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A intervenção mínima para um direito penal eficaz

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01/07/2002 às 00:00
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SUMÁRIO: Introdução; 1. O Objeto do Direito Penal e sua Delimitação - Uma perspectiva histórica; 1.1. A Distinção de Direito e Moral; 1.2. A Teoria do Bem Jurídico; 2. O Objeto do Crime Delimitado pela Constituição; 3. O Objeto do Crime Interpretado pela Criminologia e pela Correta Aplicação da Política Criminal; 4. Princípios Basilares para a Criminalização e Descriminalização; 4.1. A Dignidade Penal e a Carência da Tutela Penal; 5. A Experiência Brasileira Através da Lei dos Juizados Especiais - A Identidade com o Princípio da Intervenção Mínima; Conclusão; Bibliografia..


Introdução

Quando se estuda a evolução da normatização penal na história da humanidade, soa com perfeito cabimento a afirmação de von Ihering de que "a história da pena é a da sua constante abolição" [1].Não como verdade máxima, mas como um princípio norteador do que se observa na construção das ciências criminais. Operou-se no decorrer dos tempos, um abrandamento sensível dos meios punitivos e da intervenção estadual, apesar dos movimentos cíclicos de retorno à legiferância demasiada. Tal pode ser constatado a partir da gestação do Dirieto Penal como ciência, marcada pela obra do Marquês de Beccaria (1738-1794), Dos Delitos e das Penas.

O trabalho de Beccaria, imbuído no movimento filosófico-humanitário que tem o traço marcante de Voltaire, Rousseau e Montesquieu, foi a resposta contra a crueldade das penas e da vingança institucional [2] em nome do Estado (mas que tinha o condão de preservar a autoridade do soberano), que vigia desde o Direito Canônico, a partir do século XII. Naquela quadra da história puniam-se as pessoas acusadas de heresia ou que questionassem os dogmas religiosos então vigentes, havendo, pois, uma imagem turvada do papel punitivo do Estado. Com Beccaria esboçou-se a demarcação dos limites entre a Justiça Divina e a Justiça Humana, entre os pecados e os delitos e proclamou-se a utilidade social da pena, retirando-lhe o caráter de vingança.

Com a escola positiva, inaugurada por Lombroso, deu-se início à investigação científica do crime, tentando explicá-lo segundo a fenomenologia social e segundo os estudos da biologia. Surge a criminologia como ciência e suas diversas tendências, buscando, através de métodos empíricos, a explicação do crime, com o precípuo de fim de auxiliar o direito penal.

Verificou-se que diante da marcha contínua da evolução social, torna-se impossível o estabelecimento de marcos peremptórios, entre os quais colocar-se-iam, segundo graus diferenciados, as inúmeras condutas classificadas como ilícitas. A danosidade de certos interesses ou de bens é relativa segundo os critérios de tempo e de lugar, impondo ao estudioso e ao exegeta das leis penais constantes interrogações sobre a validade das normas incriminatórias. Em alguns desses casos, a intervenção penal mostra-se inócua e desvestida de qualquer papel protetivo em razão do desvalor do bem. É o que se conclui facilmente no caso adultério, cuja norma agendi, presente, v.g., no Código Penal brasileiro, foi como que revogada pelos usos e costumes ou por instrumentos de outras esferas do direito, notadamente do Direito Civil. Outras questões surgem mais complexas e envoltas em tons polêmicos, sendo difícil o seu deslinde, como é o caso do uso de substâncias entorpecentes, onde podem estar em jogo outros bens que não o da própria saúde do consumidor.

Em respota a essas e a inúmeras outras questões de relevo, os juristas têm erigido intrincados sistemas penais, que não caberiam no âmbito do trabalho. Por isso, levando em consideração a generalidade das construções sociais, em Estados modernos e democráticos do mundo ocidental, optamos por estabelecer uma breve incursão sobre o objeto do direito penal, segundo os conceitos correntemente aceitos, para, em seguida, delimitá-lo. Não se olvidará de uma análise da criminologia e da política criminal, que desempenham importante papel na determinação da esfera de atuação do direito penal. A partir daí, será possível discorrer sobre os princípios norteadores da criminalização e da descriminalização. Por fim, citamos o exemplo brasileiro que, através das inovações trazidas pela Lei do Juizado Especial, aparelha o Estado com instrumentos penais e processuais, para o controle da intervenção.


1.O Objeto do Direito Penal e sua Delimitação - Uma Perspectiva Histórica

Para além da verdade de que durante o direito canônico não havia uma delimitação da esfera de atuação punitiva, que recaía sobre as condutas classificadas como imorais ou como pecados, dentro de um grande campo de imprecisão e de subjetivismo e que as penas eram incertas, aquela fase marcou um fato positivo na transição para o direito moderno: o de estabelecer a prerrogativa do Estado na detenção do ius puniendi. O direito canônico reagiu ao caráter individualista do direito penal germânico, que permitia ao particular a vindita e entregou ao Estado a função de punir. Isso, de certa forma, por coerência aos dogmas, contrários à pena de morte.

No entanto, o Estado atuava em demasia, confundindo o ius puniendi com o exercício de poder e de preservação política do soberano. As punições, antes de representarem fins de profilaxia criminal, significavam a vingança institucional e fixavam as regras do jogo do poder. Tal situação, que perdurou até a Revolução Francesa, sofreu grande oposição do iluminismo.

É o ideário de Rousseau, que propugna o Estado democrático, voltado para o bem comum, a crítica de Voltaire contra a igreja e a proposta de Montesquieu de separação dos poderes, que inspiram Beccaria e o surgimento da Escola Clássica e de um direito penal visto, agora, como ciência. Além da reação contra as penas infamantes, torturas, suplícios e pena de morte, buscou-se estabelecer os limites entre a Justiça Divina e a Justiça Humana. Já se não podiam conceber atentados contra a liberdade dos cidadãos, por puro autoritarismo [3], num Estado em que se delineavam suas estruturas e funções, segundo uma ordem normativa. Mas naquela altura, ainda não se tinha preciso o conceito de crime.

1.1.A Distinção de Direito e Moral.

Partindo Feuerbach "do dogma de que ao Estado cabe a tarefa de assegurar o livre exercício da liberdade de cada um, no respeito pela liberdade dos outros" [4], propugnou que, ao Estado não se destinava o papel de ingerência sobre a moral e sobre a cultura [5], mas sim a proteção de determinados valores. Por isso, o Código Penal da Baviera (1813), de sua autoria, deixa de criminalizar a heresia, a blasfêmia, a bigamia e o incesto [6]. Contudo, Feuerbach não rompe de vez com o sistema dominante, remetendo condutas atentatórias contra a religião e os desvios da moral reinante, para o direito penal de polícia, que zelava, por assim dizer, pelo bem estar do cidadão.

Por outro lado, Feuerbach notabilizou-se por entender necessária a previsão legal do delito em relação ao fato perseguido, sintetizando seu pensamento na fórmula nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege. Arrisca-se a afirmar que se começava a delimitar o âmbito de atuação do Estado, sem que, no entanto, estivesse certo o objeto do direito criminal e o conceito de crime.

Havia, pois, uma desconformidade entre a atuação do Estado, tal como se exigia, que respeitasse as liberdades, mas que garantisse segurança e proteção aos cidadãos e o seu objeto de tutela. Ainda faltava um bom caminho a trilhar para se descobrir o campo de atuação do direito criminal. E ainda na primeira metade deste século havia resquícios dessa indefinição É com assombro que Hassemer aponta como exemplo disso duas decisões do BGH, de 1954, uma sobre o lenocínio, outra sobre participação na tentativa de suicídio de outrem [7].

1.2.A Teoria do Bem Jurídico

Dos princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade proclamados com o Iluminismo, em reação a uma ordem despótica, autoritária e cruel de poder, em que nela estava fundida a idéia de uma justiça perseguidora e sem limites, fez-se nascer o conceito da atividade protetora do Estado. Sob sua proteção deviam estar bens de relevo para a prossecução daqueles ideais. A partir desse período é que surgem "as tentativas de um conceito material de delito, transistemático, pelo menos com alguma capacidade orientadora e legitimadora" [8]. É o elemento incipiente para os trabalhos de Birnbaum, von Liszt e Binding, dentre outros da escola alemã do século XIX, que passam a desenvolver um conceito de bem, com capacidade e idoneidade para ser protegido pela ordem normatizadora.

O conceito de bem jurídico revela suma importância na delimitação de atuação estatal, pois através de uma espécie de catalogação de interesses e valores representativos para a o homem, enquanto ser integrado a uma sociedade, vitais para a sua dignidade, segurança e promoção nesse meio, oferece-se matéria idônea para o trabalho legislativo. Nesse aspecto, o conceito do bem jurídico, "corresponde a uma viragem no sentido da positivação, normativização e subjectivização sistémico-social do objecto da infracção" [9].

Birnbaum começou a abrir a senda para a construção do conceito. Rompendo com a teoria de direito subjetivo de Feuerbach, enveredou-se ele pelo pensamento da escola histórica, objetivando atribuir valor a certos bens essenciais ao homem, dignos de proteção pelo Estado, para a manutenção do equilíbrio da sociedade. Dessa forma, "Birnabaum deu já expressão ao pensamento teleológico-social (…) aparece, deste modo, já como precursor do utilitarismo social de que a seu tempo Ihering viria a ser o principal representante" [10].

A teoria do bem jurídico, objetivando estabelecer um limite na tarefa do legislador, de modo que ele se debruçasse apenas sobre os bens representativos do homem, prioritariamente aqueles suscetíveis de valoração através de observações empíricas, tende, como já afirmado, para o positivismo. E este entono ganha cotornos mais salientes na teoria de Binding.

Efetivamente foi com Binding que surgiu o conceito acabado de bem jurídico (Rechtsgut), na sua obra Die Normen. Para o autor, o bem digno de proteção legal, depende do juízo de valor estabelecido pelo legislador. É este quem elegerá a atuação protetiva do direito penal sobre determinado bem ou interesse. Esse caráter positivista está patente na sua definição de Rechtsgut, como "tudo o que, aos olhos do legislador, tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos" [11].

Ante a posição tomada por Binding na sua teoria, fica excluída a possibilidade de identificação de bens suscetíveis a danos antes do seu enquadramento pelo legislador. É a este que caberá sentir a necessidade de intervenção penal ante a possibilidade de danosidade social. O perigo que pode surgir dessa posição marcadamente positivista, em meio a qual seriam de se esperar arbitrariedades de um legislador sem escrúpulos, aprioristicamente dotado da mais ampla liberdade, é temperado, como salienta Costa Andrade [12], pelo significado de danosidade social. O bem jurídico é protegido sempre em nome da totalidade, por mais individual que seja, isto é, ele deve ter representação e valor para a sociedade.

Diferente é o ideário de von Liszt sobre bem jurídico. Ao invés de partir de uma conceituação positivista, em que a atuação protetiva do direito penal dependesse da vontade do legislador, von Liszt entende existir uma situação pré-jurídica, onde identifica-se a dignidade penal do bem ou do interesse. Nesse passo, os bens e interesses antes de serem categorizados como tais pelo ato frio e pragmático do legislador, são eleitos pelo homem integrado em sociedade. Tratam-se, pois, de requisitos essenciais ao homem ou à comunidade Os bens jurídicos são, assim, "criações da própria vida, que o direito encontra e a que assegura protecção jurídica" [13].

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Além de contrapor-se à concepção bindinguiana de bem jurídico, von Liszt procura delimitar a área de atuação do legislador. Pela sua teoria o direito penal deixa de ser o pronto remédio contra a generalidade dos males sociais, na medida em que existem meios outros, do Estado ou do sistema social, mais eficazes a esse fim. Ao direito criminal ficaria reservada a proteção dos bens vitais para a sociedade, desde que outra forma se não se mostrasse mais eficaz e que o meio punitivo fosse o mais adequado. Assim, a função e justificação do direito penal do Estado advém "da necessidade da pena para garantir a manutenção da ordem jurídica e, consequentemente, para a segurança da sociedade" [14].

Como bem salienta Roxin [15], os critérios de necessidade de intervenção penal e de sua idoneidade como método protetivo de bens jurídicos, determinam o princípio de subsidiariedade do direito penal, na medida em que ele só é chamado a intervir em situações de extremo interesse e quando falham outros meios. Por esta via, faz-se um depuramento da normativização, dela excluindo-se, por exemplo, questões de ordem moral. Segundo se depreende do citado autor, o ideário de Liszt em muito influiu no Projeto Alternativo do Código Penal alemão (1969), sobretudo no que diz respeito à redução dos tipos penais, na parte especial [16].

O sistema criado por von Liszt, dentro do qual se extrai a definição de um direito penal voltado para a proteção de determinados valores, em caráter especialíssimo, como um remédio extremo, isto é, invocado apenas quando outros meios se mostrem insuficientes, determina o caráter subsidiário da pena. O direito penal atuará como ultima ratio da política criminal [17]. Assim, a partir desse estágio, a ciência do direito penal, ou como preferia denominar o ilustre e sempre lembrado professor Eduardo Correia, o direito criminal (cujo conceito é muito mais amplo por tratar do crime e suas repercussões no mundo jurídico) [18], passa a conhecer seus limites de atuação descritiva de obrigações e proibições e protetiva de valores. Mas aqui surge uma séria questão ainda ligada a esse moderno conceito: quem limitará esse campo de atuação? Ou de outra forma, quais as balizas que servirão de limites para a ciência normativa, que dependerá antes da atividade legislativa? Em quais elementos se apoiará o legislador ao eleger os valores dignos de proteção penal?


2. O Objeto do Crime Delimitado pela Constituição

A passagem do Estado absolutista para o Estado moderno de direito, representou significativo marco não só para a sua organização e administração, mas também para o direito penal. O Estado como um todo, nas suas mais variadas extensões funcionais, enfim, o organismo estatal, passou a submeter-se à égide da lei. Não só os cidadãos a ela estão submetidos, mas também o próprio Estado, estabelencendo um jogo de confiança e de segurança de relação mútua. E o direito penal também faz as partes envolvidas interagirem nesse jogo, assumindo o Estado o papel protetivo através da persecutio criminis (fazendo valer as normas), enquanto que aos cidadãos cabe o respeito aos bens nele protegidos, submetendo-se às proibições.

A estruturação do Estado de direito tem sua gênese na Constituição, que será pois, o elemento orientador de todas aquelas relações conformes à legalidade. À norma Fundamental também vem aderir o direito penal, estabelecendo com ela uma ligação estreita, quase que indissociável. Afinal, as leis penais, como, aliás, todo ordenamento legal, não pode a ela se contrapor [19] Por via de conseqüência, o conteúdo do direito penal, as regras punitivas, as proibições, o objeto do crime, enfim, os bens jurídicos sujeitos à proteção mantêm-se atrelados às linhas gerais traçadas pela Constituição. Mas significará isto que os bens protegidos pela Constituição coincidem com os do direito penal? Ou melhor, estariam os bens jurídicos compreendidos na lei Fundamental? Dela decorreria, em conformidade com a linha política adotada, a obrigatoriedade de criminalização ou de descriminalização?

Numa primeira aproximação para o entendimento e conseqüente solução do problema (aqui composto de várias indagações), Faria Costa frisa que "(…) o ordenamento penal e o ordenamento constitucional são matricialmente duas ordens jurídicas fragmentárias", ou seja, que não têm por escopo proteger todos os bens [20]. De uma constelação de valores e interesses humanos, a Constituição ocupa-se daqueles essenciais, de modo a garantir uma existência digna do cidadão. E a partir desse pressuposto, Faria Costa completa seu raciocínio afirmando que "O direito constitucional (a ordem jurídico-constitucional material), constitui no nosso processo de desenvolvimento jurídico-cultural, um referente normativo inarredável para a compreensão e delimitação de um qualquer outro direito" [21]. Quer com isso dizer que, sendo a constituição uma norma primária, que estabelece uma ordem de valores essenciais para o cidadão, dela formam-se de maneira derivada e nela apegam-se as leis, que regulam sobre esses valores. A Constituição é, assim, um vetor diretivo para a normativização geral. Ela protege de maneira prioritária a dginidade do cidadão, estabelecendo as linhas mestras, ou os princípios em que se apoiarm os legisladores [22].

Dessas considerações quanto ao caráter fragmentário e originário da Constituição, colhe-se a primeira resposta àquelas indagações. Estabelecendo a Constituição as bases do ordenamento social, onde estão previstos certos bens, passa oferecer princípios relevantes à proteção de outros bens decorrentes dos primários. Neste sentido, apesar do inegável balizamento da intervenção penal, inexiste coincidência quantitativa dos bens jurídicos garantidos pelas ordenações Constitucional e penal. Esta, apesar de jungida à norma Fundamental, alarga o leque de bens jurídicos, gozando o seu legislador de uma certa liberdade, mas desde que sempre atenta aos princípios constitucionais.

No que toca precipuamente a essa maior amplidão do ordenamento penal e a essa liberdade do legislador ordinário, Maria da Conceição Ferreira da Cunha adverte que "seria inconstitucional criar uma ordem de bens jurídico-penais de forma a inverter a ordem de valores constitucional" [23]. A desobediência a esse princípio, acrescenta a autora, acarretaria uma desconformidade, uma incompatibilidade entre uma ordem de valores estabelecidos pela Constituição e os bens protegidos pelo direito penal. E citando Sax, traz à colação um exemplo de incompatibilidade: "o caso do homicídio não ser punido, ou ser sancionado como um ilícito de mera ordenação social, sendo os crimes contra o patrimônio considerados muito graves" [24]. Disso resulta a compreensão do controle exercido pela Constituição. Mas ainda persiste, e mais apropriadamente no ponto em que nos encontramos, a indagação sobre um possível mandamento imperativo sobre criminalização ou descriminalização exercido pela Constitução.

Como foi visto até aqui, a Constituição desenvolve uma função de orientação [25], na medida em que, possuindo o caráter fragmentário, não prevendo ou protegendo a totalidade de bens e de valores, mas apenas aqueles mais representativos e essenciais aos cidadãos, permite ao legislador ordinário apenas guiar-se dentro de certos limites. Por exemplo, ao elevar à categoria de bem jurídigo a dignidade da pessoa humana, permite que o legislador eleja outros bens dela decorrentes, como o da honra. Mas o legislador estaria obrigado a isso?

Faria Costa responde negativamente à indagação, dizendo que mesmo a Constituição "elegendo os valores mais fortes ou mais densos (o chamado núcleo duro da normatividade constitucional), não determina essa eleição, inapelavelmente, uma imposição de criminalização para o legislador ordinário, enquanto medida protectora daqueles mesmos valores" [26].

De fato, esse campo de atuação do legislador, que o permite selecionar bens jurídicos dignos de tutela penal a partir de uma diretriz firmada pela Constituição, estabelece-se com o amparo em outros critérios. Uma correta política criminal, baseada nas investigações realizadas pela criminologia, por exemplo, pode ser decisiva nesta seara [27].

Não é de todo despiciente o alerta de que estamos a tratar de um modelo de Constituição democrática, que procura alicerçar seus mandamentos nos princípios de igualdade e de respeito irrestrito ao cidadão, protegendo-o, pois, de qualquer atentado à sua individualidade. Fica o cidadão, assim, a salvo de agressões por motivos de crença, sexo, raça ou de qualquer outro característico que o designe como pertencente aos chamados grupos minoritários. E também por essa razão, as Constituições modernas deixam de imiscuir-se em questões várias, que não dizem respeito às condições de livre desenvolvimento do cidadão. Dessa forma, o Estado não se responsabiliza em estabelecer, v.g., uma doutrina moral [28], tendo em vista a premissa de respeito à individualidade.

Destarte quando uma Constituição, como a brasileira, lança as bases de proteção à família, não está, na realidade, determinando ao legislador ordinário que criminalize o adultério ou que o mantenha no Código Penal [29]. O legislador deverá averiguar a necessidade de intervenção penal, segundo os reclamos da sociedade ante a possibilidade de dano, medido pela criminologia. No caso sub examen, em que se constata não uma declarada permissividade do adultério, mas um consenso de que ele não gera danos que não possam ser reparados por outros meios, é de se questionar sua criminalização.

Em arremate, frisa-se que a Constituição ao proteger a entidade familiar não prevê uma necessária intervenção penal, tampouco determina a criminalização do aultério. A necessidade de proteção será aferida criteriosamente, com base nos estudos realizados pela criminologia e pela orientação da política criminal.

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Sobre o autor
Isaac Sabbá Guimarães

promotor de Justiça em Santa Catarina, professor de Direito na UNISUL e na Escola Superior da Magistratura de Santa Catarina, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção mínima para um direito penal eficaz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2954. Acesso em: 28 mar. 2024.

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