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O princípio da primazia da realidade como instrumento da boa-fé objetiva, da tutela da confiança e da igualdade substancial na relação de emprego

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14/06/2014 às 11:30
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6 - Da igualdade substancial

Trata-se, a igualdade, de outro princípio constitucional, presente desde o prêambulo da Lex Mater até seu fim, e que, portanto, deve ser obrigatoriamente atendida no âmbito das relações jurídicas em geral. Ela se complementa junto às outras normas-valores no intuito de promover a solidariedade social e a dignidade da pessoa humana.

A Constituição ordena que a igualdade não apareça apenas como uma pretensão formal nas normas jurídicas, mas que seja efetivamente promovida, levando em consideração as desigualdades, para que, assim, essas normas se mantenham constitucionais. Deste modo, para atender às exigências constitucionais, a igualdade deve ser substancial.

Todavia, a igualdade não incide apenas sobre leis ou normas jurídicas, mas entre os particulares (MORAES, 2010). Portanto, todo contrato deve ser substancialmente igual entre as partes, fazendo um "tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam" (MORAES, 2010, p. 36).

Na relação de emprego, diante da disparidade econômica entre empregado e empregador, a igualdade substancial ganha relevante destaque, servindo como um princípio norteador desde o momento do acordo contratual, passando pela prestação e contraprestação dos serviços, até o momento da rescisão, considerando também os terceiros envolvidos, a exemplo dos próprios colegas de trabalho, clientes e a sociedade em geral.

Vê-se aqui que o valor principiológico da primazia da realidade, quando aplicado razoavelmente, pode funcionar como o fiel da balança na relação de emprego, pois assegura que as desigualdades ou desproporcionalidades sejam sanadas por meio da demonstração de verossimilhança nas alegações apresentadas pela parte insatisfeita, ressucitando, assim, o caráter sinalagmático do contrato de trabalho.


7 - Da ambiguidade de incidência do princípio da primazia da realidade

Em que pese a interpretação histórica, social e sistemática da primazia da realidade possa levar ao entendimento de ser tal princípio direcionado ao empregado, não significa que, em determinados casos, o empregador não possa invocá-lo em seu favor. Isso porque não se deve cometer o exagero de dar a esse instituto de proteção uma prerrogativa exclusiva do operário, deixando, assim, margem à possibilidade de injustas privações ao patrão.

Assim, conceder ao empregado uma maneira de obter vantagens desmerecidas, ao impedir o uso da primazia da realidade em favor do empregador, seria ir de encontro ao próprio princípio trabalhista. Pelo que esse visa primar pela realidade das condições de trabalho, sanando situações em que um dos sujetios da relação de emprego se prejudique por cumprir seu dever e não obter as devidas contraprestações.

Não tem procedência o argumento daqueles que defendem a inaplicabilidade do princípio da primazia da realidade em favor do patrão devido a uma eventual lesão ao princípio da condição mais benéfica ao trabalhador: Esse último princípio visa “proteger situações pessoais mais vantajosas que se incorporaram ao patrimônio do empregado, por força do próprio contrato de forma expressa ou tácita” (BARROS, 2009, p. 182).

Ora, se o empregado reclama do empregador sobre algo irreal, este não pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer sob o pretexto de se aplicar a condição mais benéfica, uma vez que essa condição nunca existiu. Dessa forma, inexistindo determinada situação alegada, nada há de ser incorporado ao patrimônio do empregado, e, portanto, a realidade se sobrepõe, nesse caso, em favor do empregador. Em outras palavras, não há de se falar em condição (seja mais benéfica ou não) daquilo que não existe.

Por outro lado, se o trabalhador passa a exercer suas atividades em condições menos benéficas em relação àquelas pactuadas no contrato, (nesse caso!) é bem verdade que não é dada ao empregador a utilização do princípio da primazia da realidade, uma vez que uma outra condição de fato existiu (quando seja, num momento anterior em que houve o pacto entre as partes). Contudo, sendo aquela condição contratada anteriormente mais benéfica, o princípio a ser utilizado é o da proteção.

O que não se pode olvidar é que existem situações em que o empregado litigue de má-fé - a exemplo do caso da folha de ponto que indica jornada de trabalho sobre-humana – ou que, simplesmente, exista uma dúvida, a princípio gerada pela incompletude de informações no contrato ou documento, e que, quando sanada a partir de uma análise dos fatos, enquadre o trabalhador numa situação que gere menos encargos ao empregador – que é exemplo o caso do motorista que exerce sua função não apenas para a parte contratante, mas para sua família: deixando de ser empregado comum para se enquadrar como doméstico, apesar de contrato em outro sentido.

Nesses casos são comuns os erros materiais ou a incompletude das informações, e não se pode dizer que alguma vez existiu condição mais benéfica – aqui dando entendimento de existência de condições trabalhistas àquelas previstas e contratadas entre os dois pólos da relação, pela livre vontade deles, o que, vale lembrar, pode acontecer tacitamente.

Nesse sentido, existe precedente judicial, do qual destacamos:

EMENTA: PEDIDO DE HORAS EXTRAORDINÁRIAS. JORNADA DE TRABALHO SOBRE-HUMANA DECLINADA NA EXORDIAL. NECESSIDADE DE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PRIMAZIA DA REALIDADE E DA RAZOABILIDADE EM FAVOR DO EMPREGADOR. Exageros processuais vêm sendo cometidos indistintamente por empregadores e empregados, razão por que o Julgador não pode ser um servil intérprete da letra da lei, mas deve ser capaz de aplicar a norma dentro de um contexto de realidade e de razoabilidade. Recurso não provido. (TRT-MT – RO-3184/99 – Rel. Nicanor Fávero, grifo nosso).

Ainda fazendo parte do acórdão o seguinte trecho:

Embora seja mais usual invocar tais princípios para a proteção dos direitos do trabalhador, nada impede que a aplicação de ambos os princípios seja feito (sic) em favor do empregador, como se deu nos caso (sic) destes autos[2].

Dessa forma, é certo dizer que se consubstancia deslealdade por parte do empregado o fato desse pretender utilizar documento com informações irreais em seu benefício, o que dá ensejo ao empregador invocar a primazia da realidade, se beneficiando desse valor do Direito Trabalhista.

Vale dizer que o documento aqui referenciado não é o contrato de trabalho - pois esse, se mais benéfico ao empregado, deve ser considerado em detrimento de outros (inclusive de leis!),[3] além de tratar-se em si dos ajustes das próprias condições de trabalho, o que não ocorre somente no início da relação de emprego, mas no dia-a-dia à medida em que surgem as necessidades empresariais – e sim os documentos acessórios ao contrato, exempli gratia, a folha de controle de frequência e de horários.

É que o princípio da primazia da realidade trata justamente da divergência entre os fatos e os registros formais, correspondendo aqueles ao contrato feito sucessivamente com o decorrer do tempo, que deve ser entendido como o pacto, o acordo, entre as partes para a execução do trabalho, sem se esquecer que ele pode ser tácito inclusive, e esses últimos aos documentos utilizados como registros dos fatos.

Portanto, a incidência do princípio da primazia da realidade sobre os dois pólos da relação de emprego apenas tende a reforçar a objetividade da boa fé e a tutela da confiança entre eles, além de promover o caráter sinalagmático dessa relação.


8 – Considerações finais

Concluindo, o princípio trabalhista em questão deve receber elevada importância dentro da tábua axiológica do Direito do Trabalho, além de plena aplicação, pois se figura como um poderoso instrumento da boa-fé objetiva na relação de emprego quando utilizado de forma equilibrada junto à razoabilidade[4], o que possibilita, assim, a promoção de um tratamento igualitário entre as partes - considerando as proporções de desigualdade - e o efetivo alcance da finalidade social do trabalho.

Finalmente, a primazia da realidade no Direito Trabalhista alarga a confiança entre os dois pólos da relação de emprego na medida em que assegura o reconhecimento das obrigações e deveres devidos oriundos de uma condição informal ou falsa na sua formalidade, além de relativizar o pacta sunt servanda - subordinando o contrato à realidade e à boa-fé objetiva - e promover a igualdade na relação entre operário e empresa, levando sempre em consideração que a finalidade de tudo é a dignidade da pessoa humana, a partir da interpretação razoável dos fatos.

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REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5ª Edição, revista e ampliada. São Paulo: LTR, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federetiva do Brasil, de 5 de outubro de 1988. In: PRÊSIDENCIA. Legislação. Brasília, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 18/12/2010.

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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. In: PRÊSIDENCIA. Legislação. Brasília, 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2002/L10406.htm. Acesso em 18/12/2010.

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BRASIL.Tribunal Regional do Trabalho (23ª Região). RO n.º 1260/99, Ac. TP n.º 3661/99. Relator Juiz João Carlos.Cuiabá-MT, 14 de dezembro de 2002. Disponível em http://jus.com.br/artigos/16675. Acesso em 15/12/2010

BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho (23ª Região). RO-3184/1999. Rel. Nicanor Fávero. Cuiabá-MT. 03 de maio de 2000. Disponível em http://www.trt23.gov.br/acordaos/2000/pb00019/RO993184.htm. Acesso em 18/12/2010.

COSTA, Patricia Ayub da; GOMES, Sergio Alves. O Princípio da Boa-fé Objetiva à Luz da Constituição. CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Disponível em http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/patricia_ayub_da_costa.pdf. Acesso em 18/12/2010.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 8ª edição, 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 26ª. São Paulo: Atlas, 2010.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25ª edição. São Paulo: Atlas, 2010.

SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.


Notas

[1]Conforme preleciona Barros (2009, p.187), o contrato de trabalho “é de trato sucessivo, ou seja, ele não se esgota mediante a realização instantânea do ato, mas perdura no tempo”.

[2]Na mesma linha: EMENTA: EMPREGADO DOMÉSTICO. PRIMAZIA DA REALIDADE. Se o reclamante sempre exerceu a função de motorista familiar, apesar de admitido como motorista da reclamada, prevalece para todos os efeitos a sua condição de doméstico, haja vista a tão decantada primazia da realidade, que é o princípio aplicável também aos empregadores e não somente aos empregados. (TRT 3 ª R. - RO 17.608/96 - 3ª T. - Rel. Juiz Marcos Heluey Molinari).

[3]Esse é o corolário do princípio da proteção, que deve ter como um de seus entendimentos o da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador. No contexto desse estudo, é importante salientar que documento (aquele que o princípio da primazia da realidade trata) não se confunde com norma. Norma é a fonte do Direito do Trabalho, é o regramento que incide sobre a relação de emprego.

[4]Martins (2010, p.62) explica que "O princípio da razoabilidade esclarece que o ser humano deve proceder conforme a razão, de acordo como procederia qualquer homem médio ou comum."

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Sobre o autor
Guilherme Nunes

Advogado. Pós-graduado em Direito Processual Civil. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Bahia – UNEB – Campus VIII – Paulo Afonso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Guilherme. O princípio da primazia da realidade como instrumento da boa-fé objetiva, da tutela da confiança e da igualdade substancial na relação de emprego. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4000, 14 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28288. Acesso em: 24 abr. 2024.

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