Análise da tênue distinção entre o crime de ato obsceno e o direito à liberdade de expressão

16/05/2014 às 08:10
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Analisando o contexto jurídico e os diferentes meios de manifestações sociais existentes na atualidade, o presente artigo analisa as nuances da sutil diferença existente entre a prática do crime de ato obsceno e o direito à liberdade de expressão.

ANÁLISE DA TÊNUE DISTINÇÃO ENTRE O CRIME DE ATO OBSCENO E O DIREITO À LIBERDADE EXPRESSÃO

O crime de ato obsceno, inserido no capitulo IV do Código Penal, denominado “Do ultraje público ao pudor”, é encontrado no artigo 233, e tem como tipo penal “praticar ato obsceno em lugar público, aberto ou exposto ao público”. O crime, que possui simples definição, apresenta traços de grande complexidade. O ato deve estar sempre ligado a linguagem corporal do sujeito, principalmente com conotação sexual.

Vamos, então, ao cerne literal do multifacetado termo “obsceno”. Segundo o dicionário Priberam online, obsceno é “aquilo contrário à decência ou ao pudor”, aquilo que é “indecente, desonesto, torpe” ou ainda “lascivo”. Já segundo o Michaelis, tem-se por definição como “atentatório ao pudor; impuro, luxurioso, sensual; torpe”. Em síntese, temos que obsceno é aquilo que ofende a moral pública. Porém como podemos verificar nessas duas definições, a simples delimitação literal do que pode ser considerado obsceno em pouco ajuda em uma análise mais profunda, uma vez que as definições dadas para o que é ser obsceno varia segundo diversos fatores que serão abordados mais adiante. Ainda sobre a definição do tipo penal em tela, temos o requisito do lugar público, que não apresenta grandes complicações. Local público é aquele em que todos possuem acesso irrestrito, salvo exceções. Como exemplo dessa ressalva, podemos citar um teatro em que esteja em cartaz uma peça que exiba partes do corpo desnuda dos seus autores. Apesar desse local ser classificado como público, não há ato obsceno neste local, uma vez que o telespectador que vai assistir a obra age conscientemente e livremente para assistir a peça, concordando em observar o que será exposto. Como exemplo, vejamos o julgado do STF, aonde o polêmico Gerald Thomas realiza gestos obscenos após como reação as vaias do público, ao fim de uma peça teatral. A condição de estarem em um teatro certamente influenciou na decisão pelo trancamento da ação penal, com um empate na decisão. Indubitavelmente, caso os gestos praticados pelo ator ocorressem em outro ambiente, a decisão seria diferente:

Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal).  Código Penal. 2. Simulação de masturbação e exibição das nádegas, após o término de peça teatral, em reação a vaias do público. 3. Discussão sobre a caracterização da ofensa ao pudor público. Não se pode olvidar o contexto em se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancar a ação penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a questão não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus. (83996 RJ , Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 16/08/2004, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 26-08-2005 PP-00065 EMENT VOL-02202-02 PP-00329 LEXSTF v. 27, n. 321, 2005, p. 365-383 RTJ VOL-00194-03 PP-00927).[1]

Desse modo, vemos que há diversas vertentes para se interpretar sobre a ocorrência ou não do crime de ato obsceno, e como já afirmado, o termo obsceno é o responsável pela grande complexidade desse tipo penal. A obscenidade varia de acordo com vários fatores: educação de uma nação, época, país, cultura, grau de instrução, dentre outros. Podemos exemplificar utilizando o exemplo dos bailes funks existentes em nossa nação. Enquanto esse tipo de música/evento cultural seria abominado em algumas comunidades do nordeste brasileiro, por ser imoral e antiético, ele será bem aceito em uma comunidade do Rio de Janeiro. Como já abordado, o que possibilita, em um mesmo país, visões diferentes de um mesmo tópico é a divergência cultural e social existente entre esses grupos sociais. Daí surge o questionamento de como se pode fixar o que pode se considerar ato obsceno em um país continental, com educação cultural totalmente diferente entre os Estados; o que é dificultado por estes não possuem autonomia para legislar penalmente - competência exclusiva da União.

Analisando ainda divergências culturais e sociais sobre temas não unânimes sobre ser determinados atos obsceno ou não, tais como o exemplo anteriormente dado, realizarei uma abordagem, doravante, de pontos não tão controvertidos em nossa sociedade. Tomemos como novo norte o exemplo de uma pessoa urinando em via pública. Sobre casos semelhantes a esse, a jurisprudência brasileira se posicionou em 2010, através de decisão da 2ª Turma Recursal Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que urinar na rua só é considerado ato obsceno se houver o dolo da conotação sexual na prática do ato. O juiz André Ricardo de Franciscis Ramos, relator responsável pelo caso ainda afirmou sobre o crime de ato obsceno que "sua caracterização se dá com a simples possibilidade de dano ao pudor público, e a consumação ocorre em um único instante. Mas, é necessário que haja o dolo". A 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distritos Federais decidiu de forma semelhante, conforme podemos observar no informativo em notícia publicada no informativo 229 do TJDFT:

A Turma deu provimento a recurso de apelação interposta por réu condenado pela prática de ato obsceno. Segundo a Relatoria, o acusado foi detido por policiais no momento em que urinava ao lado de um poste, em via pública, com as genitais à mostra, além de proferir as agressões verbais no momento da abordagem. Embora tenha considerado deplorável a conduta do réu sob o aspecto da saúde pública, o Juiz ressaltou que o crime de ato obsceno exige dolo específico em ofender o pudor alheio. Na esécio, os Julgadores concluíram que, não obstante o ato do acusado esteja fora dos padrões do bom comportamento social, não hoive ofensa à dignidade sexual. Nesse sentido, a Turma considerou inexistente a exposição pública para maculação do pudor público, elementar indispensável para a caracterização da infração penal. Dessa forma, ante a atipicidade material da conduta, o Colegiado absolveu o réu. (20110110695323 APJ, Rel. Juiz AISTON HENRIQUE DE SOUZA. Data do Julgamento: 17/01/2012). [2]

  Nesse ponto, há uma divergência na forma de pensamento, pois, para uns, dependendo da situação, esse ato se torna aceitável. Já outros consideram esse ato inaceitável independentemente da situação. Por outro lado, há situações que há uma preponderância em um modo de pensar sobre o tema, variando pouco independentemente da variação existente entre os fatores acima apresentados, como o nu total. A partir desse ponto, realizaremos uma análise de até que instante esse ato é legítimo, e qual o limite e circunstâncias toleráveis entre a liberdade de expressão e o atentado violento ao pudor.

Como outrora exposto, a nudez total, em via pública, é considerada, com superioridade pela população, como um ato obsceno, imoral, indecente, entre outros. Ocorre que pequenas minorias consideram essa atitude válida, tendo cada um desses conjuntos uma motivação para considerar a realização dessa atitude aceitável. Porém, devemos questionar se é válido aceitar como legítima uma ação considerada imoral e antiética pela grande maioria da população nacional, assim como considerada crime pela nossa legislação.

Para ilustrar esses casos, utilizarei de dois exemplos práticos. O primeiro ocorreu na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, quando em 21 de março deste ano alunos do Departamento de Artes ficaram completamente nus no campus central da instituição, alegando estarem realizando uma manifestação antropológica em homenagem a Semana de Antropologia da instituição[3]. O outro exemplo é o internacionalmente conhecido grupo Femmen, que será mais explicado adiante.

Fundado em 2008, em Kiev, na Ucrânia, o grupo possui tem como escopo utilizar da nudez, completa ou parcial, para protestar em desfavor de temas mais variados, que possuam na maioria das vezes alguma relação com o direito das mulheres, tais como política, aborto, racismo, homofobia, entre outros. O conjunto afirma que escolheu utilizar a nudez como forma de protesto por ser algo impactante, que não necessita de grandes projetos para chamar a atenção do público-alvo. O grupo, apesar de ser revolucionário nos seus métodos de manifesto, é considerado por muitos conservador em seus ideais – como, por exemplo, por ser contra a legalização da prostituição, apresentando uma dicotomia em sua formação.

Apresentado os exemplos, partimos para uma análise do caso. Os exemplos citados, como podem ser observados, apresentam objetivos louváveis – uma homenagem às artes e a defesa de causas nobres. O que é questionado, então, são os métodos aplicados para se atingir esses objetivos. Como já discutido anteriormente, o ato de expor a nudez em público fere a moral da grande maioria das pessoas, ferindo, dessa forma, a moral da sociedade. Há, sociológica e politicamente uma discussão sobre até que ponto a nudez é imoral, podendo ser questionada e punida. O principal argumento dos defensores da nudez quando se trata da nudez dos seios femininos é que as mulheres possuem os mesmos direitos dos homens, e que como não há mal algum nos homens mostrarem em público o peitoral, as mulheres não deveriam ser punidas por andarem com os seios a mostra.

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Juridicamente abordando, ainda não há uma posição majoritária na doutrina e na jurisprudência sobre a partir de que ponto a nudez passa a ser considerado crime. Nos Estados Unidos, já há decisões que consideram a nudez como forma de protesto legítima, pois nesses casos o direito à liberdade de expressão prevalece frente ao crime de indecent exposure, como ocorreu no caso John Brennan, em que o consultor de tecnologia resolveu retirar toda a sua roupa após passar por diversos constrangimentos no Aeroporto Internacional de Portland.

No Brasil, é unanimidade entre os doutrinadores que não há uma definição sobre o que é ou não considerado ato obsceno, sendo, dessa forma, uma conceituação meramente normativa, dependendo sempre de um juízo de valor – que será o do julgador – para definir se o ato praticado se encaixa ou não nos moldes do ato obsceno. Desse modo, o princípio da adequação social, que versa sobre as condutas que são socialmente aceitas e que não ofendem a nossa Carta Magna, é o norte para uma decisão mediada sobre o que é um pudor socialmente aceito ou não. Noronha, ao afirmar que a definição de pudor abrange o sentido geral da sociedade, “não tomando em consideração as pessoas de sensibilidade moral extraordinária de determinadas pessoas e grupos”, acaba por excluir desse grupo comum social os grupos que buscam a nudez completa como uma forma legítima de manifestação, uma vez que seu modo de pensar é minoritário dentro da sociedade. Destarte, como já dito que a conceituação de ato obsceno evolui segundo determinados fatores, temos uma maior aceitação social desses atos por parte da sociedade, o que acaba por fornecer uma certa legitimidade ao movimento.

Deve-se atentar, então, para os excessos, que devem ser evitados a qualquer custo. Simples atos realizados não podem ser considerados como obscenos, assim como atitudes demasiadamente obscenas não podem ser consideradas liberdade de expressão. O bom senso deve ser utilizado pelo julgador na hora de suas escolhas fundamentadas. Um exemplo de má qualificação do delito em tela foi um parecer proferido no Termo de Ajustamento de Conduta Criminal em São Paulo/SP, publicado no JTACrim/SP, 46, p. 348, em que o sujeito foi indiciado por soltar flatulências em público. Não é necessário dizer que esse julgado foi extinto posteriormente, uma vez que esse mero ato não é capaz de causar uma vergonha alheia, com conotação sexual. A nudez como forma de manifestação social, por ser algo novo em nosso país, ainda não apresenta jurisprudências ou posicionamentos doutrinários firmados sobre até que ponto o ato de manifestação deixa de ser uma liberdade de expressão e passa a ferir os direitos alheios, passando a se tornar um ato obsceno. Portanto, podemos afirmar que devem ser observados os parâmetros sociais e jurídicos para um correto julgamento dos casos que envolvam o crime em questão, não devendo a análise existente ser meramente legalista.


REFERÊNCIAS

Ato Obsceno. Ney Moura Teles Advogados. Disponível em: <http://www.neymourateles.com.br/direito-penal/wp-content/livros/pdf/volume03/14.pdf>. Acesso em 22 dez. 2013.

BONFIM, Edílson Mougenot; CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2004.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito: Parte Especial dos Crimes Contra a Pessoa a dos Crimes Contra o Patrimônio. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 11. ed. São Paulo: RT, 2007.

VERPA, Danilo. Ativistas do Femen estuprando como forma de protesto?. FolhaPress, 28 ago 2012. Disponível em: <http://direito.folha.uol.com.br/1/category/ato%20obsceno/1.html>. Acesso em 15 dez. 2013.


NOTAS

[1]Jus Brasil. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/767702/habeas-corpus-hc-83996-rj-stf>. Acessado em 10 dez. 2013.

[2] Informativo 229 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/jurisprudencia/informativos/2012/informativo-de-jurisprudencia-no-229/crime-de-ato-obsceno-dolo-especifico-de-ofender-o-pudor-alheio>. Acessado em 11 dez. 2013.

[3] Universitários ficam nus durante manifestação cultural na UFRN. Disponível em : <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/03/universitarios-ficam-nus-durante-manifestacao-cultural-na-ufrn.html>. Acessado em 11 dez. 2013.

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Sobre o autor
Lucas Bezerra Vieira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2015), inscrito na OAB/RN sob o n.º 14.465. Ex-presidente e atual membro da Comissão de Direito da Inovação e Startups da OAB/RN. Autor do livro “Direito para Startups: Manual jurídico para empreendedores” (ISBN 978-85-923408-0-3); e criador do site “Direito para Startups“, um dos primeiros portais do Brasil especializados na temática. Coordenador da Setorial Nacional de Empreendedorismo e Inovação do movimento Livres. Formação em Proteção de Dados e Data Protection Officer pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ. Advogado com atuação especializada no assessoramento jurídico empresarial, com foco em startups, empresas digitais e de tecnologia. Possui em seu card de clientes startups de renome nacional, participantes de programas de fomento ou aceleração como Endeavor Scale Up, Shark Tank Brasil, Inovativa Brasil, Estação Hack from Facebook, ACE Startups e grandes fundos de investimentos, entre outros. Mentor legal do Programa Conecta Startup Brasil, um dos maiores programas de aceleração de startups do Brasil (Softex) e do Distrito, maior ecossistema independente de Startups do Brasil. Palestrante e autor de artigos publicados em periódicos científicos, como também de artigos publicados em grandes portais nacionais (Estadão, Jota, Conjur, Migalhas, Jornal do Comércio…).

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