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Noções introdutórias sobre o processo de aplicação/criação do Direito segundo o normativismo kelseniano

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27/06/2014 às 10:36
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4. Estrutura escalonada da ordem jurídica

Para Kelsen o ordenamento jurídico é um sistema de normas organizadas hierarquicamente entre si. Como já afirmado, nada existiria acima ou anteriormente à norma fundamental, que seria, como o próprio nome sugere, fundamentadora, legitimadora, de todo o sistema jurídico positivo, no qual as normas inferiores, para serem válidas, não poderiam contradizer os princípios de uma norma que lhe fosse superior e esta teria que condizer com o estabelecido pela norma fundamental. Dessa forma, Kelsen monta sua pirâmide normativa, com a norma fundamental em seu topo, da qual “todo jurista parte quando deseja interpretar normativamente uma realidade coercitiva, e que funda a unidade sistemática de qualquer ordenamento jurídico” (GUIBOURG, 1986).

A norma superior tanto pode apenas indicar o processo através do qual a norma inferior deverá ser produzida, quanto, em certa medida, pode indicar o conteúdo da norma a produzir. A norma jurídica, portanto, não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, situadas uma ao lado da outra, mas é uma construção escalonada, de diferentes camadas e níveis. Neste contexto, considerando a ordem jurídica de um dado Estado, sem considerarmos o direito internacional, a Constituição é entendida como o escalão de direito positivo mais elevado. Essa Constituição pode ser produzida pelo costume ou através de um ato de um ou mais indivíduos, neste último caso, fala-se de uma Constituição escrita, para distinguir da Constituição consuetudinária. (KELSEN, 2000, p. 247).

A Constituição regula, portanto, a produção de normas gerais, podendo também determinar o conteúdo das novas leis, prescrevendo ou excluindo determinados conteúdos. Em geral, a Constituição prescreve para a sua modificação um processo mais exigente, com um quórum mais elevado, diferente do processo legislativo comum (Constituição Rígida). Sendo assim, a simples lei não pode derrogar as normas albergadas pela Constituição (KELSEN, 2000, p. 249).

O escalão imediatamente seguinte ao da Constituição é constituído pelas normas gerais criadas pelo legislativo ou pelo costume. Contudo, a validade do costume dentro de uma comunidade jurídica é limitada:

(...) na medida em que a aplicação de normas gerais produzidas por via consuetudinária aos casos concretos apenas se pode realizar através de Direito estatuído, uma vez que só se pode operar através das normas individuais a estabelecer pelos órgãos aplicadores do Direito – especialmente, onde já existam tribunais, através das decisões judiciais, que representam normas individuais (KELSEN, 2000, p. 254).

O escalão de produção das normas gerais, por sua vez, é, geralmente, dividido em dois ou mais escalões, assim temos os decretos, depois as Portarias, as Instruções Normativas, dentre tantas outras figuras (tomando como exemplo o ordenamento jurídico brasileiro) para, por fim, termos a norma individual.


5. Aplicação e criação do direito

Na teoria Kelseniana, os juízes assumem um papel indispensável para a criação e aplicação do direito, pois são criadores de normas individuais. Os juízes possuem uma função constitutiva e não só declaratória, como pretendia o extremo formalismo exegético, visto que, devido à proibição do non liquet, devem decidir, mesmo na ausência, incompletude ou ambigüidade da norma geral. Além disto, os magistrados igualmente têm como função resolver os conflitos aparentes entre as normas, inclusive as de mesmo grau, possibilitando, dessa forma, uma melhor clareza, tanto para os destinatários das normas, quanto para a ciência do direito.

Conforme já dito, uma ordem jurídica é um sistema escalonado de normas gerais e individuais, que estão entre si ligadas devido ao fato de que a criação de toda e qualquer norma é determinada por outra norma do mesmo sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental. Uma norma pertence a uma determinada ordem jurídica porque foi criada com a determinação de uma norma desta mesma ordem. Estas considerações se referem a uma ordem jurídica estatal e a comunidade jurídica em vista é, portanto, o Estado. Kelsen afirma que “é o Estado que cria o Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo este ponto de sua teoria também objeto de muitas críticas por aqueles que acreditam que o Estado não detém o monopólio da produção jurídica em um Estado dito pós-moderno, fala-se, então, em pluralismo jurídico, o qual, no momento, não será nosso objeto.

O que importa ressaltar é que, para Kelsen, a “aplicação do direito é simultaneamente produção do Direito” (KELSEN, 2000, p. 260). Sendo assim, ele supera o formalismo tradicional exegético que coloca aplicação e criação do direito numa oposição absoluta. Afirma Kelsen, que consiste num erro distinguir entre atos de criação e aplicação do direito, exceto os dois casos extremos, o ápice e a base da pirâmide, ou seja, a pressuposição da norma fundamental e a execução do ato coercivo da norma individual. Tirando os extremos, todo ato jurídico é simultaneamente “aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior (KELSEN, 2000, p. 261). “A norma superior pode não só fixar o órgão e o processo no qual a norma inferior é produzida, mas também determinar o conteúdo desta norma” (KELSEN, 2000, p. 261).

Kelsen diferencia o conceito de aplicação do conceito de observância (cumprimento) da norma. Uma norma jurídica é aplicada quando a sanção prescrita é dirigida contra a conduta contrária ao “dever ser” normativo. Ou seja, uma norma é cumprida quando não é violada, e isso deriva da sua eficácia. Já a observância do direito é, antes de tudo, a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico presente na norma (KELSEN, 2000, p. 263).

A aplicação do direito tanto existe na produção de normas jurídicas gerais, como nas resoluções das autoridades administrativas, e ainda, nos atos jurídicos negociais. Os Tribunais também aplicam as normas jurídicas gerais ao estabelecerem normas individuais, determinadas, quanto ao seu conteúdo, pelas normas que lhe são superiores. O processo de aplicação/criação da norma individual é um “processo de individualização ou concretização sempre crescente” (KELSEN, 2000, p. 263).

Afirma Kelsen:

Uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter declaratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado, cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples “descoberta” do direito ou júris-“dição” (“declaração” do direito) neste sentido declaratório (KELSEN, 2000, p. 264).

Continua o autor, afirmando que “a norma individual, que estatui que deve ser dirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada só é criada através da decisão judicial” (KELSEN, 2000, p. 265). Ou seja, o fato só entra no domínio do direito quando, diante de um caso concreto, se responde as seguintes questões: qual órgão é competente para ligar a norma geral ao caso concreto e qual o processo determinado pela ordem jurídica para que essa verificação seja feita? Isto é:

Não é o fato em si de alguém ter cometido um homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica, mas o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou o homicídio (KELSEN, 2000, p. 267). 

Quer dizer, a proposição jurídica não diz que se um indivíduo matou alguém deve ser aplicada uma determinada pena, diz sim que se um determinado tribunal competente, num processo determinado pela ordem jurídica, verificou, em decisão definitiva, que determinado indivíduo praticou um homicídio, deve-se, então, mandar aplicar a este indivíduo uma determinada pena (KELSEN, 2000, p. 267). Neste sentido, tanto no caso do julgador condenar, como no caso de absolver o acusado, a decisão judicial opera-se em aplicação da norma jurídica vigente.

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Kelsen prevê também que o órgão julgador recebe o poder ou competência para produzir uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é predeterminado por uma norma geral, ou seja, pode ser conferido ao órgão julgador o poder para criação ex novo de direito material. Isso não significa que o judiciário estaria legislando, uma vez que não se trata de norma geral, mas sim de norma individual, válida unicamente para o caso que tem perante si (KELSEN, 2000, p. 271).

A verdade é que a norma jurídica geral não pode prever todas as particularidades dos casos concretos, assim, no processo de aplicação da norma geral e criação da norma individual, o órgão julgador se depara com elementos que não estão, nem poderiam estar, determinados pela norma geral. Desta forma:

A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual. Mas essa moldura pode ser mais larga ou mais estreita. Ela é o mais larga possível quando a norma jurídica geral positiva apenas contém a atribuição de poder ou competência para a produção da norma jurídica individual, sem preestabelecer o seu conteúdo (KELSEN, 2000, p. 272).

Sobre as lacunas no ordenamento jurídico, Kelsen defende a existência de uma plenitude hermética, ou seja, quando uma ordem jurídica não estatui qualquer dever ao indivíduo de realizar determinada conduta, está, então, permitindo. Ou seja, “o que não é juridicamente proibido é juridicamente permitido” (KELSEN, 2000, p. 270).

Sendo assim, não existiriam lacunas “reais” no ordenamento jurídico, a existência de uma lacuna só é pressuposta quando a ausência de uma norma jurídica é considerada indesejável pelo  órgão aplicador do Direito, do ponto de vista da política jurídica e, por isso, afasta-se a aplicação do direito vigente, que permite aquela conduta, por ser considerada pelo órgão aplicador do direito como não equitativa ou desacertada (KELSEN, 2000, p. 273-274).

Kelsen também prevê a possibilidade dos tribunais criarem normas gerais, para entender tal argumentação, recomendo a leitura do tópico “Criação das normas jurídicas gerais pelos tribunais: o juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica” (KELSEN, 2000, p. 277-283).

Por fim, convém ressaltar que pode parecer, à primeira vista, que a teoria de Kelsen apregoa a existência de um direito destituído de conteúdo axiológico, visto que a norma válida é aquela aplicada ou cumprida devido à ameaça de coação, eliminando, dessa forma, o critério legitimador da democracia, sendo legítimo apenas o direito posto por quem possui o uso da força.

Contudo, esta não seria, na nossa opinião, a melhor forma de se interpretar a teoria pura do direito, visto que afirmar que uma norma é jurídica, não implica dizer que ela é justa ou que exista obrigação moral de obedecê-la. Além do mais, “a legitimidade fundada na mera eficácia do sistema não exclui a possibilidade de exigir que o dito sistema responda ao princípio da soberania popular ou admita certos conteúdos mínimos, que sejam indispensáveis para seu respeito afetivo, segundo a escala de valores que sustentamos” (GUIBOURG, 1986). 


Conclusão

O texto descreveu os principais aspectos da Teoria Pura do Direito, destacando o processo de criação/aplicação da norma jurídica, sobretudo no que se refere à criação judicial do direito, fundada no pressuposto de que existem várias possibilidades de respostas igualmente válidas dentro de um ordenamento jurídico em face de um mesmo caso concreto.

Com isso, destacou-se a grande importância do intérprete do direito na teoria kelseniana, uma vez que o decididor não apenas declara o conteúdo posto na norma, como pretendiam os exegéticos, mas realiza a importante tarefa de aplicação e ao mesmo tempo criação do direito.

 O artigo procurou, ainda, desmistificar a crença de Kelsen apregoava uma total separação entre o direito e os demais sistemas sociais, destacando que a sua proposta foi de uma “teoria pura do direito” e não de uma “teoria do direito puro”.


REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006.

GUIBOURG, Ricardo A. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires: Astrea, 1986.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

REALE, Miguel. Filosofia do direto. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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Sobre a autora
Chiara Ramos

Doutoranda em ciências jurídico-políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Universidade de Roma - La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Procuradora Federal, em afastamento das atividades para estudo no exterior. Professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Chiara. Noções introdutórias sobre o processo de aplicação/criação do Direito segundo o normativismo kelseniano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4013, 27 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29372. Acesso em: 23 abr. 2024.

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