Os romanos classificavam as coisas (res) em duas grandes categorias: res in patrimonio e res extra-patrimonium. As primeiras poderiam ser: a) res mancipi e res nec mancipi; b) res corporales e res incorporales; c) res mobiles e res immobiles; d) res fungibiles e res infungibiles; e) res divisibiles e res indivisibiles. As segundas poderiam ser : a) res humani júris (res communes, res universitatis e res publicae) ou b) res divini juris (res sacrae, res religiosae e res sanctae).
As res divini juris não estavam no comércio. Sacrae eram os objetos de culto. Religiosae eram os túmulos e cemitérios. Sanctae eram os muros e as portas da cidade. Referindo-se às res sanctae, J. Cretella Junior afirma que:
“Penas severas são cominadas a quem desrespeita esses lugares.” (Curso de Direito Romano, 20ª. Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 167).
Os muros e as portas da cidade eram especialmente valorizados pelos romanos, pois da sua conservação e respeito dependia a própria existência da urbe e da civilização que ela representava. Roma foi invadida e saqueada por gauleses em 390 aC e correu sérios riscos durante a campanha de Aníbal Barca na península italiana. É, portanto, perfeitamente compreensível a preocupação dos romanos com o desenvolvimento do conceito de res divini juris e da proteção das res sanctae.
As cidades muradas começaram a deixar de existir quando os canhões se tornaram suficientemente poderosos para derrubar facilmente qualquer fortificação. Onde os nativos hostis não tinham acesso ao poder de fogo dos canhões, algumas cidades muradas foram construídas em pleno século XVI. Este é o caso, por exemplo, de Salvador, cidade cercada por muralhas com baluartes que foi construída no Brasil por Tomé de Sousa a mando do Rei D. João III.
Com a obsolescência das muralhas, o conceito de res sanctae caiu em desuso. Mas não a proteção aos valores que garantem a existência e continuidade das sociedades modernas. Os conceitos de território, soberania e nacionalidade (elementos fundamentais do Estado moderno) e sua contrapartida (a defesa militar das fronteiras, o apego à independência política e a valorização da própria nacionalidade em oposição às demais) são fatos universalmente reconhecidos. Até mesmo numa Copa do Mundo vemos ecos distantes da sacralização das muralhas pelos romanos.
Quando torcem fervorosamente por sua amada Seleção Canarinho, os brasileiros estão de certa maneira avivando sua nacionalidade, erigindo e sacralizando uma barreira psicológica entre eles e os cidadãos naturais das nações rivais que jogam contra o Brasil. A seleção é, de certa maneira, nossa res sanctae, por isto não toleramos quando ela é ofendida, sofremos quando ela perde e ficamos furiosos quando um jogador brasileiro é agredido cruelmente no campo.
Uma parte da imprensa, porém, parece ignorar ou ter se esquecido de tudo isto. Por razões obscuras e provavelmente eleitorais, os jornalistas criticam intensamente a Copa do Mundo, desdenham o apego do povo brasileiro à sua seleção e até mesmo torcem para que a Canarinho seja rapidamente eliminada da Copa do Mundo. Nada do que eles digam, porém, irá afastar o povo de sua res sanctae, pois as ligações dos homens com as barreiras que protegem sua civilização e a separam das demais são profundas e duradouras. Bem mais duradouras do que as empresas jornalísticas, fadadas a falirem por incompetência mercadológica ou a serem empasteladas quando ousam despertar a fúria incontrolável da população.