4. Ofensa à soberania e à ordem pública
Além dos vícios formais, a homologação da sentença arbitral estrangeira poderá ser denegada quando for constatado que: (i) segunda a lei brasileira, o objeto do litígio não é suscetível de ser resolvido por arbitragem (o que a Resolução STJ n. 9/05 denomina como “ofensa à soberania”, como mencionado alhures); ou (ii) a decisão ofende a ordem pública. É o que dispõe o art. 39, da Lei de Arbitragem, o art. V.2 da Convenção de Nova York, art. 6º da Resolução STJ n. 9/05, e também o que se extrai do art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
De acordo com a Lei de Arbitragem, art. 1º, a arbitragem poderá ser utilizada para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Trata-se de conceito aberto, que pode gerar diversas discussões que serão dirimidas de acordo com a interpretação de nossos Tribunais Superiores. Como bem pondera Carlos Alberto Carmona[40], “Considerando que ainda há muitas dúvidas a respeito do alcance do art. 1º da Lei, já se pode antever que os Tribunais terão campo aberto para o balizamento da matéria, de tal sorte que a amplitude da defesa contra a homologação de laudos estrangeiros ficará na dependência da interpretação que as cortes vierem a dar àquele dispositivo legal”.
A ordem pública, por sua vez, é, na definição de Vicente Greco Filho[41], o conjunto de princípios e normas essenciais à convivência nacional.
Neste aspecto, vale destacar a questão da ausência de motivação no laudo arbitral estrangeiro, apontada por Carlos Alberto Carmona[42]. Especialmente em países sujeitos à common law, a motivação não é obrigatória, ao contrário do que ocorre na legislação brasileira. Disso exsurge a discussão quanto à clássica manifestação de Alfredo Araújo Lopes da Costa[43] de que a motivação da sentença é preceito de ordem pública, o que levou o Supremo Tribunal Federal, por vezes, denegar a homologação de sentença estrangeira desmotivada[44]. Como bem observa Carlos Alberto Carmona[45], é preciso que os operadores da arbitragem internacional tenham as cautelas necessárias nos países em que a motivação não é obrigatória caso pretendam executar o laudo no Brasil, de maneira a harmoniza-lo com os requisitos de ordem pública.
Não será considerada ofensa à ordem pública, entretanto, a citação da parte residente ou domiciliada no Brasil que ocorrer na forma da convenção de arbitragem ou da lei processual do país onde se realizou a arbitragem, sendo admitida a citação postal com prova inequívoca de seu recebimento, desde que seja assegurado à parte brasileira tempo hábil para o exercício do direito de defesa (art. 39, parágrafo único, da Lei de Arbitragem).
BIBLIOGRAFIA:
BASSO, M. e POLIDO, F. B. P. (org.). Arbitragem Comercial – Princípios, Instituições e Procedimentos, Editora Marcial Pons, São Paulo, 2013.
CAHALI, F. J. Curso de Arbitragem, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011.
CARMONA, C. A. Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei n. 9.307/96, Ed. Atlas, 2ª edição, São Paulo, 2004.
FINKELSTEIN, C. Direito Internacional, Ed. Atlas, 2ª edição, São Paulo, 2013.
FINKELSTEIN, C. Homologação de Sentença Estrangeira e Execução de Carta Rogatória no Brasil, Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ed. Revista dos Tribunais, vol. 50, 2005.
GASPAR, R. A. Reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil, Ed. Atlas, São Paulo, 2009.
LEW, J. D. M. e MISTELIS, L. A. Arbitration Insights – Twenty Years of the Annual Lecture of the School of International Arbitration, Kluwer Law International, United Kingdom, 2007.
PINHEIRO, L. de L. Arbitragem Transnacional – A Determinação do estatuto da Arbitragem, Ed. Almedina, Coimbra, 2005.
PORTELLA, P. H. G. Direito Internacional Público e Privado, Ed. Podivm, 3ª edição, Salvador, 2011.
Notas
[1] No presente estudo, as expressões “sentença arbitral” e “laudo arbitral” são utilizadas como sinônimas e de maneira indistinta, terminologias que foram adotadas pela legislação pátria com significados equivalentes. Na redação original do Código de Processo Civil, era adotada a expressão “laudo arbitral”, que reforçava a dicotomia sentença X laudo, hoje não mais existente. A Lei n. 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”) também se refere a sentença arbitral, mas traz a expressão “laudo” com tal significado, em seu art. 33, § 2º, inciso II.
[2] Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei n. 9.307/96, 2ª edição, Editora Atlas, São Paulo, 2004, p. 278.
[3] O Brasil ratificou a Convenção sobre reconhecimento e execução das sentenças arbitrais estrangeiras de Nova York (1958), em vigor no país a partir de 23 de julho de 2002, por meio do Decreto n. 4.311/2002.
[4] A respeito da evolução da Arbitragem na América Latina, leia Horacio A. Grigera Naón (Arbitration and Latin America: Progress and Setbacks, in “Arbitration Insights – Twenty Years of the Annual Lecture of the School of International Arbitration”, coord. Julian D.M. Lew e Loukas A. Mistelis, Kluwer Law International, capítulo 19, pp. 393 a 454.
[5] Cf. Adriana Noemi Pucci, Arbitragem Comercial Internacional – A Lei Aplicável, in “Direito do Comércio Internacional – Pragmática, Diversidade e Inovação – Estudos em Homenagem ao Professor Luiz Olavo Baptista”, coord. Maristela Basso, Mauricio Almeida Prado e Daniela Zaitz, Juruá Editora, Curitiba, 2011, pp. 40-41.
[6] Curso de Arbitragem, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 364.
[7] O art. 35 da Lei de Arbitragem ainda menciona o Supremo Tribunal Federal como competente para a homologação de laudo arbitral estrangeiro, mas, a partir de 2004, com a EC 45, tal dispositivo deve ser interpretado como se mencionando o Superior Tribunal de Justiça: “Art. 35. Para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, unicamente, à homologação do Supremo Tribunal Federal.”
[8] Cf. Renata Alvares Gaspar, Reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil, Editora Atlas, São Paulo, 2009, p. 96.
[9] “Artigo VII
1. As disposições da presente Convenção não afetarão a validade de acordos multilaterais ou bilaterais relativos ao reconhecimento e à execução de sentenças arbitrais celebrados pelos Estados signatários nem privarão qualquer parte interessada de qualquer direito que ela possa ter de valer-se de uma sentença arbitral da maneira e na medida permitidas pela lei ou pelos tratados do país em que a sentença é invocada. (...)”
[10] V. art. 37 da Lei de Arbitragem, artigos IV.1 e IV.2 da Convenção de Nova York e art. 3º da Resolução 09/2005 do STJ.
[11] O STJ já extinguiu processo de homologação de sentença arbitral estrangeira sem o julgamento de mérito no caso em que a requerente sequer fora mencionada na sentença arbitral homologanda como parte (SEC 968/CH, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer, j. 30.06.2006).
[12] V. art. 4º da Resolução 09/2005 do STJ. Tal artigo prevê a possibilidade de homologação parcial da sentença, assim como admite as tutelas de urgência no procedimento de homologação.
[13] V. art. 5º da Resolução 09/2005 do STJ.
[14] Art. 9º, § 1º, da Resolução n. 9/2005 do STJ.
[15] Art. 10 da Resolução n. 9/2005 do STJ.
[16] V. também: STJ, SEC 4213/EX, Corte Especial, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 19.06.2013; SEC 507/GB, Corte especial, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18.10.2006; SEC 3035/FR, Corte Especial, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 19.08.2009; SEC 6335/EX, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer, j. 21.03.2012.
[17] Art. 6º da Resolução n. 9/2005 do STJ. Veja que o STJ define a ofensa à soberania para o caso de o objeto em litígio não poder ser submetido a arbitragem na legislação brasileira.
[18] Art. 40. A denegação da homologação para reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira por vícios formais, não obsta que a parte interessada renove o pedido, uma vez sanados os vícios apresentados.
[19] Conforme artigos 37 e 38 da Lei de Arbitragem. Semelhante previsão é encontrada no art. V da Convenção de Nova York.
[20] Sobre a aplicação do Direito Internacional Privado, vale reproduzir a ponderação de Francisco José Cahali (in op. Cit., p. 367 – em nota de rodapé n. 15) no sentido de que a Convenção de Nova York diz “conforme a lei que às partes é aplicável, e, desta forma, a identificação da capacidade é de acordo com a Ordem do local do reconhecimento, que, entre nós, é a Lei de Introdução.”
[21] op. cit. p. 368.
[22] Idem pp. 369-370.
[23] Por exemplo, se é preciso que seja constituída por escritura pública ou instrumento particular subscrito por duas testemunhas.
[24] Se a lei aplicável permite que a controvérsia seja submetida a arbitragem.
[25] V. também STJ, SEC 3660, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 28.05.2009.
[26] A Convenção de Nova York tem dispositivo semelhante no art. V.1, (d), que prevê que a homologação será negada quando “a sentença se refere a uma divergência que não está prevista ou que não se enquadra nos termos da cláusula de submissão à arbitragem, ou contém decisões acerca de matérias que transcendem o alcance da cláusula de submissão, contanto que, se as decisões sobre as matérias suscetíveis de arbitragem puderem ser separadas daquelas não suscetíveis, a parte da sentença que contém decisões sobre matérias suscetíveis de arbitragem possa ser reconhecida e executada.”
[27] Reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras no Brasil, São Paulo, Ed. Atlas, pp. 165-166 – Apud Francisco José Cahali, op. cit., p. 170.
[28] “Art. 19. Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários.
Parágrafo único. Instituída a arbitragem e entendendo o árbitro ou o tribunal arbitral que há necessidade de explicitar alguma questão disposta na convenção de arbitragem, será elaborado, juntamente com as partes, um adendo, firmado por todos, que passará a fazer parte integrante da convenção de arbitragem.”
[29] “d) a composição da autoridade arbitral ou o procedimento arbitral não se deu em conformidade com o acordado pelas partes, ou, na ausência de tal acordo, não se deu em conformidade com a lei do país em que a arbitragem ocorreu;”
[30] Na SEC n. 5782/AR, ainda em andamento no STJ, Corte Especial, o Ministério Público Federal se pronunciou, em parecer datado de 26.11.2012, no sentido de que a sentença arbitral estrangeira anulada no local da arbitragem não pode ser reconhecida no Brasil. De acordo com o artigo V(e) da Convenção de Nova York, ratificada pelo Brasil, um país poderá negar obrigatoriedade à sentença arbitral estrangeira que tenha sido anulada ou suspensa no país em que ela foi emitida.
[31] V. The Baker & Mackenzie International Arbitration Yearbook 2012-2013, in “Brazil” – Joaquim de Paiva Muniz, Luis Alberto Salton Peretti e Leonardo Mäder Furtado, Juris, New York, pp. 81-82. Os autores, nas notas de rodapé ns. 17 e 18, relacionam casos da França e dos Estados Unidos em que tal situação poderá ser verificada, como exemplo: (i) França: Omnium de Traitment et de Valorisation – OTV v. Hilmarton. França, n. 24. [Court of Appeal], Versailles, 315; 316, 29 de junho de 1995, in Albert Jan van den Berg (ed), Yearbook Commercial Arbitration 1996 – Volume XXI (Kluwer Law International 1996), pp. 524-531; e (ii) Estados Unidos: Chromalloy Aeroservices Inc. v. the Arab Republic of Egypt. US n. 230, District Court of Columbia, Civil n. 94-2339 (JLG), 31 de julho de 1996, in Albert Jan van den Berg (ed), Yearbook Commercial Arbitration 1997 – Volume XXII (Kluwer Law International 1997), pp. 1.001-1.012.
[32] STJ, SEC 507/GB, Corte especial, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18.10.2006.
[33] STJ, SEC 507/GB, Corte especial, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18.10.2006.
[34] STJ, SEC 507/GB, Corte especial, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18.10.2006.
[35] STJ, SEC 6335/EX, Corte Especial, Rel. Min. Felix Fischer, j. 21.03.2012.
[36] STF, Tribunal Pleno, SEC 6753/UK, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 13.06.02.
[37] STF, Tribunal Pleno, SEC 5378/FR, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 03.02.00.
[38] STJ, Corte Especial, SEC 856/EX, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 18.05.05.
[39] STJ, Corte Especial, SEC 833/EX, Rel. Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, j. 16.08.06.
[40] Op. cit., p. 379.
[41] Direito Processual Civil Brasileiro, vol. 2, Ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 415.
[42] Op. cit., pp. 379-381.
[43] Direito Processual Civil Brasileiro, vol. III, 1945, p. 22 – Apud Carlos Alberto Carmona, op. cit., p. 380.
[44] RTJ, vol. 95, pp. 34-38; vol. 119, pp. 597-601; RT, vol. 579, pp. 221-225.
[45] Op. cit., pp. 380-381.