«"¿Por qué continúas predicando, si sabes que no puedes cambiar a los malvados?", le preguntaron a un rabino."Para no cambiar yo", fue su respuesta.»
NORMAN MANEA
Há várias questões sobre a corrupção que são importantes e que merecem uma atenção deliberada. Mas o que aqui importa – e reconheço que quando escrevo sobre a corrupção sai o pior de mim – é ressaltar o significado do peculiar sentido da não percepção de injustiça e da falta de indignação gerado pela compra-venda de um comportamento degenerado que deixa de estar vinculado aos valores morais e coletivos e passa a depender de forma espúria de interesses meramente privados e exclusivamente econômicos.
É que embora a corrupção seja um “lugar comum” da retórica ordinária que contribui para nutrir nossa própria miséria, há certas questões, de importância muito evidente, que quase nunca se concebem. Por exemplo, por que os cidadãos e as instituições que efetivamente dispõem das condições favoráveis para denunciar e combater a corrupção seguem em sua grande maioria apáticas e indiferentes a este tipo de prática que constitui um atentado direto à qualidade de vida dos cidadãos? Por que insistimos em encontrar consolo na esquizofrênica tentativa de purificação institucional e social provocada pela crescente idiotização da cobertura mediática sobre os “escândalos” de corrupção levados a cabo por políticos e funcionários que, locupletando-se dos “benefícios” da corrupção e sem nenhum tipo de escrúpulo, multiplicam seus patrimônios “estando dentro do governo”?
A resposta que provisoriamente me vem à cabeça é que resultam sumamente significativos os silêncios, toda vez que parecem revelar um turvo mundo de insolvência moral, de interesses e dominações, cumplicidades múltiples e ganâncias colaterais, impotências aprendidas e insensibilidades voluntárias. Intitulo esse tipo de fenômeno de banalidade da indiferença ou passividade dos triviais.
E uma vez que desde 1755 o modo de atuação de Deus no mundo desapareceu do debate público geral como causa dos males experimentados (J. Shklar), a essas gentes insensatas, desinteressadas e alheias a todo cuidado ético lhes falta isso que se denomina de referência moral ou normativa reflexiva. Não exercem nenhuma crítica, nem se opõem jamais a nada e nem por nada lutam que não lhes afete diretamente, porque carecem de pautas morais e normativas sobre o que está bem ou mal. São perfeitamente apáticos em seu diário acontecer e fazem da indiferença uma virtude pública.
Sim, podem por tradição ou cumprindo as regras convencionais ir à missa ou “compartir” algum tipo de manifestação em suas redes sociais, mas não se vêem cúmplices descuidados da cidadania e nem tão pouco são conscientes do bloqueio de seus sistemas morais em todos os sentidos; simplesmente não se entusiasmam nem se rebelam quando tudo se derruba ao redor. São os passivamente injustos que não se indignam, que não reagem ou informam de delitos, os que miram a outro lado ante a desonestidade e o enriquecimento injusto, ou bem os que toleram a corrupção de seus amigos ou aceitam, com gesto bovino, situações a sabendas de que são injustas, torpes e/ou oportunistas. (J. Shklar)
Estou falando de uma perigosa categoria de seres humanos que nos rodeiam por todas as partes: a dos que não são nem bons nem maus, senão banais, moralmente inertes, obedientes e planos, silenciosos porque não sabem o que dizer nem, portanto, o que se poderia e deveria fazer; dos que sua principal versão é a indiferença e, com ela, a irresponsabilidade de negar-se a aquilatar responsabilidades próprias e alheias; dos que são incapazes de buscar mecanismos adequados, honrados e inteligentes que não somente coincidam com os fins morais buscados senão que também tenham um valor próprio ou um fim em si mesmo, isto é, um meio que valha a pena realizá-lo por si mesmo. Vanitas vanitatum et omnia vanitas.
Quantos indivíduos há em tal situação? São muitos os que são assim? Não podemos negar que há muita gente assim circulando pelo mundo. Esses são os estúpidos ou idiotas morais. Mas há ainda piores. Pois piores são os parasitas que praticam direta ou indiretamente a corrupção: o hipócrita moral, aquele que, incapaz de perceber a dimensão da injustiça que pratica, capta o irracional e associal de sua atitude, mas é assustadoramente egoísta e busca a justificação para seus atos nos rincões mais escuros de sua mente doentia; aquele que seu comportamento perverso, imoral, cínico e perigoso não pode suportar que a luz da virtude brilhe com demasiada força no fascinante mundo da imoralidade.
Para um político ou funcionário corrupto, pelas deficiências e defeitos de seu próprio caráter, já não há um sentido do bem nem do mal, não há sensação de culpabilidade por atos ilegais nem infernos por atos imorais: a bússola moral desses indivíduos perde o norte. As limitações habituais da maldade e dos impulsos desonestos se diluem nos excessos da impessoalidade. O cinismo se impõe por encima do nível moral que reservamos a nossos congêneres verdadeiramente humanos e a percepção de impunidade suspende a consciência ética e o sentido de dever, desvaloriza a dimensão da responsabilidade pessoal, da obrigação, do compromisso, da fides, da boa fé, da moralidade, do sentimento de culpa, da vergonha e do medo.
E se, ademais de todos esses fatores, a situação e as circunstâncias, sua função institucional ou alguma autoridade lhe dá permissão para atuar de maneira antissocial e desonesta contra outras pessoas, um agente corrupto sempre estará disposto a “fazer a guerra” em benefício próprio. Em resumo, não há aqui a menor consideração à advertência de Demócrito de que em um ato de maldade devemos envergonhar-nos principalmente diante de nós mesmos e que há uma regra que deve figurar como lei às portas da alma: “nada hacer que sea indigno”.
Claro que isso são descrições e qualificações de caráter geral acerca de políticos e funcionários afetados por um arrogante narcisismo, uma pervertida egolatria (que é indício de que não se lhes consumou o desenvolvimento moral que faz do indivíduo um sujeito moralmente adulto) e que padecem de uma forte incapacidade para o pensamento abstrato (p. ex., Estado, ética pública, honradez, dignidade moral, etc.). Mas também convém colocar-se no ponto de vista interno; isto é, tratar de analisar a psicologia do “cidadão” corrupto, desses homens e mulheres sem dignidade.
E o mais assombroso de tal atitude subjetiva é que o corrupto não costuma ser consciente ou ignora deliberadamente essa sua natureza imoral. Quando eu me enriqueço injustamente à custa do cargo que exerço, não vou ficar pensando ou dizendo todo o tempo a mim mesmo que sou um canalha desonesto, um hipócrita e um empedernido criminoso. Não! Confabularei e tecerei uma rede de justificações e racionalizações: que ao fim e ao cabo todos fazem o mesmo e que não serei o pior dos mortais por fazer parte desse “espírito compartido”; que pareceria “anormal” ou muito insensível de minha parte rechaçar alguma “lembrancinha” ou "dinheirinho" que me passa alguém em troca de uma “ajudinha” para violar (com "jeitinho” e sem que a humanidade se inteire) uma norma legal e constitucional; que a gente geralmente tem o que se merece e que deve aprender a viver e a aproveitar as oportunidades...[e não duvido que muitos, por segurança, ainda rezam para algum Deus (necessariamente) indiferente ao mal moral]. É assim! Aos corruptos lhes costuma faltar olfato para essas coisas suas. (J. A. García Amado)
O problema é que o comportamento humano também é compatível com a hipótese contrária: alguns políticos e funcionários são claramente honrados, não atacam a moral, não traem a ideia de virtude e não se empenham em destruir tudo aquilo o que uma sociedade decente defende. Embora existam razões suficientes para acreditar que estes tipos de políticos e funcionários sigam sendo uma espécie ameaçada, a mera existência dos mesmos deveria ser suficiente para pôr em dúvida as posturas que tendem a apresentar ao ser humano como animado única ou primordialmente por seu próprio interesse egoísta, ou como se diz agora com feio anglicismo, “auto-interesse”.
Então, o que haveria que fazer com essa escória que atenta deliberada e maliciosamente contra a cidadania e os direitos fundamentais, enfraquece a república, destrói a institucionalidade democrática, impede a igualdade de oportunidades, o exercício das liberdades e acentua as desigualdades? É razoável conceber a atividade pública, que pretenda ser digna de algum crédito na atualidade, desvinculada do caráter e da virtude moral do político ou funcionário em um Estado que se diz republicano?
O primeiro que me ocorre é perguntar se em realidade os atuais recursos legais são suficientes para exterminar esse tipo de prática. Parece que não. De fato, enquanto comportamentos desse calibre não se eliminem, seguirão em evidência esses monstros talhados pelas circunstâncias de um Estado que, de modo dissimulado, parece tolerar, incentivar e proteger o desbarate egoísta e malicioso da usurpação pessoal dos recursos públicos. E posto que donde se tolera o pior é normal reclamar tolerância para o “mal menor”, a lição é inapelável: não há que considerar que um ato individual e continuado de desonestidade seja algo insubstancial; que importa tanto desalentar, perseguir e punir as grandes como as “pequenas” e mais generalizadas formas de corrupção que nos afetam a todos a maior parte do tempo.
Todos sabem que a corrupção é um ato de maldade que depende de um sistema de relações e de organização em que os laços e as fidelidades pessoais, corporativas e/ou políticas contam mais que qualquer consideração institucional, jurídica e de interesse geral. Um ato de poder que, atuando por encima dos princípios e normas de um Estado de Direito, viola sistematicamente as expectativas dos bons cidadãos; um comportamento que debilita a coesão social ao carcomer paulatinamente um conjunto de valores importantes para a sociedade, gerando altos e intoleráveis níveis de paranóica desconfiança.
É verdade que a corrupção sempre existiu e seguirá existindo. Mas tal coisa não exime a nenhum Estado de desenhar e desenvolver todo um conjunto de dispositivos institucionais para tratar de erradicá-la, de minimizar seu alcance e de castigar todos os atos de corrupção que estão contaminando de parcialidade, hipocrisia e cinismo a maior parte ou todas as instituições que poderiam pôr controle ou fazer justiça, começando precisamente pela Justiça.
Também depende, nesse momento de desgaste e de desmoralização profunda e crescente do Estado, de se os cidadãos e as instituições que efetivamente dispõem das condições favoráveis para tanto seguem ou não em sua maioria apáticos, indiferentes e impotentes a este tipo de conduta de indivíduos vinculados à administração pública que, no uso de suas prerrogativas funcionais, direta ou indiretamente, obtêm e utilizam de forma fraudulenta, desonesta e imoral recursos ou meios públicos para enriquecimento pessoal. Quero dizer, de se falhamos ou não como cidadãos, porque se a democracia significa algo moralmente, tal significado será que importam as vidas de todos os indivíduos e que o sentido que têm de seus direitos deve prevalecer.
Este é o verdadeiro custo de vigiar e denunciar as práticas corruptas levadas a cabo por políticos e funcionários correntes (por esses indivíduos “terrorífica y terriblemente normales”, para usar a expressão de H. Arendt) e o motivo de que tenhamos que estar mais alerta em nossos esforços por combater as infrações aparentemente mais insignificantes, mas que geram (simultaneamente) um “injusto enriquecimento” e um “injusto empobrecimento”.
Em cada uma de nossas pequenas atitudes (de diligência e controle) se expressa a necessidade de que os abusos cometidos por funcionários corruptos sejam evitados e sancionados, porquanto comprometem e enfraquecem a confiança dos cidadãos não somente na Administração Pública, senão também no próprio conjunto do Estado de Direito. De resto, os deslizes éticos de qualquer político ou funcionário (do mais insignificante ao mais proeminente), quando se acumulam dentro de uma pessoa, em muitos indivíduos ou em determinados grupos, acabam por transmitir o sinal de que é aceitável comportar-se mal a grande escala.
Recordemos que tanto os atuais modelos teóricos como as provas experimentais indicam que, à falta de castigo, a solidariedade mútua e o significado social de uma vida digna não se sustentam em presença de aproveitadores, e decaem. Com o fim de que sobreviva a cooperação social, é imprescindível e iniludível condenar e punir os desonestos. Se a responsabilidade e o castigo se eliminam, a sociedade se desmorona (M. Gazzaniga). A mera possibilidade de aplicar uma penalização não só favorece atuações morais senão que funciona como uma forma eficaz de incrementar a cooperação: a moral e a cooperação prosperam se o castigo é possível e deixam de funcionar se é eliminado (P. Churchland). Dito de outro modo, a virtude unifica, os vícios dispersam e o castigo corrige.
Por tudo isso é que devemos abandonar nossa cômoda impassibilidade. Não há que esperar a intervenção do “Espírito Santo”, castigo divino ou a contemplação do sofrimento e da desgraça da corja de corruptos no inferno para reagir contra o flagelo da corrupção. Lutemos para recuperar a capacidade de nossa consciência moral para perceber injustiças, vigiar, denunciar, perseguir, julgar e castigar indistintamente e sem piedade todo e qualquer agente corrupto, e, quiçá, poderemos chegar a ver um tempo “en que sobre las ruinas de la corrupción se levantará la esplendorosa mañana del mundo emancipado, libre de todas las maldades, de todos los monstruosos anacronismos de nuestra época y de nuestras caducas instituciones”.(S. Fielden)