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A lei 10.259/01 e a competência dos juizados especiais criminais estaduais

01/04/2002 às 00:00
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Lei Federal 10.259/01. Aplicação de princípio despenalizador previsto em lei especial. Conceito de crime de menor potencial ofensivo. Competência do Juizado Especial Criminal Estadual.

O princípio despenalizador da transação penal, previsto na Lei 10.259/2001, é aplicável na Justiça comum, também aos processos já iniciados, para delitos com pena máxima não superior a 2 anos, inclusive aos processos com rito especial, vez que não ressalvados (art. 2º, parágrafo único). A aplicação, pelo princípio constitucional da igualdade (paridade), deve ocorrer para as situações equivalentes, assim consideradas as infrações penais com único bem jurídico tutelado, que podem ser julgados pela Justiça Estadual ou Justiça Federal.

A Lei 10.259/2001 não alterou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, previsto no artigo 61, da Lei 9099/95, vez que ambas são leis especiais, cuja vigência desta foi ressalvada por aquela. A competência do Juizado Especial Criminal não restou alterada, pela edição de norma penal destinada a regular situações específicas. Impossibilidade de utilização da analogia, quando existe lei específica, disciplinando a situação concreta. O Juiz não pode atuar como legislador positivo, ampliando os efeitos de norma para outras hipóteses não contempladas.

Com a vigência da lei que institui os Juizados Especiais na Justiça Federal, necessária a definição do alcance da referida norma, até em razão de que precipitadas conclusões poderão direcionar os operadores a considerações desvinculadas da realidade técnico-jurídica.

Inicialmente, é necessário um enfoque acerca da matriz constitucional das Leis 9099/95 e 10.259/2001; a primeira, decorrente da originária redação decorrente da Constituição Federal de 1988 (art. 98, I), onde permitido aos Estados, dentre outros entes, a instituição de Juizados Especiais para o julgamento de crimes de menor potencial ofensivo; por seu turno, a Lei 9099/95, no artigo 98, possibilitou a efetiva criação de tais Juizados, com a competência para o julgamento, na Justiça Estadual, das infrações penais de menor potencial ofensivo, definidas no artigo 61 [1].

De outro lado, a Emenda Constitucional 22, de 18 de março de 1999, acrescentou o parágrafo único, ao artigo 98, da Constituição, possibilitando à Lei Federal dispor sobre a criação de Juizados Especiais na Justiça Federal, vale dizer, a Emenda Constitucional autorizou, por lei federal, a criação de Juizados Especiais, na Justiça Federal, o que procedido pelo artigo 1º, da Lei 10.259/2001.

Neste momento, urge a definição do objeto dos Juizados Especiais Criminais, agora criados na Justiça Federal: sem dúvida, cabe a tais Juizados o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo (artigo 98, I, da Constituição Federal).

E, nesta linha de raciocínio, a primeira questão deve merecer resposta: o que são infrações penais de menor potencial ofensivo? aquelas definidas no artigo 61 da Lei 9099/95; aquelas definidas no artigo 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/2001 ou ambas.

A resposta ao enfrentamento acima deve decorrer de uma premissa inquestionável: ambas as definições decorrem de leis especiais, com vigência concomitante, tanto é que a Lei 10.259/2001 cuidou de ressalvar, em três momentos, a vigência do artigo 61 da Lei 9099/95: no artigo 1º (...no que não conflitar com esta Lei), no artigo 2º, parágrafo único (..para os efeitos desta Lei) e explicitamente no artigo 20 (...vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual). Por seu turno, a Lei 9099/95, ao definir o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, também ressalvou que restrito "...para os efeitos desta Lei".

Assim, tratando-se de co-existência de leis especiais [2] não parece lógico falar-se em revogação ou derrogação do disposto no artigo 61, da Lei 9099/95, até em razão de que, constitucionalmente, a Emenda 22 não autorizou a lei que viesse a instituir os Juizados Especiais na Justiça Federal a redefinir, para a Justiça Comum, o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo. E, assim foi procedido, na medida em que o conceito contido no parágrafo único, do artigo 2º, da nova norma, é exclusivo para os efeitos daquela lei. Por outro lado, como expressamente referido, o conceito contido no art. 61, da Lei 9.099/95, é para os "...efeitos desta Lei".

Consequentemente, se a hipótese não é de vigência, imprescindível, por outro lado, a análise da eficácia da nova lei, em face dos princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal) e da retroatividade da norma benéfica (art. 5º, XL, da Constituição Federal).

E, neste aspecto (eficácia), convém ressaltar que o princípio constitucional da IGUALDADE assegura tratamento penal isonômico, em situações isonômicas, isto é, quando a lei não prever tratamento diferençado, o que se afigura possível: Neste sentido, a sempre lembrada lição de IGNÁCIO BURGOA, mencionada por ROGÉRIO LAURIA TUCCI [3], informa que "Juridicamente la igualdad se traduce em que varias personas, em número indeterminado, que se encontram em determinada situación, tengan la possibilidad y capacidad de ser titulares cualitativamente de los mismos derechos y de contraer las mismas obligaciones que emanam de dicho estado. Em otras palabras, la igualdad, desde un ponto de vista jurídico, se manifesta en la posibilidad y capacidad de que varias personas, numéricamente indeterminadas, adquieran los derechos y contraigan las obligaciones derivados de una cierta y determinada situación en que se encuentrem". Desde já se constata que o fundamento principal da invocação do princípio da igualdade é a equivalência de determinada situação. E, no lecionar de TUCCI [4], "Com efeito, em paridade de situações, ninguém deve ser tratado excepcionalmente. Todavia, evidenciada a desigualdade entre as pessoas...deverão ser consideradas as situações desiguais, para que possa haver igualdade.".

Nesta linha, interessante e didática decisão do TJSP [5] que assevera que "... A análise do princípio da isonomia deve ser feita sempre em função do objetivo pretendido, não da mera vedação de discriminação.".

O tratamento não isonômico, cabível para situações desiguais [6], ocorre na legislação, como por exemplo, na previsão de defesa preliminar escrita (CPP, artigo 514) para julgamento de certos delitos e ausência desta possibilidade em tratando-se de outros; assim, por este fundamento, não pode, v.g., um acusado de furto, invocando o princípio constitucional da igualdade reivindicar tratamento equivalente àquele dispensado aos acusados de crimes funcionais próprios. O referido princípio, portanto, deve ser aplicado em se tratando de situações iguais, paritárias ou equivalentes e não para situações distintas. A propósito deste tema, o Colendo STF assim se pronunciou quanto à aplicação do benefício da progressão criminal, previsto na Lei da Tortura, aos demais condenados por Crimes Hediondos [7]:.. .A Lei 9.455, de 07.04.1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências, no § 7º do art. 1º esclarece "o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado." Vale dizer, já não exige que, no crime de tortura, a pena seja cumprida integralmente no regime fechado, mas apenas no início. Foi, então, mais benigna a lei com o crime de tortura, pois não estendeu tal regime aos demais crimes hediondos, nem ao tráfico de entorpecentes, nem ao terrorismo. Ora, se a Lei mais benigna tivesse ofendido o princípio da isonomia seria inconstitucional. E não pode o Juiz estender o benefício decorrente da inconstitucionalidade a outros delitos e a outras penas, pois, se há inconstitucionalidade, o juiz atua com legislador negativo, declarando a invalidade da lei. E não como legislador positivo, ampliando-lhe os efeitos a outras hipóteses não contempladas." [8]

Todavia, na situação concreta, o objeto do enfrentamento é: são todos os crimes de competência da Justiça Federal (Constituição Federal, artigo 109, IV, V e VI) equivalentes, paritários ou similares àqueles sujeitos a julgamento da Justiça Comum? A resposta deve ser dada a partir do bem jurídico tutelado, quando o tratamento isonômico deve ser respeitado. Assim, no sempre lembrado exemplo do crime de desacato (CP, artigo 331), o bem jurídico tutelado é único, quer o delito seja praticado contra autoridade que sujeita o agente à jurisdição da Justiça Estadual ou contra autoridade que desloca a competência à Justiça Federal. Aqui, neste caso concreto, sem dúvida, o tratamento deve ser isonômico aos acusados deste delito, aplicando-se, por conseguinte, a benesse da transação penal [9], àqueles processados na Justiça Comum.

Logo, uma PRIMEIRA CONCLUSÃO: quando se tratar de infrações penais com bem jurídico tutelado, que pode ser de competência tanto da Justiça Comum como da Justiça Federal, inegável a aplicação do instituto da transação penal na Justiça Estadual, ainda que a pena máxima cominada seja superior a 1 ano, desde que não ultrapasse 2 anos; de igual forma, àqueles agentes com processos em andamento (apesar da redação do artigo 25, da Lei 10.259/2001, flagrantemente inconstitucional neste aspecto), por delitos com bem jurídico tutelado que comportem dupla jurisdição (da Justiça Estadual ou Federal) deve ser possibilitada a transação, em respeito à hierarquia do artigo 5º, XL, da Constituição Federal. Neste sentido, mas com fundamento jurídico diverso (mais amplo, investindo o Juiz da atribuição de legislador positivo), já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [10]:

"Penal. Processual Penal. Recurso em Sentido Estrito. Porte e Disparo de Arma de Fogo. Competência. Isonomia. Derrogação do artigo 61 da Lei 9.099/95. Retroatividade da Lei 10.259/01.Com o advento da Lei 10.259/01, restou ampliado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, por exigência da isonomia Constitucional.O comando normativo contido no art. 2°, da Lei 10.259/01 possui contornos penais suficientes a atrair a observância imperativa do disposto no inciso XL do rol das garantias constitucionais (art. 5°).As demandas iniciadas antes de 14.01.02 tramitarão no juízo comum, assegurado ao réu os benefícios da Lei 9.099/95. Recurso provido, em parte, por unanimidade."

No julgamento acima referido duas situações são observadas: a primeira, em que o julgador assume o papel de legislador positivo [11], ampliando os efeitos de norma especial (art. 2º, da Lei 10.259/2001) a hipóteses não contempladas (antes, ressalvadas expressamente); a segunda, acerca da vigência do art. 61 da Lei 9.099/95, declarando que tal norma fora revogada, quando, em verdade, por ser caso de co-existência de duas leis especiais, com matriz constitucional, ambas continuam vigentes.

Relativamente aos demais delitos com pena máxima cominada não superior a 2 anos, sem possibilidade de julgamento perante a Justiça Federal (como, por exemplo, o delito do artigo 245 do Código Penal), não há razoabilidade em sustentar-se a aplicação do princípio da igualdade e da retroatividade da lei penal, vez que existe norma penal específica regulamentando o processamento destas infrações, sem possibilidade de aplicação da transação penal quando a pena máxima cominada é superior a 1 ano.

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Assim encaminhada a questão, o segundo ponto a ser enfrentado resta com complexidade reduzida, na medida em que a competência do Juizado Especial Criminal não restou alterada: aqui, vez que idênticas as situações, vale aduzir os mesmos fundamentos utilizados para a compreensão de que o artigo 291, parágrafo único, do CTB, também não aumentou a competência do JEC, sendo hipótese de aplicação, no Juízo Comum, do benefício da transação penal; ou seja, na medida em que definida a partir de matriz constitucional (artigo 98, I, da Constituição Federal), a competência do Juizado Especial Criminal da Justiça Comum não pode ser alterada por aplicação analógica de norma posterior, até em razão de que analogia inexiste na hipótese, tratando-se, ao contrário, de hipótese de normas distintas, cujo conflito, no que couber (infrações penais que comportem julgamento em ambos os Juizados), pode e deve ser solucionado pela aplicação do princípio constitucional da igualdade ou simetria.

Finalmente, no que toca ao aspecto da competência do Juizado Especial Criminal Estadual para o julgamento dos feitos com rito especial [12], tal questão deve ser enfrentada a partir da concepção de que a competência do JEC, nos Estados, não restou alterada, descabendo, portanto, qualquer tramitação de feito (especialmente delitos pelo artigo 16 da Lei de Tóxicos) cujo processo demanda rito especial, por expressa vedação contida no artigo 61 da Lei 9099/95. Situação diversa será aquela relativa aos crimes da Lei 4898/65: neste caso, como o delito pode ser julgado pela Justiça Federal, aplicável a transação penal (no Juízo Comum), por necessidade de tratamento paritário aos acusados.

Destarte, pode ser encaminhada uma SEGUNDA CONCLUSÃO: o princípio despenalizador da transação penal, aplicável na Justiça Comum aos delitos com penas superiores a 1 ano e não superiores a 2 anos, quando o delito também comportar julgamento pela Justiça Federal, não altera a competência dos Juizados Especiais Criminais, delimitada no artigo 61, da Lei 9099/95, restando prejudicada qualquer tramitação de feitos, junto aos JEC’s da Justiça Estadual, com rito especial.

Desta forma, sem a pretensão de esgotar a discussão da matéria, em contribuição ao debate que se estabelece, as considerações que surgem são as seguintes:

a)a nova lei, que instituiu os Juizados Especiais Federal, pelo princípio constitucional da igualdade, nos delitos com idêntico bem jurídico tutelado, assim considerados aqueles que tanto podem ser julgados pela Justiça Estadual ou pela Justiça Federal, quando a pena máxima cominada não é superior a 2 anos, permite a aplicação da transação penal, quer seja procedimento com rito comum ou especial, iniciado ou não, sem o deslocamento do feito para o JEC;

b)por outro lado, em casos de crimes que não comportem julgamento na Justiça Federal, como nos casos do delito dos artigo 245 do CP ou artigo 10, da Lei 9.437/97, em que a pena máxima cominada é superior a 1 ano e não superior a 2, inviável a aplicação da transação penal, visto que a nova lei é especial e somente tem aplicação para o Juizado Especial Criminal Federal (artigo 20, parte final).

c)esta nova legislação, especial como a Lei 9099/95, não alterou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para a aferição da competência do Juizado Especial Criminal Estadual;

d)tratando-se de infrações penais com rito especial e pena máxima cominada não superior a 2 anos, quando o delito também comportar julgamento pela Justiça Federal, o benefício da transação penal deve ser aplicado, em presentes os demais requisitos, perante a Justiça Comum, visto que o artigo 2º, parágrafo único, da nova lei, não excepcionou de sua abrangência os delitos cujo processo segue rito especial.


Notas

1...Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

2...Em que incabível a invocação da analogia, até em razão de que lacuna inexiste para a aplicação da disposição relativa ao caso semelhante.

3...LAURIA TUCCI, ROGÉRIGO. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. Editora Saraiva, São Paulo, 1993, pág. 158.

4...Idem, pág. 159, com expressa indicação de que a verdadeira igualdade tem que considerar as diversidades existentes entre os homens, posto que o tratamento igual a pessoas que se encontrem em situações diferentes constitui autêntica iniqüidade.

5...Agravo de Instrumento 11.380.0, com acórdão constante na RJTJSP 132/279.

6...Em que ausente a paridade de situações, determinante da aplicação da isonomia.

7...Habeas Corpus 76.543, DJU 17/04/98, relator Min. SYDNEY SANCHES.

8...No original, sem o destaque, que visa, aqui, realçar a conclusão da decisão.

9...Acerca da natureza jurídica da transação penal, CEZAR ROBERTO BITENCOURT, in MANUAL DE DIREITO PENAL, Saraiva, 2000, pág.545, oferece interessante anotação, indicando sua natureza processual.

10...No julgamento do Agravo de Instrumento nº 70003736428 - TJRS, a 5ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça entendeu de alargar o alcance do art. 2º, da Lei 10.259/2001, declarando que derrogado o art. 61 da Lei 9099/95.

11...Na lição do Min. SYDNEY SANCHES, quando do julgamento do HC 76.543/98. Igualmente, neste sentido, parecer da Egrégia CGMP/RS (processo 011137-09.00/01-6), transcrevendo ensinamento dos Promotores de Justiça Jorge Assaf Maluly e Pedro Henrique Demercian, sustentando que "As ponderações feitas pelo Ministro SYDNEY SANCHES sugerem que, segundo entendimento vitorioso no Supremo Tribunal Federal, a eventual incoerência do legislador, sendo mais condescendente com os possíveis autores de crimes federais não autoriza o Poder Judiciário, a pretexto de restauração da isonomia, a subtrair-se aos poderes políticos para a construção de uma regra que não foi editada: a ampliação dos rígidos limites que figuram no art. 61 da Lei 9.099/95.".

12...De observar-se que, na Justiça Federal, a lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais não excluiu de sua competência os feitos com rito especial, isso quando da definição de infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos da Lei Federal 10.259/01.

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Sobre o autor
Milton Fontana

promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, professor de Direito Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTANA, Milton. A lei 10.259/01 e a competência dos juizados especiais criminais estaduais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2898. Acesso em: 22 dez. 2024.

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