INTRODUÇÃO
O incidente de resolução de demandas repetitivas trata-se não de um recurso, mas de uma ferramenta processual de fundamental importância para o desenrolar do processo, para a decisão da demanda e para a forma em que o direito processual civil brasileiro será visto a partir do momento em que o NCPC entrar em vigor.
Consiste o presente incidente “em um instrumento a ser utilizado para demandas que possuem questões jurídicas comuns, de modo que essas questões sejam decididas de modo uniforme.”[1]
Com este instituto, busca-se a solução dos denominados conflitos de massa[2] v.g. como ações que envolvam consumidores e prestadoras de serviço, recorrente caso o das empresas de telefonia, evitando-se que todas as causas que podem ser solucionadas de uma única forma tenham que sofrer inúmeros atos para se chegar ao exato mesmo resultado por tratarem-se da mesma questão.
O direito processual civil brasileiro vem evoluindo nesse sentido há algum tempo, havendo no código atual um incidente de uniformização de jurisprudência, o qual busca que haja decisões uniformes nos tribunais, agindo basicamente, quando suscitado, na formação de um grupo de desembargadores que irá decidir qual a posição do tribunal acerca de um determinado assunto quando duas ou mais câmaras julgam de forma diferente uma matéria.
Aqui trata-se não de apenas uma reforma, mas sim da inserção de um novo sistema no ordenamento jurídico brasileiro, uma ferramenta trazida do sistema jurídico alemão com o objetivo de tutelar os direitos da coletividade e garantir a segurança jurídica aos julgamentos que tratem da mesma matéria[3].
O incidente versa sobre “a eleição de um caso piloto, cujo julgamento repercutirá sobre o dos demais processos que versem questão de direito (tese) símile ao paradigma.[4]”
Dessa forma, a inovação aproxima o direito brasileiro do common law, havendo um “leading case”, o qual será julgado e servirá de modelo para os demais semelhantes.
O Brasil vem há algum tempo inserindo o common law em seu ordenamento, utilizando cada vez mais as decisões jurisprudenciais como fonte de aplicação do direito[5].
Tal sistema torna o operador do direito mais ativo, pois a argumentação do advogado e o convencimento do juiz acabam por criar a forma que determinados casos serão decididos, pois apesar de sempre ter sido o convencimento do sujeito que faz com que o magistrado decida de uma determinada forma, agora haverá uma nova forma de buscar a aplicação do direito material, não calhando apenas a interpretação da lei, sendo a jurisprudência um guia, mas sim ganhando força pela segurança que trará esta “decisão mestra” frente ao magistrado.
Nesse diapasão, há de ser celebrada a idéia do legislador em visar garantir a segurança jurídica, buscando a uniformidade nas decisões, perseguindo a justiça de forma célere e garantindo que o livre convencimento e a maneira de decidir tenham barreiras quando dois casos exatamente iguais estejam em questão frente a mais de um julgador.
Origem Histórica do Instituto
A referência do incidente é oriunda do Direito Alemão, baseado em uma lei criada em 2005 de nome “kapitalanleger-Musterverfahrengesetz”, criada inicialmente para litígios acerca do mercado de capitais e possuindo prazo temporário de 05 anos, devendo ser extinta após decorrido tal limite temporal.
No entanto, antes do término do prazo, o instituto foi incorporado ao ordenamento jurídico, vindo a fazer parte do código de processo civil alemão ZPO “Zivilprozessordnung”.
O primeiro caso, e que deu origem à ferramenta, foi o caso (DT) Deustche Telekom, onde milhares de investidores buscaram a via judicial em razão de se sentirem lesados pela notícia de uma eventual extensão de patrimônio da sociedade, tendo sido ajuizadas ações por aproximadamente 15 mil investidores representados por mais de setecentos e cinquenta advogados[6].
Tanto volume processual de forma tão abrupta fez com que após quase três anos nenhuma audiência tivesse sido designada, levando parte dos demandantes a buscarem respostas perante o Tribunal Constitucional Federal Alemão, alegando negativa de acesso à justiça.
As queixas foram rejeitadas, no entanto, foi reconhecida a necessidade de se agilizar a tramitação dos processos instaurados, sendo criado incidente de resolução de demandas repetitivas para solucionar esta avalanche de processos idênticos.
Da Tramitação do Incidente
Busca o presente instituto, segundo a redação do art. 930 do PLS/166/2010, resolver controvérsias com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundadas em idêntica questão de direito e capazes de causar grave insegurança jurídica, provenientes do risco de coexistência de decisões conflitantes.
Em seguida, informa o parágrafo primeiro do art. 930 do PLS/2010 que o pedido de instauração será dirigido ao Presidente do Tribunal, e quem poderá ingressar com o instituto, podendo o requerimento ser dirigido pelo juiz ou relator, ou, então, pelas partes, pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público, sendo a presença deste último obrigatória em todos os casos.
Peculiaridade do incidente é que este possui prazo para ser julgado, o qual é de seis meses (art. 939 do NCPC), tendo preferência sobre os demais feitos, sendo preterido apenas nas ações que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
Não obstante, admitido o incidente, o Presidente do Tribunal determinará a suspensão dos processos de primeiro e segundo graus de jurisdição que ainda estejam pendente de decisão, ficando estes demais processos sobrestados, aguardando o julgamento do “feito principal”.
Deve se levar em conta que apesar da frenética busca pela celeridade no novo código, não há de se refutar a falta de argumentações para o convencimento do magistrado na solução do conflito, pois na hipótese de ser julgada de forma equivocada a solução da causa, restará recurso limitado, não podendo os demais sujeitos que dependem desta decisão manifestarem sua irresignação de maneira adequada.
Tal modelo é semelhante ao presente nos arts. 543-B e 543-C do CPC, o qual trata dos Recursos Extraordinários e Recursos Especiais, respectivos do STF e STJ, no qual um ou mais recursos representativos são escolhidos para serem encaminhados ao tribunal respectivo enquanto os demais permanecem aguardando este julgamento.
Acerca de tal estrutura, Dierle Nunes e Rafael Dilly Patrus[7]:
Aqui, o ‘precedente’ do STF e STJ é visto quase como um fechamento argumentativo que deveria ser aplicado de modo mecânico para as causas repetitivas. E estes importantes Tribunais e seus Ministros produzem comumente rupturas com seus próprios entendimentos; ferindo de morte um dos princípios do modelo precedencialista: a estabilidade.
Nos julgamentos dos países de common law há o chamado overruling, o qual seria a superação do entendimento, uma nova argumentação em que se encontraria uma forma de enxergar sob uma nova perspectiva a questão imposta, forma que não é prevista até então na codificação, não havendo previsão para que se possa, ou como poderia ser revisto o leading case julgado.
Distribuído o incidente, o relator poderá requisitar informações ao juízo do qual o processo é oriundo, assim como ocorre atualmente no agravo de instrumento, havendo o prazo de 15 dias para que as informações solicitadas sejam prestadas.
Em seguida, será realizado o juízo de admissibilidade, analisando o relator se estão preenchidos os requisitos do art. 895 do NCPC.
Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará a suspensão dos processos pendentes, conforme já discorrido, podendo as partes legitimadas requererem que seja conhecido eventual recurso extraordinário ou especial e a suspensão dos demais processos em curso no país que versem sobre a mesma questão do incidente.
Ouvidas as partes e demais interessados, manifestando-se o Ministério Público será determinada data para julgamento do incidente.
No julgamento haverá prazo sucessivo de 30 minutos para que autor e réu do processo originário, e o Ministério Público sustentem suas razões, logo após os demais interessados terão igual prazo dividido entre todos para se manifestar, devendo estes se inscreverem com quarenta e oito horas de antecedência.
Julgado o incidente a decisão será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito.
Analisando-se a forma em que o instituto julgará os casos que lhe forem incumbidos, percebe-se que sua forma não é novidade no processo brasileiro, possuindo trâmite semelhante ao dos recursos para o STF, sendo uma ferramenta que trabalha de forma mecânica frente à massiva busca de direitos e a falta de estrutura do judiciário.
No entanto, ferramenta muito perigosa, pois se em dois casos há possibilidade de decisões distintas, e por corolário lógico uma injusta, neste caso poderá haver uma única decisão que servirá para milhares de processos e podendo assim ser injusta para todos, mesmo com a ideia de que a princípio o incidente seja seguro, não será cem por cento livre da possibilidade de erro in judicando.
Dessa forma, perquire-se se não é melhor restar o sistema atual, onde os juízes de direito julgam um caso que poderá ser revisto no tribunal de justiça e em caso excepcional ser encaminhado ao STF ou STJ, do que realizar um caminho mais curto e que poderá incorrer em uma grande insegurança, podendo a ferramenta que busca segurança jurídica e celeridade apenas alcançar a última.
[1] RIBEIRO, Rodrigo Pereira Martins. O Futuro do Processo Civil no Brasil – Uma Análise Crítica ao Projeto do Novo CPC.
[2] MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: Confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Atlas, 2011. p. 404.
[3] RAMOS, Liane Slaveiro. Comentários ao Projeto de Lei nº. 8.046/2010, Proposta de um Novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2012. p. 540.
[4] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo, volume 2: Processo de Conhecimento, Cautelar, Execução e Procedimentos Especiais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 881.
[5] NUNES, Dierle, PATRUS, Rafel Dilly. Novas Tendências do Processo Civil – Estudos Sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil, Salvador: JusPodivm, 2013.p. 472
[6] Ibidem p. 477
[7] Ibidem p. 473