Resumo: A construção de um ordenamento jurídico capaz de seguir as transformações sociais não raro impulsiona o Poder Judiciário a conferir uma resposta ao jurisdicionado que não encontra correlação com textos e produções legais. Os novos mecanismos criados a fim de viabilizar a efetividade da criação judicial instigou a produção do presente trabalho, com notada ênfase ao ativismo judicial, em uma abordagem crítica em relação ao tema, destacando-se as principais características e os efeitos decorrentes causados aos Poderes da República.
Palavras-chave: Criação Judicial. Ativismo. Efeitos.
Sumário: Introdução. 1. A jurisdição contemporânea. 2. A jurisdição como fonte de normas jurídicas: o ativismo judicial 3. A legitimação e os limites da decisão judicial ativista 4. Críticas ao ativismo judicial 4.1. Riscos para a legitimidade democrática. 4.2. Risco de politização da justiça. 4.3. A capacidade institucional e os limites de atuação do Poder Judiciário. Considerações Finais.
INTRODUÇÃO
A elaboração criativa, inventiva e dinâmica do conhecimento e do saber deve ser o local, por excelência, da instituição de novos mecanismos de adaptação, regramento e controle sociais. Nesse sentido, vem ganhando destaque no Brasil e no mundo o ativismo com que o Poder Judiciário está exercendo suas atribuições.
Se por um lado o Poder Legislativo não tem atendido as demandas sociais com efetividade, por outro, o Poder Judiciário não pode se omitir diante de questões levadas ao seu crivo, especialmente em se tratando da aplicação casuística de deveres normativos decorrentes de princípios de ordem constitucional , alçando-o, cada vez mais, como órgão originário de políticas públicas e fonte de normas jurídicas.
Embora o ativismo possa gerar abusos e extravagâncias desnecessárias, é certo que sua crescente aplicação decorre de uma nova ordem Constitucional que não mais se contenta com divagações genéricas, instalando-se em um novo Estado Democrático de Direito, proclamado ante um Estado passado autoritário, marcado pelo timbre da opressão e supressão de liberdades, em que a ausência – ou presença –, de normas jurídicas, levara os aplicadores do direito a perpetrarem inúmeras injustiças sob o manto da legalidade.
1. A jurisdição contemporânea
A jurisdição pode ser entendida como a atuação estatal visando a aplicação do direito objetivo ao caso concreto, resolvendo-se com definitividade uma situação de crise jurídica, gerando com tal solução a pacificação social . É na jurisdição que o Poder Judiciário encontra suporte para o exercício de suas funções típicas.
Tradicionalmente, entendia-se a jurisdição como sendo a atuação da vontade concreta do direito objetivo, fundamentando o seu agir, basicamente, na supremacia da Lei, que era tida como produto perfeito e acabado para a solução dos problemas sociais.
Essa concepção clássica violava uma miríade de direitos fundamentais do homem, além de princípios básicos do direito, porquanto suprimia do órgão jurisdicional a capacidade de interpretar, valorar e aplicar o direito conforme as idiossincrasias do caso concreto.
Limitava o juiz a dizer o que já estava insculpido na norma, reduzindo-o a fazer a vontade da Lei, estabelecida pelo legislador, em uma atividade quase que mecânica, impedindo-o de compreender o espírito das demandas submetidas ao seu crivo para encontrar, na norma geral e abstrata, uma solução que estivesse em consonância com os direitos fundamentais e a Constituição.
Felizmente, aos poucos o princípio da supremacia da Lei, amplamente influenciado pelos valores do Estado Liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado, foi cedendo lugar à crítica judicial, no sentido de que o magistrado, necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto uma interpretação conforme a constituição, sobre ela exercendo o controle de constitucionalidade acaso necessário, bem como viabilizando a melhor forma de tutelar os direitos fundamentais .
Com efeito, atualmente exige-se do juiz uma postura mais atuante, dinâmica e concatenada aos valores e padrões do mundo moderno, objetivando atender aos fins sociais a que a Lei se dirige, bem como ás exigências do bem comum (Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, art. 5.º).
Essa tarefa sugere uma atividade de construção criativa – e não mais a simples declaração de direitos – conferindo maior dignidade e responsabilidade ao jurista, depositando nele a esperança de reconhecimento e garantia da efetividade dos planos Constitucionais, consolidando os projetos do Estado e as aspirações da sociedade moderna.
2. A jurisdição como fonte de normas jurídicas: o ativismo judicial
O estado brasileiro contemporâneo é caracterizado pela força normativa decorrente da Constituição da República , conformando as regras aos princípios constitucionais. Atualmente, é conferido ao juiz o poder de, por meio da adequada interpretação da lei e do controle de sua constitucionalidade, definir os litígios fazendo valer os princípios de justiça e os direitos fundamentais, expondo ao tecido social os motivos relevantes pelos quais fez valer a sua decisão, por vezes, em prejuízo da representatividade política.
Essa integração faz com que o juiz crie, mediante a hermenêutica interpretativa ou por meio do controle da constitucionalidade, uma norma jurídica capaz de justificar a sua decisão, resultando em um trabalho criativo de construção argumentativa, originando-se, a partir daí, uma norma jurídica gerada diante de um caso concreto.
Ao se deparar com os fatos da causa, o juiz deve compreender o seu sentido, a fim identificar qual a lei que se lhes aplica. Verificada a lei aplicável, esta deve ser conformada à Constituição por meio das técnicas de interpretação conforme, de controle de constitucionalidade em sentido estrito e de balanceamento dos direitos fundamentais.
A partir disso, o julgador cria uma norma jurídica que vai servir de fundamento para a decisão a ser tomada na parte dispositiva do pronunciamento. É nessa parte dispositiva que contém a norma jurídica individualizada, ou simplesmente individual, entendida como resultado da interpretação do texto da lei e do controle de constitucionalidade exercido pelo magistrado , conforme vaticina MARINONI:
“Se nas teorias clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma individual a partir da norma geral, agora ele constroi a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle de constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou da regra da proporcionalidade em sentido estrito) dos direitos fundamentais ao caso concreto”
Em outras palavras, o produto da interpretação realizada pelo juiz é uma criação judicial formulada diante da ausência ou deficiência de normas jurídicas capazes de regular determinada situação de crise submetida à apreciação judicial, com vistas a suprir a insuficiência legislativa e política deixadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, e pode ainda passar a funcionar como regra geral, a ser invocada como precedente judicial em outras situações.
A regra do precedente, nesses casos, ocorre porque quando o judiciário decide inovar no ordenamento jurídico, ele também gera grande expectativa no corpo jurisdicionado, e o precedente assegura que haverá uma linha de entendimento, uma segurança jurídica às pretensões, no sentido de que a lide não será julgada ao sabor dos caprichos do julgador.
Esse fenômeno fecundou o arranjo constitucional e processual do pensamento jurídico moderno, e suas principais características e efeitos são o objetivo da pesquisa.
3. A legitimação e os limites da decisão judicial ativista
A Constituição é um instrumento eficaz, elaborado em momentos de sobriedade política, para defender o Estado e a sociedade contra as erupções episódicas de paixões e desejos momentâneos, oriundos das maiorias parlamentares ou monocráticas. O exercício da jurisdição se compromete e se legitima por sua aptidão para contribuir com o alcance do projeto de sociedade idealizado na Constituição.
Esses novos parâmetros, decorrentes do neoconstitucionalismo, impõem uma conduta proativa ao Poder Judiciário, direcionada ao cumprimento efetivo dos objetivos projetados para a República. Com efeito, a aplicação da norma não tem mais o condão automatizado que em tempos idos se lhe atribuía, envolvendo, como envolve, operações valorativas e opções políticas por parte do aplicador.
Desse modo, norma e fato são os dois elementos essenciais com que lida o julgador. Depende de uma e de outro que se reconheça ou produza o efeito desejado: se este deve ser reconhecido ou produzido é porque: a) existe norma que o atribui ao fato dotado de tais ou quais características; e b) aconteceu fato cujas características coincidem com as do modelo normativo .
Na atual sistemática processual brasileira, incumbe ao juiz identificar a norma adequada, verificar a sua constitucionalidade, interpretá-la e aplicá-la. Assim, para a legitimação da jurisdição ativista - além dos requisitos de ordem objetiva -, exige-se a observância plena dos preceitos estabelecidos na Constituição, sendo ela o parâmetro primeiro de legitimidade das decisões judiciais ativistas.
Logo se vê que a subsunção automática do caso concreto à norma jurídica materializada na Lei, sem o termômetro da constitucionalidade, desconsidera o conteúdo da própria decisão, dando ênfase apenas às normas procedimentais, e reputa a Lei como fruto perfeito e acabado aplicável às relações sociais, desprezando as vicissitudes de cada caso, com nítida agressão a direitos fundamentais processuais e materiais.
Note-se que o procedimento pode ser legítimo à luz dos direitos fundamentais e demais garantias processuais e, ainda assim, produzir decisão descompromissada com a substância das normas constitucionais.
Nessa perspectiva, surge a questão do contra-majoritarismo, ou melhor, da tensão entre a decisão judicial que afirma o direito fundamental e rejeita a norma editada pelos representantes eleitos pela maioria. Diante da problemática posta pela questão do contra-majoritarismo e buscando explicar a legitimidade da decisão surgem as teorias textualistas, procedimentalistas e substancialistas .
As primeiras propõem uma interpretação textualista da Constituição, atrelando a legitimidade da jurisdição ao literalismo das normas constitucionais. As teorias procedimentalistas buscam dar legitimidade à jurisdição destacando seu papel de reforço no processo democrático de elaboração da lei, enquanto as substancialistas dão ênfase ao conteúdo material dos preceitos constitucionais, advindo a legitimação da jurisdição do fato de os juízes aplicarem as cláusulas amplas da Constituição de acordo com uma concepção atraente de valores morais que lhes servem de base.
Fixadas tais premissas, e independentemente da teoria adotada, verifica-se que a jurisdição ativista se legitima pelo conteúdo da decisão, sendo certo que o seu limite e parâmetro primeiro deve ser o texto constitucional.
Com efeito, ressoa inequívoco que o exercício da jurisdição não se legitima com decisões que neguem a existência dos direitos fundamentais e dos princípios Constitucionais estabelecidos com base na estrutura axiológica do Estado Democrático brasileiro, ainda que tais decisões estejam lastreadas sob o talante da estrita legalidade.
Relembre-se que há tempo se aceita que a tarefa do intérprete não se resume à explicação do texto da norma, devendo constituir uma contínua reformulação e adequação do texto legal às novas situações concretas.
Equivocada a antiga concepção clássica, pois a intensa atividade social impõe a sempre renovação e reinvenção das estruturas jurídicas, sendo impossível admitir e limitar a função jurisdicional à simples aplicação da letra da lei ao caso concreto.
Esse sistema considerava a lei um produto perfeito e soberano, porque decorrente da vontade da maioria do povo, e por isso, vinculava a atividade do julgador.
Tal quadro, além de robotizar o Judiciário, relegava a segundo plano as particularidades inerentes ao caso concreto, as quais dotam a lide de maior ou menor grau de interatividade com o texto aplicável, abrindo uma ampla gama de variedades interpretativas e integrativas.
Em verdade, o problema da aplicação da lei não está propriamente no poder conferido ao juiz, mas na própria dicção da norma legal. Embora o objetivo da limitação da decisão à letra da lei seja o de conter o arbítrio do julgador, não há dúvida de que a compreensão da lei e, portanto, o subjetivismo, varia na medida em que a letra da norma abre maior ou menor espaço para o magistrado atuar na definição do mecanismo normativo.
Assim sendo, a lei é interpretada – e não meramente aplicada – não apenas porque o juiz inevitavelmente deve compreendê-la, mas especialmente porque o seu significado precisa ser aprendido e deduzido , assinalando a necessidade de uma interpretação construtiva, que supre lacunas, freia inovações inoportunas do legislador afoito, e pisa no acelerador do Congresso omisso, lento ou tímido.
Ora, a concepção de um Judiciário apagado pelo Legislativo e a ideia de juiz mero executor da lei obviamente não coaduna com as aspirações do Estado moderno, que exige uma interação, harmonia e independência entre os Poderes. Isso não significa, entretanto, que a admissão da insuficiência da lei e a atribuição de poder ao juiz para ditar a norma capaz de regular o caso concreto tenham gerado um sistema em que o magistrado é livre para criar o direito.
Nesse contexto, a ampliação da latitude do poder judicial exige um sistema de precedentes no qual haja o mínimo de similitude e coerência entre as decisões, a justificar a adoção de determinada posição em prejuízo da representatividade política consubstanciada na lei, além de um aprofundamento de critérios capazes de garantir o controle das decisões judiciais, cujo fim precípuo é conferir segurança e estabilidade aos juízos, além de garantir o conhecimento público e o controle social dessas manifestações de poder.
O dever de motivação, somado ao emprego da exigência de argumentação racional persuasiva, é o traço distintivo relevante da função jurisdicional e confere a ela uma específica legitimação. Com efeito, juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios, impondo suas escolhas, suas preferências, suas vontades. Só atuam legitimamente quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição.
4. Críticas ao ativismo judicial
Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Poder Legislativo tem fomentado a criação de um Judiciário ativista, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam a ordem jurídica, com caráter normativo geral.
Muito embora a deficiência dos meios políticos de decisão justifique a necessidade de se recorrer ao Judiciário para a resolução dos conflitos sociais, é certo que essa prática atrai um sério risco: o de fragilizar a produção democrática do direito, cerne da democracia.
A efetivação de medidas desta estirpe transformaria os Tribunais em órgãos com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie de mutação constitucional que funcionaria, em verdade, como um autêntico processo de alteração formal da Constituição, reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional.
É bom que se diga, nesse sentido, que a “omissão” do legislador pode muitas vezes significar uma escolha política, ou seja, o Poder Legislativo não elaborou a Lei por faltar-lhe condições políticas ou quorum majoritário: em uma democracia representativa, cabe ao Legislativo elaborar as leis ou emendas constitucionais, quando estas se acharem maduras o suficiente para edição.
É por isso que em um Estado Democrático de Direito, mesmo que todos sejamos a favor de uma causa, é necessário esperar pelo legislador!
Atento a esse fenômeno, o Mestre Ives Gandra Martins reproduz ferrenha crítica ao ativismo com que o Poder Judiciário vem desempenhando suas funções, notadamente em face da interpretação conforme levada a cabo pela ADPF n.132, que pela lucidez e propriedade transcreve-se abaixo:
“À luz da denominada "interpretação conforme", estão conformando a Constituição Federal à sua imagem e semelhança, e não àquela que o povo desenhou por meio de seus representantes. Participei, a convite dos constituintes, de audiências públicas e mantive permanentes contatos com muitos deles, inclusive com o relator, senador Bernardo Cabral, e com o presidente, deputado Ulysses Guimarães. […] No que diz respeito à família, capaz de gerar prole, discutiu-se se seria ou não necessário incluir o seu conceito no texto supremo -entidade constituída pela união de um homem e de uma mulher e seus descendentes (art. 226, parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º)-, e os próprios constituintes, nos debates, inclusive o relator, entenderam que era relevante fazê-lo, para evitar qualquer outra interpretação, como a de que o conceito pudesse abranger a união homossexual. Aos pares de mesmo sexo não se excluiu nenhum direito, mas, decididamente, sua união não era -para os constituintes- uma família. Aliás, idêntica questão foi colocada à Corte Constitucional da França, em 27/1/2011, que houve por bem declarar que cabe ao Legislativo, se desejar mudar a legislação, fazê-lo, mas nunca ao Judiciário legislar sobre uniões homossexuais, pois a relação entre um homem e uma mulher, capaz de gerar filhos, é diferente daquela entre dois homens ou duas mulheres, incapaz de gerar descendentes, que compõem a entidade familiar. Este ativismo judicial, que fez com que a Suprema Corte substituísse o Poder Legislativo, eleito por 130 milhões de brasileiros -e não por um homem só-, é que entendo estar ferindo o equilíbrio dos Poderes e tornando o Judiciário o mais relevante dos três, com força para legislar, substituindo o único Poder que reflete a vontade da totalidade da nação, pois nele situação e oposição estão representadas .
Por evidente, a importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode suprimir a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo, visto que não há democracia sólida sem uma atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem um congresso atuante e investido de credibilidade.
Nesse particular, três objeções surgem em oposição à judicialização e, sobretudo, ao ativismo judicial no Brasil. Nenhuma delas infirma a importância dessa atuação, mas todas merecem consideração a respeito.
Efetivamente, as críticas concentram-se nos riscos para a legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e nos limites da capacidade institucional do Judiciário e, por fim, na estabilidade das relações institucionais preconizadas pelo princípio da separação e harmonia dos Poderes.
4.1. Riscos para a legitimidade democrática
A democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, na célebre frase de Abraham Lincoln. Entende-se como instrumento de participação popular na vida política do país, influenciando nas decisões tomadas pela nação.
Os membros do Poder Judiciário, no Brasil, tais como juízes, desembargadores e ministros, não são agentes públicos eleitos pelo povo, embora se faça a ressalva de que os critérios de escolha e seleção para tais cargos, na maioria das vezes, obedeçam a valores meritocráticos, por meio do concurso público, outra vertente democrática.
Em que pese não obtenham o batismo da vontade popular, é inequívoco que magistrados e tribunais exercem poder político, inclusive o de invalidar atos derivados dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não eletivo como o Supremo Tribunal Federal sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513 membros foram escolhidos pela vontade popular – é identificada como dificuldade contra-majoritária. Onde estaria, então, a legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, que foram escolhidos pelo povo?
A explicação é simples e óbvia: ao aplicarem a Constituição e as Leis, os juízes e tribunais estão concretizando decisões que foram tomadas pelo Constituinte ou pelo Legislador, isto é, pelos representantes do povo.
Efetivamente, na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluídas e indeterminadas, previstas na Constituição e nas Leis, como dignidade da pessoa humana, boa-fé objetiva, tornam-se co-participantes do processo de criação do direito, atuando a favor e não contra a democracia.
4.2. Risco de politização da Justiça
A palavra judicializar, no escólio de LUÍS ROBERTO BARROSO, significa submeter ao Poder Judiciário questões de larga repercussão política ou social em prejuízo das instâncias ordinárias de política.
O Judiciário, que por muitos anos tentou se posicionar de forma neutra perante a sociedade, mantendo-se, na medida do possível, distante ou alheio aos anseios sociais, tem se apresentado como uma alternativa viável para concretização dos direitos insculpidos nas Leis e na própria Constituição.
Isso não só em virtude da conotação política que muitas de suas decisões estão tomando, mas também em face das paulatinas intervenções que vem promovendo em questões de ampla repercussão social.
Verifica-se, nesse sentido, uma crescente judicialização da política e da vida pública brasileira como um todo.
Por conseguinte, a expressão “judicialização da política” refere-se à tendência contemporânea de se submeter cada vez mais questões políticas à apreciação do judiciário, o que acaba por torná-lo um participante ativo e determinante no teatro político do Estado. Também é usado para denotar a influência dos procedimentos jurídicos de decisão nas arenas políticas tradicionais.
Nesse contexto, judicializar a política pode significar tanto a transferência da apreciação de questões políticas para a seara judicial, quanto a utilização de procedimentos de decisão judicial pelos órgãos políticos tradicionais.
Um dos argumentos utilizados contra a judicialização da política é a insuficiência de recursos estatais para que se faça valer integralmente as necessidades do cidadão.
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário, a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois nesse domínio reside o encargo primário dos Poderes Legislativo e Executivo.
No entanto, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “a interferência jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado da separação dos poderes), sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde.”
Essa contribuição judicial para a efetivação de políticas públicas, embora vista com temperamentos, decorre do próprio modelo de Estado adotado pela Constituição da República, em que o Judiciário não pode se manter inerte quando provocado.
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, com efeito, acaba por reforçar a criatividade dos juízes, que não podem se omitir perante as questões submetidas à sua apreciação, muitas vezes o fazendo de forma determinante e ativa para a concretização de políticas públicas em nome da defesa de um princípio ou determinação constitucional.
Verifica-se, assim, que o judiciário ativo somado ao descrédito de uma política cada vez mais desacreditada perante a opinião pública, impulsionaram o primeiro a defender os interesses da população em prejuízo da representatividade política, determinando a abertura de creches e escolas , a concessão de medicamentos , dentre outros.
Essa postura justifica-se, em larga medida, porque o Legislativo frequentemente se encontra diante de escândalos envolvendo corrupção, além de se distanciar cada vez mais distanciar da vontade popular, substituída pelos interesses de grupos que se estabelecem no teatro político do poder, e sobretudo em função da existência do Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição.
Por fim, cabe enfatizar a percepção segundo a qual a população está depositando signiticativa confiança na função judicante, não somente em razão de suas respostas às demandas sociais, mas também em face da crise moral instalada nos demais poderes.
Percebe-se que a sociedade respira aliviada a cada intervenção judicial de índole mais arrojada, direcionada a mudar, efetivamente, a dura realidade de um povo carente de saúde, segurança, trabalho e educação.
Talvez a grande deficiência dos juízes atuais seja a tendência de esquecer que o governo não consiste unicamente em direito, mas é formado em parte de política e só ocasionalmente pode a política ser determinada por lei.
Quando surge um problema, caso se trate de uma questão de justiça, o Legislativo e o Judiciário e o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, poderão dele encarregar-se em conjunto, mas quando se trata de aspectos políticos, o Legislativo e o Executivo, o Congresso e o Presidente, deverão tomar a si a incumbência. O judiciário não deve envolver-se, apenas em casos extremos e circunstanciais.
4.3. A capacidade institucional e os limites da atuação do Poder Judiciário
Atualmente exige-se do juiz – para a legitimação de sua atuação – a devida ponderação de valores ainda palpitantes no seio da sociedade, numa dada situação, para extrair daquele contexto dinâmico e, ao mesmo tempo, específico, a decisão consistente na prestação jurisdicional justa para aquele caso, sendo este o serviço público que o cidadão precisa e merece receber.
O poder não pode servir para fins particulares, e fora das exceções previstas na Constituição, a sobreposição levada a efeito por qualquer dos poderes tende a produzir efeitos nefastos, eis que contrário aos ideais democráticos que clamam contra toda sorte de arbítrios cometidos por detentores de poder.
No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia, entretanto, não significa que toda e qualquer matéria deve ser decidida e deliberada por um tribunal.
O ativismo se justifica para fazer cumprir direitos fundamentais que, pela omissão do Congresso ou negligência das administrações, vinham sendo solenemente ignorados, seja pela ausência de adequação legal aos princípios da Constituição, seja pela falta de políticas públicas que viabilizem o exercício desses direitos.
No entanto, quando houver uma manifestação política do Congresso ou do Executivo, o Judiciário não deverá ser ativista, respeitando a posição política. Caso não haja regra, legitima-se a intervenção jurisdicional.
Desse modo, onde faltar uma norma mas houver direito fundamental a ser tutelado, o judiciário deve atuar topicamente no caso concreto, embora isso não impeça o Congresso de deliberar, futuramente, sobre a mesma matéria. Sobrevindo deliberação do Congresso sobre o tema, prevalecerá sobre a do Judiciário.
Além disso, no tocante à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos decorrentes da atuação jurisdicional, o Judiciário deverá verificar, em relação à matéria tratada, se um outro Poder, órgão ou entidade não teria melhor qualificação para decidir, fazendo-se uma criteriosa análise da própria capacidade institucional, sendo a auto-contenção espontânea, nestes casos, o melhor remédio a se ministrar ante a precariedade de conhecimentos técnicos para avaliar o impacto de determinadas decisões sobre o tecido social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A divisão funcional dos Poderes, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho estatal, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão, e constitui o meio adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.
O Poder Judiciário tradicionalmente manteve-se distanciado das discussões em torno de grandes temas de interesse da sociedade. Hodiernamente, no entanto, essa postura vem cedendo lugar a uma atuação mais proativa e atuante do órgão jurisdicional.
Nessa senda o ativismo judicial ganha contornos legítimos, na medida em que a transformação da concepção de direito e justiça não mais se harmoniza com as antigas teorias da jurisdição, que reservavam ao juiz a função de declarar o direito ou criar a norma jurídica de acordo com o princípio da legalidade e do positivismo acrítico.
O Estado moderno tem o objetivo de alcançar uma sociedade mais justa. A paz social, o bem-estar coletivo, a justiça e a própria liberdade não podem realizar-se espontaneamente numa sociedade industrializada, complexa, dividida, em constante conflito, sendo necessário que o aparelho estatal regule os mecanismos econômicos, proteja os mais fracos e desfavorecidos e promova medidas necessárias à transformação da sociedade numa perspectiva comunitariamente assumida de bem público.
Em razão de sua busca pelo bem-estar dos indivíduos, o Estado Social emite grande quantidade de normas com esse fim. São leis diferentes das que simplesmente prescrevem regras de conduta para as pessoas. São, em realidade, promessas de situações a alcançar, de um programa a executar, que exigem a presença ativa do Estado, durante longo tempo, para abater os óbices existentes e concretizar o compromisso consolidado nos diplomas normativos, sob pena de reduzi-los à indesejável legislação simbólica.
Para tanto, é necessário romper a barreira estática do positivismo e permitir a atuação das forças históricas contemporâneas e da consciência coletiva nas crises jurídicas, auxiliando o aprimoramento da engenharia social, tendo em vista que o direito é uma ciência reconhecidamente volúvel e dinâmica, sendo impossível sustentar que a codificação, que cristaliza determinado momento histórico na forma da legislação, seria compatível com todas as gerações vindouras e seus novos valores e demandas sociais.
Por isso, o Estado Constitucional moderno inverteu os papeis da lei e da Constituição, deixando claro que a legislação deve ser compreendida a partir de valores maiores, mais abrangentes, princípios constitucionais de justiça e direitos fundamentais. Logo se vê que a jurisdição tomou importantíssima função para si, sendo certo que é o juiz quem definirá, diante do caso concreto, as diretrizes que guiarão as partes em relação ao direito afirmado.
É inadmissível, na atual conjuntura, que o Judiciário permaneça encastelado, a decidir, comodamente, apenas conflitos privados e sem maior expressão perante a realidade sócio-política do país.
Aliás, a ativação deste Poder é desejada pela própria Constituição da República de 1988, notadamente pela eficácia irradiante dos direitos fundamentais, pela argumentação jurídica e pela metodologia da ponderação de interesses, preconizando um ativismo judicial valorativo caracterizado principalmente pela argumentação jurídica com apoio nos princípios constitucionais, possibilitando a publicização das decisões e um maior controle social.
Essa construção criativa de natureza argumentativa, todavia, deve ser realizada com prudência e cautela, pois o abuso e a extravagância nas decisões judiciais pode ter um efeito catastrófico, ameaçando a harmonia, o equilíbrio e a independência dos Poderes.
O Princípio da Separação dos Poderes, que tem assento no art. 2.º da Carta Política, não pode constituir nem se qualificar como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos, arbitrários ou omissos por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal, legitimando a intervenção judicial nesses casos para restaurar a ordem jurídica violada pela ação ou omissão estatal, e vice-versa, porquanto impossível, na atual conjuntura constitucional, a formação de núcleos irrestritos de poderes absolutos.
O ativismo incorporou-se à jurisdição moderna, que passou a se realizar numa dimensão mais ampla que a dos estreitos limites do processo, e aos poucos vem consolidando o Poder Judiciário como órgão originário de políticas públicas e fonte de normas jurídicas de natureza cogente – a exemplo da indisfarçável súmula vinculante – especialmente quando se trata da aplicação casuística de deveres normativos decorrentes de princípios de ordem constitucional.
A ideia aqui é de união (e não divisão) dos poderes, conduzindo ao diálogo social e institucional da conjugação de esforços interinstitucionais para o alcance de objetivos maiores.
Quando exercitado nesses parâmetros, longe de ser uma ameaça à democracia ou à segurança das Leis, o ativismo acaba por complementar e fortalecer o princípio democrático de acesso, discussão e transformação do direito: sim à garantia de direitos fundamentais sonegados pela omissão dos demais poderes; e não ao ativismo regressivo que apenas invade e substitui a soberania popular, contrariando justamente os direitos que lhe incumbia tutela.
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