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Participação popular, governança participativa e educação:

uma leitura situacional do Decreto 8.243 de 23 de maio de 2014

15/06/2014 às 17:07
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O Governo Federal publicou o Decreto 8.243 que institui a Política Nacional de Participação Social e cria o Sistema Nacional de Participação Social. O instrumento tende a submeter decisões de governo e políticas públicas ao crivo da população.

ResumoNo dia 23 de maio de 2014 o Governo Federal publicou o Decreto 8.243 que institui a Política Nacional de Participação Social e cria o Sistema Nacional de Participação Social. O instrumento tende a submeter decisões de governo e políticas públicas ao crivo da população, por mecanismos construídos pelo Estado de maneira a induzir a legitimação das práticas governamentais pela consulta ou referendo popular. A via de participação efetiva para consolidação de uma cidadania plena e fortalecimento da Democracia Participativa, no entanto, carece de ferramentas educativas que possam formar consciência de participação, pertencimento e co-responsabilidade capaz de definir que o governo seja, de fato e de direito, um governo do povo. A cidadania que se exerce por Decreto pode se tornar um mero dirigismo estatal da vida em sociedade.

Palavras-Chave: Participação Social; Democracia Participativa, Educação


Introdução:

 A definição de Estado Democrático de Direito que colhemos no artigo 1º da Constituição Federal de 1988 encerra alguns princípios que são caros ao regime, à forma e ao sistema de governo que escolhemos. A uma pela definição da gestão compartilhada da coisa pública, não somente a periodicidade dos mandatos e o sufrágio universal para escolha dos mandatários, mas pela consagração de ferramentas de efetiva deliberação popular, algumas mais, outras menos efetivas que vieram tomando corpo ao longo de nossa história de retomada do processo democrático.

Não obstante a proposta de ampla democratização, como anseio que permeou o processo constituinte, movido, por vezes, em antagonismo à ditadura que se esvaia, a participação popular é um caminho árduo, que se faz de maneira lenta e gradual, restando ainda ranços coronelistas em alguns municípios, pequenos feudos administrativos em segmentos de políticas públicas e estagnação das oportunidades de diálogo com o Poder Constituinte Originário pela ausência de transparência das ações governamentais e falta de identidade do povo com seus governantes.

A sociedade tem necessidade de se expressar e de ser ouvida, já deu para perceber isso nas manifestações de junho de 2013 e nas dezenas de outras formas ordeiras, ou nem tanto, que proliferam pelo Brasil, dos grandes centros às pequenas comunidades. Não são apenas grupos de arruaceiros isolados que deflagram protestos, mas um grupo social que deseja pautar as ações de governo de acordo com as necessidades mais prementes do povo.

A voz das ruas deve ser ouvida e as questões postas ali, se não respondidas, pelo menos discutidas. Esse é o perfil da democracia. Mas a voz das ruas não pode ser ouvida se for berrada por inúmeras gargantas, ao mesmo tempo. Há que se ter um foro próprio de discussão, permanente, propositivo. Um canal de comunicação permanente. A princípio talvez seja esse o propósito do instrumento presidencial.  Ocorre, todavia, que existe pelo menos uma dezena de lugares de participação e formação de cidadania.

Nesta incursão estaremos analisando a posição do Governo Federal em editar um Decreto Presidencial que induz a participação popular, ao mesmo tempo em que discutiremos a forma em que se tem dado a cidadania ativa em nosso país, conduzindo o raciocino para considerar que o que  perseguimos encontra alicerce na política educacional, que deve ser voltada à formação cidadã.

Considerações Iniciais

Em 2010 o senador Cristóvan Buarque subscreveu a PEC 19/2010 instrumento pelo qual pretendia incluir no elenco dos direitos sociais positivados no artigo 6º da Constituição o direito essencial à busca da felicidade.

Positivada ali, como direito fundamental, a proposição torna-se exigível do Estado a sua prestação, por meio de políticas públicas e arranjos outros que possam transformar a expectativa de direito em exercício pleno do que fora proposto. Os direitos fundamentais são inerentes à promoção da dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República. O modo como alcançar aqueles direitos ali previstos é outra seara de ações e discussões.

Poder-se-ia conjecturar mil maneiras de se chegar à felicidade, como também poderíamos tecer centenas de ilações sobre o que é a felicidade e como alcançá-la. Não obstante, por maior que seja a nossa particular admiração pelo professor Cristóvan Buarque, não conseguimos vislumbrar nenhuma maneira plausível em que o Estado, enquanto estrutura administrativa de poder político, pudesse nos levar à felicidade.  Não conseguimos, mesmo através de exercício mental dedicado, entabular sequer algum indício de política pública que conduzisse o povo à felicidade geral por deliberação constitucional. Falha nossa, talvez.

Temos em conceito, em decorrência de uma alma de poeta, que a felicidade é estado de espírito, diversa de bens materiais, e que por vezes o dispensa. É algo que se constrói mais com as emoções do que com a razão, a lógica, os recursos públicos ou as canetadas dos governos.  Embora reconheçamos tenham os governos a capacidade de nos tornar muito infelizes, e que a memória recente da ditadura não nos desminta, entendemos que não se pode ser feliz por decreto presidencial.

Com esse mesmo olhar cético e crítico, lemos o inteiro teor do que consideramos ser a mais recente tentativa político-institucional de nossa nação em tornar-se uma democracia participativa. O Decreto Presidencial  que institui a Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, e dá outras providências.

O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014 vem se tornando um alvoroço nos meios políticos, a ponto de o Congresso ensaiar uma contramedida para sustar-lhe os efeitos. Se, a primeira vista causou incômodo entre grupos políticos, por parecer subtrair uma parcela de poder do Legislativo, tem, a nosso sentir, o propósito de criar (ou recriar) espaços de discussão com a sociedade sobre temas relevantes à nossa vida em grupo. Méritos e deméritos devem ser medidos e considerados. A eficiência da medida, só o tempo dirá.

Ainda que repleto de boas intenções, pois tende a regulamentar o inciso I do artigo 3º. da Lei 10.683, que atribui à Secretaria-Geral da Presidência da República a competência de relacionar e articular com as entidades da sociedade civil e propor a  criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo, o instrumento não tem o condão de, por si só,  promover a inserção ou empoderamento da sociedade nos atos de governo.

Há uma resistência cultural do brasileiro em se dispor a participar do governo, quer pelo exercício da cidadania ativa ou democracia participativa, quer pelas propostas tímidas de cidadania deliberativa ou seja lá o conceito que se dê àquilo que nos anos noventa se chamou de accountability.

O que se pretendia na elaboração do texto constitucional, e nos atos administrativos que vieram para se implantar os novos modelos de gestão em substituição ao Estado ditador, era que governo e sociedade se estabelecessem canais permanentes de comunicação, como uma via de mão dupla de co-responsabilização, transparência e gestão compartilhada das políticas públicas.

Vinte e seis anos depois da promulgação da Carta Cidadã,  se percebe que, na realidade, ainda que chamemos democrático o nosso governo, o povo dele pouco se aquinhoou, a transparência ainda é uma quimera e os lugares de discussão e participação se tornaram, quando muito, em aparelhos de exibição das vaidades dos governos. Caso contrário não seria necessário um decreto presidencial a regular a participação popular e estabelecer um Sistema de Participação Social. Em um governo democrático a gestão compartilhada dispensa normativos, se dá naturalmente e naturalmente se estabelece o sistema de freios e contrapesos, transparência e pertencimento. E se a lei sobrevier, certamente positivará o costume, a prática social reiterada e não o inverso.

Cidadania Constitucional e Protagonismo Social Incipiente

Ao vir a lume a Constituição de 1988 fez mais que restabelecer a Democracia em terras brasileiras. Ao romper com as peias do regime ditatorial quis o constituinte dar voz ao povo para gestar um novo modelo de governo onde a sociedade, de fato, pudesse assumir as rédeas de seus interesses. O novo formato, que veio a se chamar Democracia Participativa, passou a definir o que, na prática, tecnicamente denominamos Estado Democrático de Direito.

O protagonismo social, no entanto, tende a situar-se no estreito elenco de ações previstas no artigo 14 da Constituição, não raro no exercício compulsório do voto, que ainda é um misto de dever e direito. Outros mecanismos de participação efetiva de controle social (STRECK e ADAMS, 2006), podem resultar frutíferos na partição dos poderes e democratização das relações da sociedade com seus governos, consubstanciando importantes mecanismos de desenvolvimento humano e social.

Na prática, entretanto,  a participação social, quando acontece, é circunscrita aos atos do Poder Executivo (orçamento participativo, conselhos comunitários, por exemplo) e Legislativo (plebiscito, referendo, projetos de lei de iniciativa popular – preceitos do artigo 14 da CF), sequer se aproximando, das atuações do Poder Judiciário, que é, por decorrência, um dos poderes mais distantes do cidadão e, por paradoxo, é onde se discute a efetivação dos direitos quando o Estado no-los omite.  

Uma nova Era dos Direitos

A voz reprimida das ruas nos anos de chumbo ganhou status constitucional de participação legitimada no texto legal, expressa no parágrafo único do artigo primeiro da Carta Política, não por acaso, denominada Constituição Cidadã, que reconhece no povo a origem do poder e assegura o seu exercício direto pela sociedade. Assegurar o exercício do poder social não é garantir que de fato ele aconteça. É mais um permissivo ou uma tolerância à sua manifestação.

A euforia da conquista do poder democrático, no entanto, sucumbe ante os desafios de tornar realidade o exercício da participação, quer direta quer indireta, no poder político, e transformar a passividade do povo objeto do governo em proatividade de um povo sujeito do próprio governo, formando nichos de poder local e participação social convincente.

Dowbor (2008) assevera que:

A nossa passividade tem sido alimentada e realimentada em duas fontes. A primeira é o liberalismo, que nos ensina que devemos evitar de nos intrometer na construção do mundo que nos cerca, porque existe uma "mão invisível", o mercado, que asseguraria que chegaremos automaticamente ao "melhor dos mundos". O que nos explicam, na impossibilidade de negar os absurdos, é que os outros caminhos são piores. A segunda, é a da visão "estatizante", que nos assegura que o planejamento central porá ordem em nossas vidas, simplificação que já foi desmentida pelos fatos. 

A era dos direitos, discutida por Bobbio (2005), e que teve por marco as revoluções liberais do século XVIII, sedimentou o individualismo em nossa cultura ocidental, pondo o Estado a serviço do indivíduo. Tal acepção mereceu destaque na Carta da França de 1789, que em seu artigo 2º declara:

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

No dizer de Bobbio, embora o ideário da Revolução Francesa tendesse a estabelecer um conjunto de liberdades civis coletivas, influenciado pelo pensamento liberal de Locke deu asas ao individualismo exacerbado. Isso, segundo o filósofo,

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... significa dizer que primeiro vem o indivíduo singular, que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa,  já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado (...) a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem “é o objetivo de toda associação política”. (BOBBIO, 2005. p.76)

A esse sentir, Singer (2005), pondera que a Declaração Francesa subordina a associação política, isso é o Estado, à preservação dos direitos individuais que enumera: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência, nitidamente inspirados em Locke, até porque, entende-se a única razão de ser do Estado é o indivíduo, sedimentado na disposição do artigo 12º. do texto revolucionário:

Art. 12.º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada.

Nos dias atuais há, pois, certa acomodação, quanto à conquista de direitos ditos fundamentais (ou de primeira geração), que se evidenciaram quando da positivação dos direitos civis e consolidação dos estamentos liberais no século XVIII, e o reconhecimento de direitos oriundos das políticas públicas (direitos sociais ou de segunda geração) que se consolidaram na segunda metade do século XX com o Estado Social ou Estado do Bem-estar (BONAVIDES, 2011).

A participação política que se configurou na resistência ao regime ditatorial nos anos setenta, nos dias atuais sedimenta-se no papel de organizações sociais que se fazem substituir a ação governamental em parcerias que se realizam nas esteiras do estado-ausente neoliberal (GOHN, 2004) e não como exercício de poder social a ponto de se constituir força promotora de desenvolvimento. Embora reconheça o seu potencial de aglutinação e de pressão por melhorias sociais, a força popular é afastada (senão adversária) do poder constituído.

Participação Popular e Efetividade das Garantias Constitucionais

A Carta Constitucional de 1988 inflada a recuperar os direitos olvidados pelos anos de opressão é, no dizer de Saulo Ramos (2008 p. 204), vinculada aos propósitos da Constituição de 1946 por força da Emenda Constitucional 26/85, sendo, portanto, uma constituinte derivada, que se curvou aos direitos já garantidos no instrumento de restauro da democracia após o Estado Novo,  reafirmando propósitos do Estado Social às luzes de J.M.Keynes, do qual não se afastou totalmente.

Não se limitando a restabelecer garantias já conquistadas, o constituinte inseriu inovações, resguardando ainda mais o indivíduo nas suas relações verticais (entenda-se, em relação ao Poder Estatal) e horizontais, dentro da própria sociedade, legando ao Estado a tutela garantidora do pleno exercício de todos esses direitos, inibindo, inclusive, eventuais ameaças à sua efetividade.

Tem-se uma saudável discussão acadêmica acerca dos direitos constitucionalmente garantidos e da sua eficácia plena, em alguns casos, e sujeita à regulamentação na maioria deles.  Todavia, a estrutura da Carta Constitucional, à exemplo da Declaração Francesa, tem por fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III) alicerce de todos os demais direitos, o que torna exigível a sua prestação.

Notadamente, por força do próprio texto constitucional, ao Estado cabe a garantia do exercício de tais direitos que são, de resto, oponíveis em face da organização política e social e exigíveis enquanto instrumentos promotores da dignidade da pessoa humana. Neste cenário, a participação popular, no entanto, não pode ser legitimadora, apenas, das deliberações do Estado, mas sim construtiva da motivação do ato administrativo, opinativa e, quando possível, deliberativa. É mais que mera formalidade;

Inojosa (2005) pondera que a expansão da conquista de direitos sociais restabelecidos pela Carta de 1988, ao lado da nova concepção de direitos coletivos e difusos que despontaram como realização do ideário nacional na Constituição Cidadã, de imediato se rivalizou com os propósitos neoliberais do Consenso de Washington e o sistemático encolhimento do Estado no provimento das garantias constitucionais. No mesmo sentido é o pensamento de Dagnino (2004) que discute o eclipse de um estado provedor, a edição de uma Carta Cidadã plena de conquistas e a proposta de um estado-mínimo, que se exclui da responsabilidade de ser garantidor de direitos, cobrando da sociedade o protagonismo na realização de seus anseios.  

Por certo o garantismo estatal ao pleno exercício dos direitos constitucionais, estendido ao conceito mais abrangente de dignidade da pessoa humana, tornou exigível perante o Judiciário qualquer previsão constitucional de bem estar e pleno exercício da cidadania previstos na Constituição, ainda que pendentes de regulamentação legal que pudesse determinar graus de responsabilidade estatal ou social. O que não pode ser exigido por demanda judicial é feito por meio de protestos em vias públicas, prática que vem se tornando comum em nossos dias, em uma demonstração de descrença no modelo estabelecido de execução e garantias. A participação que se antevia aparenta-se como rivalidade.

Na dicção de Duncan Green, “a sensação de ter direito a alguma coisa é muito mais poderosa do que simplesmente precisar dele ou desejá-lo”. (GREEN, 2009 p. 25.). Mas é do mesmo autor a constatação de que não basta que os textos legais garantam direitos à massa de excluídos, já que os direitos são naturalmente vinculados a noções de cidadania, participação e poder. Para se ter direito,  ensina o autor, é necessário ter habilidade para exercê-los. (IDEM, pg.26).

Pendemos a crer que habilidade, no texto de Green, deva ser interpretada como conhecimento, capacidade e meios de exigir o respeito àquilo que escrevemos no texto constitucional. Ou talvez, mais que isso, capacidade de ser, de fato, defensor dos interesses sociais maiores, que oportunamente possam até mesmo se sobrepor aos nossos interesses individuais. É preciso, talvez, educar para a cidadania, para se perceber a importância individual neste cenário de direitos transindividuais da modernidade em que direitos civis convivem com o clamor dos direitos sociais e difusos que clamam por efetividade (BONAVIDES, 2011).

Nos dias de hoje, em que a Democracia se consolida após a reconquista de direitos que vieram com a promulgação da Carta Política de 1988,  há que se ter em mente que o individualismo liberal não sobrevive à organização da sociedade hodierna. A uma pela própria razão de ser da sociedade, nos conceitos doutrinários clássicos, de ser um consórcio de pessoas. A duas pela moderna acepção de cidadania que pleiteia o pensamento coletivo e a defesa de interesses difusos. Neste ambiente a formação de uma consciência cidadã necessariamente abandona os conceitos primitivos de individualismo e sedimenta-se sobre propostas construídas no consenso, pensando o coletivo, o social.  O campo é fértil para a consolidação de uma participação efetiva, ordeira e democrática e uma cidadania ativa.

O conceito de Cidadania, nos advertem Streck e Adams (2006), adquiriu outros contornos com as práticas de participação social permitidas ou advindas da Constituição de 1988, especificamente quanto à socialização das ações de Estado e da responsabilidade pelo sucesso das iniciativas de desenvolvimento local. Contudo, há que se ter cautela na análise das ações de governo tendentes a dinamizar a participação popular, já que se corre o risco de se estar a legitimar, por indução, os propósitos dos governantes sem, de fato, ouvir o povo.

Em entrevista veiculada pelo Instituto Humanitas Unisinos em 08.10.2005, o então arcebispo de Mariana e presidente da CNBB Dom Luciano Mendes de Almeida ponderando sobre a cidadania e o desenvolvimento das comunidades, defendeu o protagonismo social, a parceria e a definição dos propósitos de governo em consensos comunitários como pressupostos da Democracia Participativa:

Quando o cidadão deixar de ser expectador para ser também executor, nós teremos uma nova fase na caminhada da democracia nacional. Se bem que, para o governo ser indispensável, é necessário descobrir formas novas para que haja uma co-responsabilidade e, digamos, um enriquecimento, um aperfeiçoamento de todas as medidas que são necessárias para a promoção do bem comum. 

A democracia deve se abrir para uma valorização das pessoas e superar aquela fase em que tudo se espera do governo e, quando o governo não responde, há um vazio nas expectativas. Somente depois passa para uma colaboração dos cidadãos nas diversas áreas de saúde, educação, saneamento, segurança, que são não só um direito de todos, mas também um dever de todos. 

Sem necessidade de nos debruçarmos sobre as linhas de Rousseau em seu Contrato Social, é fácil perceber que a governança exitosa que se persegue diante do novo quadro de Democracia que se instalou no país, não se faz sem a participação dos interessados, atores que são indispensáveis nessa nova modalidade de governo. É o mesmo que atestar que a globalização, que nos define o mundo como uma aldeia, particulariza nossos interesses em territórios diminutos, facilitando o envolvimento para promover o desenvolvimento. Paradoxalmente o individual e o coletivo estão embrionariamente vinculados e o exercício da cidadania adquiriu contornos de autogoverno coletivo.

A Gestão Social dos Interesses Coletivos

Nesse novo modelo de gestão do coletivo pelo envolvimento individual, é possível constatar que a participação, longe de ser uma aceitação pacífica  e exercício conjunto de mando é, sim, uma disputa de poder que se faz em todos os níveis da sociedade, a ponto de se definir o exercício do poder como um constante paralelogramo de forças que se digladiam, mais do que se somam. Quando mais o Estado ordena maior se torna a resistência.

Forçoso concluir que a previsão constitucional de participação, pelos elementos inseridos no documento constitucional, conforme  Streck e Adams (2006),  não confina sua atuação às esferas de atuação do Poder Executivo, mas direciona ao Estado como um todo, inclusive ao Poder Legislativo na edição de normas coerentes e incentivadoras da participação e ao Judiciário na solução ágil, segura e pacífica de conflitos sociais.

De sorte que ao pensar a Democracia Participativa, acode-nos o pensamento de Rousseau de que estamos diante de uma forma de governo recomendada aos deuses. Aos homens, esses afetos a conflitos de toda sorte, talhou-se um modelo de gestão direcionada, aqui e ali pontuada por medidas de equilíbrio e controle, ao que denominamos Estado Democrático de Direito, tendo a lei por parâmetro de incentivo e contenção.

Não obstante, é do mesmo Rousseau a afirmação de que a democracia, embora difícil de conceber na prática é, sem dúvida,  o  melhor regime de governo:

Eu quisera nascer num país em que o soberano e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem sempre unicamente à felicidade comum; como isso só poderia ser feito se o povo e o soberano fossem a mesma pessoa, resulta que eu quisera nascer sob um governo democrático, sabiamente moderado.  (ROUSSEAU, 2001)

Assim, a proposta de se discutir a implantação de mecanismos de participação popular pela via positivada, a nosso sentir, não está a merecer o amadurecimento da democracia participativa, mas sim o dirigismo do Estado que, via de regra, irá pautar a discussão por seus interesses, ou por aquilo que considerar ser o interesse coletivo, sem ouvir a parte interessada que passará a dizer aquilo que, de fato, o governo quer que seja dito.

Em sentido inverso, e para exercício da dialética, pode-se ter em mente que quer o governo por ordem no confronto das ruas, criando canais de discussão e diálogo com segmentos conflituosos da sociedade quando da definição das políticas públicas e ações governamentais. Sob esse viés, estaríamos então, empoderando a sociedade para construir cidadania deliberativa.

Educação como forma de Empoderamento e Cidadania

Conforme Gohn (2004)

o empoderamento da comunidade, para seja protagonista de sua própria história tem sido um termo que entrou no jargão das políticas públicas e dos analistas, neste novo milênio. Trata-se de processos que tenham capacidade de gerar processos de desenvolvimento sustentável, com a mediação de agentes externos – os novos educadores sociais – atores fundamentais na organização e o desenvolvimento de projetos. (GOHN, 2004)

Busca-se, pois, capacitar a sociedade para que cuide dos seus próprios interesses, haja vista a constatação por parte de Dagnino (2004) de que o alargamento da democracia com a oferta de novos direitos e o recrudescimento de outros convive perversamente com a retração do Estado, posto que a realidade da Constituição de 1988 convive com

a emergência de um projeto de Estado Mínimo que se isenta progressivamente do seu papel de garantidor de direitos, através do encolhimento de suas responsabilidades sociais e sua transferência para a sociedade civil (DAGNINO, 2004).

O professor Paulo Freire entusiasta da educação libertadora, cidadã e emancipadora, ensina que

a autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta. (FREIRE, 1996, p. 57).

Assim sendo, prevendo a Carta Política a exigência de participação social no processo de desenvolvimento, o caminho do comprometimento da sociedade com o seu futuro passa, obrigatoriamente pela qualidade do processo educacional e seus propósitos, abrindo horizontes para a cidadania ativa.

Brandão (2007 p.75) sentencia que “Como outras práticas sociais constitutivas, a educação atua sobre a vida e o crescimento da sociedade ·em dois sentidos: 1) no desenvolvimento de suas forças produtivas; 2) no desenvolvimento de seus valores culturais.”

Obviamente, como prática social, temos que entender que a educação não se faz apenas com a formalidade do ensino escolar ou na administração de conteúdos, que no dizer de Althusser (1998) estaria a reproduzir a ideologia do Estado, mantendo a subserviência do indivíduo e não promovendo a emancipação ou o desenvolvimento.  É neste viés que retomamos as primeiras ideias postas neste escrito, onde citamos, propositalmente, o senador Cristóvan Buarque, um declarado entusiasta da Educação.

Góes e Machado (2012) discutindo Educação e Desenvolvimento Local estabeleceram que

... no âmbito das políticas públicas, a relação entre educação e desenvolvimento local pode favorecer e potencializar a articulação de outros setores governamentais na mobilização para pensar e construir estratégias capazes de melhorar  a qualidade de vida, o desenvolvimento humano e as oportunidades para que as pessoas envolvam nas transformações da realidade social em que vivem. (GOES e MACHADO, 2012)

Voltada a um processo de formação para a cidadania, a Educação tem por objetivo possibilitar ao indivíduo inserir-se no seu grupo social levando consigo as suas convicções, contribuições e sentimentos de pertencimento, alavancando com isso noções de participação na construção do coletivo, afastando o individualismo e o isolamento, em um processo que se faz não somente na escola, tradicional reduto de instrução (MOSÉ, 2013).

Não se trata, pois de entender o processo de democratização do país por edição de normas que determinem, incentivem ou condicionem a participação popular, mas escavar mecanismos de cunho educacional promotor da cidadania ativa, não formalizada apenas fora da escola, nem mesmo entendê-lo como prática que se dá exclusivamente dentro da escola, mas em conformidade com processos amplos de socialização, participação e comprometimento, para conceituar a educação como uma prática social de desenvolvimento (MOSÉ, 2013) que pode oferecer mais do que conteúdos do saber científico (MORIN, 2011).

A educação das gentes é um processo político, social e promotor de valores de cidadania plena, mais ágil e mais forte que a edição de normas governamentais. Por sua vez, o processo político de participação e apropriação dos governos pelo povo é, sem dúvida, resultado da ação educacional.

Na prática convivemos, pois, com a cruel constatação de que a Educação se presta à formação para o trabalho em primeiro plano, e apenas subsidiariamente na formação da cidadania, no desenvolvimento de consciência voltada para o coletivo, a paz social e o desenvolvimento comunitário.  Mais que delimitar canais de comunicação pela via institucional, a formação de consciência cidadã ativa através do processo educacional aparenta-se mais promissora.

Obviamente que para uma mudança social significativa e fortalecimento da democracia, para a concepção de uma sociedade participativa, uma cidadania coletiva e comunidades cívicas (GOHN, 2004), carece ser a educação uma ferramenta de promoção humana, mais que reprodução sistêmica de conteúdos, anda que tais conteúdos cinjam a ordem jurídica positivada.

Considerações Finais:

Ao se discutir o Sistema Nacional de Participação Social, não se pode olvidar as segundas intenções dos governos, pelo ímpeto que têm em perpetuar no poder os seus mandatários. No mesmo entendimento, a se perceber um eventual usurpação de função legislativa, é preciso cautela quando se discute a autonomia e equilíbrio permanente entre os Poderes da República, quando se sabe que a harmonia entre eles é mais constitucional do que efetiva, não raro surgindo daí atritos, usurpação de funções e manifesto interesse de um em se sobrepor aos outros.

De resto temos que ver que a Política Nacional de Participação Social resgata alguns conceitos elementares da democracia participativa e prenuncia o propósito de “consolidar a participação social como método de governo (art. 4º, inciso I do Decreto 8.243/2014) mediante a implementação de nove modalidades de espaço de diálogo e discussão: conselho de políticas públicas; comissão de políticas públicas; conferência nacional; ouvidoria pública federal; mesa de diálogo; fórum interconselhos; audiência pública;  consulta pública e ambiente virtual de participação social.

Tais instâncias foram hierarquizadas e burocratizadas o suficiente para atuar como verdadeiro aparelhamento do Estado que deseja fazer da participação popular efetiva um “método de governo”.

Esses “novos” lugares de participação de formação da cidadania somar-se-ão a outros dez que foram identificados e elencados por Streck e  Adams (2006), a saber: o voto (e manifestações oficiais da soberania popular); as manifestações públicas; os movimentos sociais; as associações; as redes (inclusive sociais); os fóruns da sociedade civil; as câmaras setoriais; a gestão participativa; as conferências e os conselhos; que são hoje instrumentos criados para a participação popular e gestão social e que decerto não serão desautorizados ou desarticulados pelo modelo proposto.

Percebe-se, pois, que, na verdade, estamos fazendo mais do mesmo, sem objetivos outros senão aparentar democráticas as decisões governamentais. Os espaços de discussão, como evidenciado, já existem e independem da denominação que lhes damos e da estrutura burocrática que os componham. A legitimidade da participação popular tem amparo constitucional, necessário à consolidação da democracia e se efetiva com a assimilação do administrado, a sua sensação de pertencimento à estrutura que o governa.

Ao que se vê o que falta, em verdade, é converter as iniciativas existentes em locais de efetiva participação e não criar ou recriar os mesmos ambientes.  Há que se formar uma consciência cidadã, fazer brotar a vontade de participar. Por oportuno, tomamos por conclusão o pensamento de Streck e  Adams (2006), para quem:

Uma avaliação da participação, hoje, precisa dar conta da multiplicidade de canais através dos quais as pessoas se manifestam e constroem as suas identidades pessoais e coletivas. Sem essa visão de conjunto, corre-se o risco de perpetuar o distanciamento entre governo e governados, entre representantes e (supostamente) representados. Especialmente os conselhos, dada a sua função articuladora, devem dar atenção a este complexo cruzamento de canais de participação para não se tornarem mais uma vez estruturas vazias, meras cumpridoras de formalidade. (STRECK e ADAMS, 2005)

De nada nos adianta positivar procedimentos e construir hierarquias funcionais se não transformar atos de governo em ações transparentes, revestidas de credibilidade e co-responsabilidade promovendo a identidade do governado com as estruturas de poder governante. A participação efetiva advirá de um processo educacional de formação para a cidadania, não por acaso já previsto no artigo 205 da Constituição Federal. Sem isso, teremos apenas mais um alfarrábio jurídico ineficaz a juntar-se às dezenas de outros que não se prestaram aos propósitos para os quais foram concebidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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ALTHUSSER, L. P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro. Editora Campus: 2004.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 10. ed. São Paulo:Malheiros, 2011.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. Coleção primeiros passos. São Paulo. Brasiliense: 2007

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: do que estamos falando? Disponível em http://www.globalcult.org.ve/pub/Rocky/Libro2/Dagnino.pdf  acesso em 01.06.2014

DOWBOR, Ladislau. O que é poder local. Coleção primeiros passos. São Paulo. Brasiliense: 2008

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 26ª. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2002

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Sobre o autor
Israel Quirino

Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. Participação popular, governança participativa e educação:: uma leitura situacional do Decreto 8.243 de 23 de maio de 2014. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4001, 15 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29442. Acesso em: 2 nov. 2024.

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