosas”, o que repercutiu fortemente na construção racional do direito medieval.
A “glosa” era uma observação sobre o texto que não se desprendia dele diretamente. A literalidade do texto era o ponto de partida e também o ponto central do trabalho desenvolvido pelos glosadores, que tiveram grande importância no estudo racional do direito na Idade Média.
Originariamente, as glosas eram utilizadas para explicar uma palavra do texto. Os glosadores estenderam sua função para explicar toda a frase. O que se pretendia realmente era evidenciar a verdade irrefutável da autoridade do texto através da razão, como esclarece Wieacker. (2004, p. 48)
O papel dos glosadores merece ser ressaltado, uma vez que foi a partir do trabalho desenvolvido por eles que o direito começou a ser visto na Idade Média como fruto da racionalidade e da discussão intelectual, e não mais como meros costumes, fruto da experiência e hábitos locais.
Os comentadores ou pós-glosadores se destacaram, por sua vez, a partir do séc. XIV. Os comentadores influenciaram muito a cientificização do direito na Alemanha, ocupando em grande parte, na qualidade de juristas letrados, os cargos na organização judiciária – conselheiros do rei, advogados, registradores de propriedade (direito notarial), todos voltados à centralização do poder.
A atuação dos comentadores se diferenciou da dos glosadores, na medida em que o texto do direito Justiniano foi colocado como instrumento e não mais como o objeto do estudo.
A interpretação precisava superar a superficialidade literal das palavras para desvelar aquilo que uma leitura acrítica e isolada não podia mostrar. Assim, o estudo analítico dos glosadores foi suplantado por uma leitura sistemática que permitiu uma integração maior do direito.
O estudo desenvolvido pelos comentadores abriu, enfim, possibilidades para a construção racional de um direito voltado para a realidade social, para os problemas do dia a dia, buscando respostas às questões colocadas pela sociedade do final da Idade Média. Ou seja, o direito romano não foi estudado apenas como direito erudito, mas considerado efetivamente para modificar a realidade do direito medieval.
Dessa forma, eles tentaram construir um sistema jurídico racional e lógico, o que contribuiu muito para a concepção de um direito composto por normas gerais e abstratas, mais organizado, propício à centralização do poder. Na realidade, os estudos dos comentadores desenvolvidos nas universidades e suas atuações como juristas letrados a pedido dos reis daquela época propiciaram o fortalecimento das instituições do Estado ainda em formação.
É por isso que se pode afirmar que o direito romano antigo foi sendo alterado, transformado, reelaborado pelas interpretações e seleções nas universidades. Não se pode dizer mais que o que se estudava nas universidades era o direito romano tal qual existia na Roma antiga. A recepção proporcionada por tais estudos representou, na verdade, uma reelaboração, permitindo que o direito romano chegasse ao mundo medieval diferente, sendo transformado pela sociedade que o recebeu.
Assim, para Wieacker, o direito privado justinianeu foi recebido, mas foi essencialmente modificado na aplicação pelos estatutos e influências do direito comum europeu, mediante os comentários e interpretações dos glosadores e comentadores. (2004, p. 141/142)
A recepção do direito romano na Europa, especialmente na Alemanha, ocorreu muito mais na forma do que no conteúdo. A romanização significou a adoção de um estilo de pensamento, não necessariamente adoção das mesmas soluções jurídicas.
5. Conclusão:
Após breve análise do contexto histórico da Europa medieval, especialmente da Alemanha, a partir do paradigma delienado por Wieacker, é possível concluir que a “recepção” tratada pelo referido autor não teria sido decorrente da vontade do povo ou da mera da evolução do direito, mas como imposição de um novo direito à sociedade medieval por desejo dos reis para o fortalecimento do poder central, propiciando o início da formação dos Estados Nacionais e do absolutismo.
O direito medieval consuetudinário de caráter local, fragmentado, desprovido de racionalidade e cientificização não conseguia mais dar as respostas necessárias para a pacificação dos novos conflitos sociais e para as relações econômicas que se desenvolviam a partir da Baixa Idade Média.
Os reis precisavam, então, de uma solução para legitimar o desejo de concentração do poder, resolvendo a crise do direito prático. E encontraram nas universidades, através dos estudos dos glosadores e, principalmente, dos comentadores no Sec XIV (no caso da Alemanha), uma nova forma de (re)construção do direito, mais organizado e de caráter supraregional.
A Escola dos Glosadores e dos Comentadores (pós-glosadores) estudavam o direito justiniano e perceberam que a jurisprudência (ciência) romana opunha a generalidade e a abstração de sua legislação ao casuísmo do direito consuetudinário feudal. O fenômeno da recepção se deu a partir dos referidos estudos, os quais demonstraram uma nova forma de organização, racionalização e cientificização do direito.
Os reis se aproveitaram disso para manter contatos com as universidades, designando os estudiodos – denominados juristas letrados – para atuarem em cargos importantes, o que propiciou uma grande influência do direito romano nas novas instituições, nas decisões tomadas e, por conseguinte, no fortalecimento dos Estados em formação.
A recepção não significou a adoção pura e simples na Idade Média do direito romano e das soluções jurídicas definidas pelo Corpus Iuris Civilis, mas sim a incorporação da forma de pensamento, o que contribuiu fortemente para racionalização e (re)construção da ciência jurídica na modernidade.
6. Bibliografia:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral, Vol. I., 7ºed., São Paulo: Saraiva, 2002.
DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, 2ª ed., Ed. Meridiano Limitada, Lisboa, 1978, tradução de Hermínio A. Carvalho.
MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1995.
SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Aspectos da Chamada Recepção Prática do Direito Romano na Alemanha. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 05 de set. de 2000.
WEBER, Max. Economia e sociedade. vol.2. Brasília: UnB, 1999.
WIEACKER, Franz. A história do direito privado moderno. Traduzida por Botelho Hespanha, 2004.