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Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso

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18/06/2014 às 12:22
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6 – Conclusão

Já colacionamos acima que duas são as teses, com os respectivos argumentos de direito e de fato já esposados, que se contrapõem relativamente ao tema proposto neste trabalho. De um lado, a tese que advoga a possibilidade do Estado fazer incidir o tributo pertinente sobre determinado proveito fruto de um ilícito penal. De outro, a tese que pugna pela impossibilidade dessa tributação, afirmando que o perdimento de bens, enquanto efeito da condenação criminal, é que é o destino correto dos bens de origem criminosa.

Considerando que as duas teses expostas possuem argumentações igualmente fortes a seu favor, em nosso entendimento a solução para o deslinde da questão se encontra naquilo que Aristóteles afirmou ser um justo meio-termo.

Segundo o filósofo grego, nada deve ser em falta ou em excesso, tudo no meio termo, ou moderadamente. Pois na mediania estaria a concepção de virtude. “O excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto”, afirmou Aristóteles no Livro II da obra “Ética a Nicômaco”.

Portanto, no aspecto atinente ao presente trabalho, o justo meio-termo aristotélico estaria nem tanto pela possibilidade pura e simples de incidência de tributação nem tanto pela sua total impossibilidade quando se tratar de incidência sobre produto de crime. Faz-se necessário, sim, procedermos a uma atenta análise da situação-realidade que se apresenta concretamente para então concluirmos pelo instante, ou termo inicial, em que cada um dos institutos em comento terá incidência em detrimento do outro. Em outras palavras, e já adiantando a conclusão proposta, podemos afirmar que tanto a tributação quanto o perdimento de bens deverão ser aplicados diante do fato-base de que determinada pessoa auferiu proveito decorrente de uma atividade criminosa. Porém, cada um desses institutos terá um termo inicial diferente para sua incidência, pois não poderão ser aplicados simultaneamente. Cumpre, dessa forma, saber em que momento a tributação sobre o produto proveniente do crime se afastará e dará lugar à aplicação do perdimento de bens enquanto efeito da condenação criminal.

Expliquemos, portanto. Dispõe a lei sobre a perda em favor da União de todo bem ou valor que, direta ou indiretamente, o agente tenha auferido pela execução do crime. Podem ser confiscados, assim, não só as coisas subtraídas por furto ou roubo, como também as importâncias auferidas. Evidentemente, o produto do crime deverá ser restituído ao lesado ou ao terceiro de boa-fé, só se efetivando o confisco na hipótese de permanecer ignorada a identidade do dono ou não reclamado o bem ou valor.

Prossigamos. Impõe-se, pela sua singular relevância e pertinência, transcrever trechos da lição já acima colacionada da professora Misabel Abreu Machado Derzi, com grifos nossos:

(...) o correto é concluir que estando comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á a apreensão ou o seqüestro de bens, fruto da infração. (...) Não seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. (BALEEIRO, DERZI, nota da atualizadora; 2006, p. 715/716).

A partir da lição da professora Misabel, podemos extrair uma primeira importante conclusão: tem-se, como pressuposto inafastável para que haja a incidência do perdimento de bens enquanto efeito da condenação, que o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial esteja devidamente comprovado. Em outras palavras, que o Estado conheça efetivamente a origem criminosa dos bens e direitos.

Pois bem. Imaginemos uma situação em que determinada pessoa, através da prática reiterada do crime de estelionato, tenha, por exemplo, auferido renda, através da qual adquiriu uma bela mansão. O inquérito policial é instaurado, a denúncia é oferecida pelo Ministério Público e a sentença condenatória prolatada pelo Juiz transita em julgado. Nesta situação hipotética, podemos extrair dois momentos que devem ser devidamente distinguidos para que cheguemos à conclusão que será proposta: o primeiro momento se inicia a partir do instante em que o agente criminoso aufere os proveitos decorrentes de sua atividade criminosa e termina com o trânsito em julgado da sentença que o condenou por tal prática; o segundo momento, por sua vez, se inicia a partir do termo final do primeiro momento, qual seja, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Na situação hipotética acima, o primeiro momento será o da incidência da respectiva tributação sobre todos os proveitos auferidos pela prática do crime de estelionato. E este primeiro momento, frise-se, terá por termo inicial o instante em que o agente criminoso aufere os proveitos decorrentes de sua atividade criminosa, e, por termo final, o trânsito em julgado da sentença que o condenou por tal prática. Cumpre salientar que o fato de o Estado cobrar imposto neste momento não tem o condão de legitimar tal atividade criminosa e nem indica qualquer concordância em relação a esta situação fática.

Por sua vez, o segundo momento, que é a situação fático-jurídica mesma que a lei determinou fosse o caso da aplicação do perdimento de bens, terá por termo inicial o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pois é a partir daí que podemos afirmar, na esteira da lição da professora Misabel, que o Estado conhece a origem criminosa dos bens e direitos.

De fato, não poderia ser de outra forma. Ainda tomando por base o exemplo proposto, como não admitir que haja a incidência do imposto de renda (IR) e do imposto sobre a propriedade territorial urbana (IPTU) sobre os signos presuntivos de riqueza ostentados pelo agente criminoso ao longo do tempo que transcorreu entre a aquisição do proveito decorrente do crime e o respectivo trânsito em julgado da sentença condenatória? Ora, durante todo este período em que, frise-se, o Estado ignorava e desconhecia a origem ilícita daqueles bens e direitos, fatos geradores aconteceram, quais sejam, a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza” (art. 43 do CTN) e a “propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município” (art. 32 do CTN). E, como é cediço, uma vez verificada a ocorrência do fato gerador, verificado está o pressuposto fático a que a lei imputa a consequência de causar o nascimento do vínculo obrigacional tributário. Afinal, a relação jurídico-tributária, por corresponder à categoria das obrigações ex lege, surge com a realização in concretu, num determinado momento, de um fato, previsto em lei anterior e que dela (lei), recebeu a força jurídica para determinar o surgimento desta obrigação.

Entretanto, o mesmo não se pode afirmar a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Deste instante em diante, considera-se comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, e, do mesmo modo, presume-se ser o Estado conhecedor de tal fato. O pressuposto da aplicação do perdimento de bens está configurado, não havendo que se falar mais em fato gerador de qualquer exação fiscal. Desse instante em diante, o ordenamento jurídico, em toda sua coerência, unidade e harmonia, decidiu regrar os fatos com a incidência do perdimento de bens, a cujo domínio passa a se sujeitar aqueles mesmo bens auferidos através da prática de crime. Em outros termos, uma vez declarada procedente a ação penal de forma definitiva, surge a perda em favor da União dos producta sceleris, como efeito automático da condenação.

Pedimos vênia para, conclusivamente, citarmos mais uma situação hipotética a título de exemplo e ilustração do que neste trabalho defendemos. Assim, e.g., se determinado veículo foi adquirido com dinheiro oriundo de resgate de seqüestro, ou seja, se se tratar de proveito de crime, seu proprietário não estará sujeito ao IPVA a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória que o condenar pelo crime de seqüestro, decisão esta que, uma vez transitada em julgado, será o marco temporal entre a incidência do IPVA e a aplicação do efeito da condenação criminal consistente no perdimento de bens. Isto é, no caso proposto, o fato gerador do IPVA cessa a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a qual será o termo inicial de uma novel situação jurídica, qual seja, aquela pressuposto da aplicação do perdimento de bens (efeito da condenação).

Elucidativas são as palavras de João Pedro Ayrimoraes Soares Júnior[5]:

Se efetivada a persecução criminal, e punidos os infratores, plenamente restará assegurada a preservação da ordem jurídica e comunitária. Enquanto isso não acontece, porém, que, pelo menos, a capacidade econômica externada nesses proscritos atos contribua, como qualquer outra, para a manutenção do bem comum. Ou, caso tal contribuição não aconteça, que sinalize essa falta a própria prática do crime, como ocorreu ao Agente Eliot Ness, que somente conseguiu desmontar a máfia de Al Capone, a partir da comprovação da sonegação do imposto de renda.

Por fim, cumpre salientar que a exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para que o Estado deixe de exercer seu jus tributandi e passe a fazer valer o poder decorrente de seu jus puniendi se justifica pela indispensabilidade de que haja a demonstração inequívoca do vínculo entre a infração penal praticada e o proveito obtido (a coisa ou vantgem adquirida).  E esta demonstração inequívoca do vínculo entre um e outro, como é cediço, no nosso direito pátrio, só se considera atingida no momento em que a decisão penal transitar em julgado. Pois é através da coisa julgada que se chega à “imutabilidade do comando emergente de uma sentença” (LIEBMAN: 1984, p. 54), em que a decisão judicial transpõe os limites de mera situação jurídica para propiciar a eclosão dos seus efeitos principais e secundários com ares de certeza e definitividade. Enquanto isso não ocorre, ou seja, enquanto não restar demonstrado o inequívoco vínculo entre a infração penal e o proveito obtido, nada mais justo que sujeitar tais produtos provenientes do crime à correspondente regra de tributação.

Entendemos tratar-se, o aqui exposto, de solução que mais se coaduna com o princípio da consistência do ordenamento jurídico, enquanto limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado. Ademais é solução que viabiliza a compatibilização entre dois institutos apenas aparentemente antinômicos.


7 – Referências

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ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizado por Misabel de Abreu Machado Derzi. 7. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1993.

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JARACH, Dino. Curso Superior de Derecho Tributário. 1ª edição. Buenos Aires: Liceo Profesional Cima, vol. I, 1957.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Trad. bras. de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires.  3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

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MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Código Penal interpretado. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.


Notas

[1] Loteria, bingo e lavagem de dinheiro. Artigo publicada no Jornal do Brasil. Disponível em: http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=108767

[2] STEUERRECHT: 1973, pág. 202, 3ª edição, Munique, 1973, apud ROCHA, Joaquim Manuel Freitas. As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva. Sujeição a imposto dos rendimentos provenientes de actos ilícitos. Lisboa, 1998, pág. 86 – citado por Sérgio Baalbaki em artigo disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1556.

[3] http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/trabalhos2006_1/mariana_t.pdf

[4] - HC 77530/RS – Supremo Tribunal Federal; Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; Julgamento: 25/08/1998; Órgão Julgador: Primeira Turma.

    - HC 7.444/RS – Superior Tribunal de Justiça; Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 03.08.1998; Órgão julgador: Quinta Turma.

    - REsp 984607/PR – Superior Tribunal de Justiça; Relator Ministro CASTRO MEIRA; Julgamento: 07/10/2008; Órgão Julgador: Segunda Turma.

    - HC 83292/SP – Superior Tribunal de Justiça; Relator Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 28/11/2007; Órgão Julgador: Quinta Turma.

[5] Artigo jurídico disponível em http://www.appe.org.br/noticias/a-tributacao-dos-atos-nulos-anulaveis-ilicitos-criminosos-e-imorais-1567.asp

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Sobre o autor
Daniel Lin Santos

Natural de Belo Horizonte/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2008. Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Estudos da Área Jurídica Federal e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ingressou na carreira de Advogado da União pelo concurso de 2008, tomando posse em 10 de dezembro de 2010, com lotação e exercício na Procuradoria da União do Estado do Acre. Em 12 de janeiro de 2012, tornou-se Procurador-Chefe Substituto da Procuradoria da União do Estado do Acre. Desde março de 2014 está lotado na Consultoria Jurídica da União no Acre.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Daniel Lin. Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4004, 18 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28285. Acesso em: 22 dez. 2024.

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