RESUMO: No primeiro capítulo trataremos da questão da Competência, subdividida nos seguintes tópicos: a) competência à luz da Constituição Federal de 1988, que será dado ênfase à competência do STF para processar e julgar os parlamentares; b) competência à luz do Código de Processo Penal, enfocando-se, na determinação da competência, apenas o foro por prerrogativa de função; c) o cancelamento da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal. No capítulo segundo discorreremos apenas sobre a Imunidade Parlamentar e as alterações advindas pela Emenda Constitucional nº 35/2001. No terceiro e último capítulo será tratado da questão do controle de constitucionalidade em face da Lei nº 10.628/02 que se subdivide em: a) a nova redação do art. 84 do Código de Processo Penal; b) o controle de constitucionalidade no Brasil; c) do controle difuso ou aberto (exceção ou defesa); d) do controle concentrado ou via de ação direta, que ainda se subdivide em: 1) da inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do CPP; e 2) da inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do CPP. E por último concluiremos sobre a constitucionalidade ou não da Lei nº 10.628/02, objeto de nosso singelo estudo.
SUMÁRIO: RESUMO..INTRODUÇÃO.I – COMPETÊNCIA.1.1. Competência à luz da Constituição Federal de 1988.1.2. Competência à luz do Código de Processo Penal.1.3. O cancelamento da Súmula 394 do STF.II – DA IMUNIDADE PARLAMENTAR.2.1. Imunidade parlamentar e a Emenda Constitucional nº 35/2001. III – O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM FACE DA LEI Nº 10.628/2002.3.1. A nova redação do art. 84 do Código de Processo Penal.3.2. O controle de constitucionalidade no Brasil.3.3. Do controle difuso ou aberto (exceção ou defesa).3.4. Do controle concentrado ou via de ação direta.3.5. Da inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/02.3.5.1. Da inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do CPP.3.5.2. Da inconstitucionalidade do § 2º do art. 84 do CPP.CONSIDERAÇÕES FINAIS.BIBLIOGRAFIA.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é o de demonstrar que a organização política do Brasil está inserida no Estado Democrático de Direito, o qual tem seu fundamento na Carta Política de 1988 que em seu art. 1º, parágrafo único, estabelece que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Ora, se somos representados, será que convém que nossos representantes tenham alguma espécie de prerrogativa ou privilégio? Será que é moral e legítimo o representante, após o término do mandato, gozar ainda de foro especial por prerrogativa da função? Será possível ainda invocar o princípio da isonomia em face de tais privilégios? É neste raciocínio que discorreremos a respeito de nosso tema, enfatizando a questão da competência, da imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.
No primeiro capítulo, trataremos sobre a competência do Supremo Tribunal Federal dada pela Constituição Federal de 1988 para processar e julgar todas aquelas autoridades que gozam do foro especial por prerrogativa de função, tendo como objetivo principal o julgamento de parlamentares. Ainda neste capítulo, falaremos também sobre a competência à luz do Código de Processo Penal, bem como sobre o cancelamento da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, sua origem e razões ensejadoras de tal cancelamento.
O segundo capítulo é direcionado à questão da imunidade parlamentar e as inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 35/2001, bem como suas espécies em material e formal, hipóteses de sustação do andamento da ação pela respectiva Casa Parlamentar dentre outras.
No terceiro e último capítulo, discorreremos sobre a matéria propriamente dita que é a de demonstrar juridicamente as diversas teses de inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/02, que deu nova redação ao art. 84 do Código de Processo Penal acrescentando-lhe dois parágrafos. Mas para atingirmos nosso objetivo, é preciso entender como funciona, no Brasil, o controle de constitucionalidade das leis. Aqui, há duas espécies de controle, a saber: o preventivo ou político, exercido pelos Poderes Legislativo e Executivo, e o repressivo, exercido pelo Poder Judiciário. Para fins deste trabalho, interessa-nos este último controle já que a referida lei ainda se encontra em vigor.
Por fim, em sede de controle de constitucionalidade, vale dizer que se encontra em trâmite no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 2797-2 tendo como objeto a referida lei. No entanto, até o momento, a Corte Maior ainda não se pronunciou a respeito da questão. É esperado, em todos os níveis da sociedade, que o Supremo Tribunal se manifeste pela inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/02. Só assim, estaria a Suprema Corte exercendo o seu papel de guardião da Constituição Federal e perseguidor do senso de Justiça norteador de um Estado Democrático de Direito.
I – COMPETÊNCIA
1.1. Competência à luz da Constituição Federal de 1988.
O Dicionário define competência como sendo “uma faculdade que a lei concede ao funcionário, juiz ou tribunal, para apreciar e julgar certos pleitos ou questões”. (FERREIRA, 1993, p. 133).
Na lição do constitucionalista e Professor José Afonso da Silva, “competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões”. (2002, p. 477).
A ilustre Professora Ada Pelegrini Grinover (2000, p. 229) ao definir competência, diz que “... é clássica a conceituação da competência como medida da jurisdição (cada órgão só exerce a jurisdição dentro da medida que lhe fixam as regras sobre competência)”. E, continuando, dispõe que:
No Brasil, a distribuição da competência é feita em diversos níveis jurídico-positivos, assim considerados: a) na Constituição Federal, especialmente a determinação da competência de cada uma das justiças e dos tribunais superiores da União; b) na Lei Federal (Código de Processo Civil, Código de Processo Penal etc.), principalmente as regras sobre o foro competente (comarcas); c) nas Constituições Estaduais, a competência originária dos tribunais locais... (2000, p. 230).
A competência do Supremo Tribunal Federal (STF) é dividida em competência originária e recursal, e estão reguladas nos artigos 102 e 103 da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Para este trabalho, interessa-nos apenas o primeiro que, nos dizeres de MORAES (2003, p. 466-467), assim dispõe, in verbis:
A função precípua do Supremo Tribunal Federal é de Corte de Constitucionalidade, com a finalidade de realizar o controle concentrado de constitucionalidade no Direito Brasileiro [...] com o intuito de garantir a prevalência das normas constitucionais no ordenamento jurídico.
Bem observa BANDEIRA DE MELLO, quando qualifica a competência originária do STF como sendo “um conjunto de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional, não comportando a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus[1] pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política”. (Apud MORAES, 2003, p. 467).
O art. 102 da CF/88 prevê os casos de competência originária do STF, in verbis:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
[...]
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no artigo 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
[...]
Deste modo, este trabalho se delimitará em tratar da competência do STF relativa aos membros do Congresso Nacional em face da Lei nº 10.628/02.
1.2. Competência à luz do Código de Processo Penal.
O Código de Processo Penal (CPP) em seu art. 69 estabelece os critérios de determinação da competência a fim de se fixar qual será o foro competente numa possível causa penal. Vejamos, in verbis, quais são:
Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:
I – o lugar da infração;
II – o domicílio ou residência do réu;
III – a natureza da infração;
IV – a distribuição;
V – a conexão ou continência;
VI – a prevenção;
VII – a prerrogativa de função.
Como o objeto de nosso estudo é a competência por prerrogativa de função, deve-se levar em conta, portanto:
... a dignidade da função, a altitude do cargo. Se a pessoa deixa de exercê-lo, perde a prerrogativa, que não é sua, mas da função. Para esse ilustre jurista, se cessar a função do agente, cessa também sua prerrogativa, a competência passa a ser do foro comum, pouco importando que a infração penal tenha sido praticada ao tempo em que seu autor gozava do foro privilegiado. (TORNAGHI Apud DEMERCIAN; MALULY, 2001, p. 222).
Conclui TORNAGHI que “na hipótese de o acusado já estar sendo processado pelo órgão graduado, a perda da função não modificará essa competência, em decorrência do princípio da perpetuatio jurisdicionis[2]”. (Apud DEMERCIAN; MALULY, 2001, p. 223)
Para o ilustre Heráclito Antônio Mossin (1998, p. 497), a competência em razão da função exercida pelos agentes “decorre do privilégio do foro que algumas pessoas ostentam considerando os cargos e funções que ocupam no cenário político-jurídico nacional”.
O mesmo entendimento tem TOURINHO FILHO (2002, p. 125) quando se refere, in verbis, que:
Há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado e, em atendimento a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria, gozam de foro especial, isto é, não serão processadas e julgadas, portanto, como qualquer do povo, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada.
Entende o Mestre e Doutor Luiz Flávio Gomes (2002, p.145) que, para se compreender esta matéria, há necessidade de se conhecer alguns princípios norteadores deste instituto, sendo inadmissível, portanto, no Estado Constitucional e Democrático de Direito quaisquer espécies de privilégio pessoal. Vejamos:
- princípio da hierarquia: [...] Trata-se de competência originária, porque se pressupõe que o órgão superior hierárquico sejam mais isento em qualquer julgamento (Capez);
- da utilidade pública: maior garantia ao julgado, fornecendo-lhe maior isenção (Mirabete);
- da independência do agente político: constitui uma garantia de liberdade de atuação profissional daqueles investidos em cargos públicos coletivos, constituindo um benefício que está vinculado ao cargo e não à pessoa;
- da igualdade: não há que se falar em ofensa ao princípio da igualdade, já que se trata diferentemente os desiguais, não incorrendo a norma em individualismos de forma a prevalecer certo grupo de pessoas em detrimento de outros [...].
GOMES ainda dispõe que, quanto à cessação do exercício funcional, caberá distinguir três situações:
a) quando o fato é cometido antes do exercício da função; b) quando o fato é cometido durante o exercício da função; c) e quando o fato é cometido após o exercício da função.
No primeiro caso, a partir do momento em que a função do sujeito passa a produzir efeitos jurídicos (posse, diplomação no caso dos parlamentares etc.). desloca-se a competência do juízo pelo qual tramita o feito para o tribunal competente.
Em relação à terceira hipótese [...], não há que se falar (em nenhum momento) em foro especial, pois a matéria é regida pela Súmula 451 do STF [...].
No que concerne à segunda hipótese [...] vigorava até pouco tempo a Súmula 394, que dizia: ‘Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício’. (2002, p. 146). (grifo nosso).
A Súmula 394 do STF editada em 03 de março de 1964 tinha por objetivo resguardar relevantes funções públicas, exigindo uma relação de contemporaneidade (cometido durante o exercício funcional), resguardando desse modo a perpetuatio jurisdicionis (processo iniciado numa Corte deveria nela continuar, apesar da cessação da função), conforme GOMES (2002, p. 147).
1.3. O cancelamento da Súmula 394 do STF.
A Súmula 451 editada pelo STF, que permanece ainda em vigor, estabelece que “a competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional”. Nada mais natural, tendo em vista o fato de que esta competência se legitima apenas quanto àqueles delitos praticados no exercício da função e em razão dela. Face a tal entendimento, não se sustentava a referida súmula 394 segundo a qual “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. (MOREIRA, on line).
Diante desse entendimento, vejamos as razões que motivou o Pleno do STF, por unanimidade, ao cancelamento da referida Súmula, tendo como relator o Ministro Sidney Sanches, conforme MOREIRA (on line):
[...]
Observo que nem a Constituição de 1946, sob cuja égide foi elaborada a Súmula 394, nem a de 1967, com a Emenda Constitucional nº. 1/69, atribuíram competência originária ao Supremo Tribunal Federal, para o processo e julgamento de ex-exercentes de cargos ou mandatos, que durante o exercício, sim, gozavam de prerrogativa de foro, para crimes praticados no período [...] A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. Essa correção, sinceridade e independência moral com que a lei quer que sejam exercidos os cargos públicos ficaria comprometida, se o titular pudesse recear que, cessada a função, seria julgado, não pelo Tribunal que a lei considerou o mais isento, a ponto de o investir de jurisdição especial para julgá-lo no exercício do cargo, e sim, por outros que, presumidamente, poderiam não ter o mesmo grau de isenção. Cessada a função, pode muitas vezes desaparecer a influência que, antes, o titular do cargo estaria em condições de exercer sobre o Tribunal que o houvesse de julgar; entretanto, em tais condições, ou surge, ou permanece, ou se alarga a possibilidade, para outrem, de tentar exercer influência sobre quem vai julgar o ex-funcionário ou ex-titular de posição política, reduzido então, freqüentemente, à condição de adversário da situação dominante. É, pois, em razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do ocupante, que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a jurisdição especial, como prerrogativa da função mesmo depois de cessado o exercício. (RTJ 22, págs. 50 e 51);
[...]
Parece-me que é chegada a hora de uma revisão do tema, ao menos para que se firme a orientação da Corte, daqui para frente, ou seja, sem sacrifício do que já decidiu com base na Súmula 394, seja ao tempo da Constituição de 1946, seja à época da E.C. nº 1/69, seja sob a égide da Constituição atual de 1988.
A tese consubstanciada na Súmula 394 não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, "b", estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar "os membros do Congresso Nacional", nos crimes comuns.
Continua a norma constitucional não contemplando, ao menos expressamente, os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, "b" e "c"). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em contemplar, com a prerrogativa de foro perante esta Corte, as autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato.
Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita nesta Corte. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos.
Além disso, quando a Súmula foi aprovada, eram raros os casos de exercício de prerrogativa de foro perante esta Corte.
Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República. E a Corte, como vem acentuando seu Presidente, o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em reiterados pronunciamentos, já está praticamente se inviabilizando com o exercício das competências que realmente tem, expressas na Constituição, enquanto se aguardam as decantadas reformas constitucionais do Poder Judiciário, que, ou encontram fortíssimas resistências dos segmentos interessados, ou não contam com o interesse maior dos responsáveis por elas. E não se pode prever até quando perdurarão essas resistências ou esse desinteresse.
É de se perguntar, então: deve o Supremo Tribunal Federal continuar dando interpretação ampliativa a suas competências, quando nem pela interpretação estrita, tem conseguido exercitá-las a tempo e a hora?
Não se trata, é verdade, de uma cogitação estritamente jurídica, mas de conteúdo político, relevante, porque concernente à própria subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional. Objetar-se-á, ainda, que os processos envolvendo ex-titulares de cargos ou mandatos, com prerrogativa de foro perante esta Corte, não são, assim, tão numerosos, de sorte que possam agravar a sobrecarga já existente sem eles.
Mas não se pode negar, por outro lado, que são eles trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuem como verdadeiros Juízes de 1º grau, à busca de uma instrução que propicie as garantias que justificaram a súmula. Penso que, a esta altura, se deva chegar a uma solução oposta a ela, ao menos como um primeiro passo da Corte para se aliviar das competências não expressas na Constituição, mas que ela própria se atribuiu, ao interpretá-la ampliativamente e, às vezes, até, generosamente, sem paralelo expressivo no Direito Comparado.
Se não se chegar a esse entendimento, dia virá em que o Tribunal não terá condições de cuidar das competências explícitas, com o mínimo de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte.
Os riscos, para a Nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão de ser levados em grande conta, no presente julgamento.
Aliás, diga-se de passagem, se nem a própria Câmara dos Deputados quis continuar permitindo o exercício do mandato, pelo acusado, tanto que o cassou, ao menos em hipótese como essa parece flagrantemente injustificada a preocupação desta Corte em preservar a prerrogativa de foro.
Nem se deve presumir que o ex-titular de cargo ou mandato, despojado da prerrogativa de foro, fique sempre exposto à falta de isenção dos Juízes e Tribunais a que tiver de se submeter. E, de certa forma, sua defesa até será mais ampla, com as quatro instâncias que a Constituição Federal lhe reserva, seja no processo e julgamento da denúncia, seja em eventual execução de sentença condenatória. E sempre restará a esta Corte o controle difuso de constitucionalidade das decisões de graus inferiores. E ao Superior Tribunal de Justiça o controle de legalidade. Além do que já se faz nas instâncias ordinárias, em ambos os campos.
Por todas essas razões, proponho o cancelamento da Súmula 394.
[...]
Nesse sentido é meu voto, com a ressalva de que continuam válidos todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394. (grifos nossos).
Face a esta decisão histórica, ficou consignado que o cancelamento tem efeito ex nunc[3] permanecendo válidos todos os atos processuais praticados pelos tribunais com base na respectiva Súmula até 25 de agosto de 1999, obedecendo ao princípio tempus regit actum[4].
GOMES (2002, p. 156-157), analisando tal entendimento diz que nem se pode falar em perpetuatio jurisdicionis, ou seja, encerrado o mandato ou o cargo público, o processo será redistribuído à Justiça de Primeira Instância, ressalvado o caso de o agente contar com foro especial por prerrogativa de função de outra função que esteja exercendo.
E, mais adiante, afirma que a competência expressamente constitucional não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim o pretendia. (2002, p. 156).
Continuando em seu raciocínio hermenêutico de interpretação da Lei Maior, dispõe que:
[...] para uma exata interpretação constitucional, é importante a compreensão da Constituição como norma superior, que deverá ser analisada a partir de um conjunto que vislumbre sua maior harmonização e efetividade, reconhecendo-a como instrumento de amparo à liberdade individual, numa busca de maior compreensão do seu espírito e vontade, tendo como finalidade maior a proteção e a garantia da liberdade e dignidade do homem. Deve, ainda, tal interpretação orientar-se sempre segundo o fim maior da Constituição, porque o Estado precisa estar legitimado democraticamente, fundando-se no direito e não na força.
Em suma: pouco importa se o crime é ou não funcional. Cessando o mandato ou deixando a pessoa de ocupar cargo ou função, cessa a prerrogativa. (2002, p. 158).
Na hipótese de co-autoria, em princípio e por força da continência, todos os co-autores deverão ser julgados pelo mesmo tribunal, conforme entendimento do STF, in verbis:
Supremo Tribunal Federal (Rcl 1.121-PR – rel. Min. Ilmar Galvão – Publicação: DJ 16.06.2000 – p. 00032 – ement. Vol. 01995-01 – p. 00033 – j. 04.05.2000 – Tribunal Pleno).
[...]
Em face dos princípios da conexão e da continência, dado o concurso de agentes na prática do delito, deve haver simultaneus processus[5]. A circunstância de encontrar-se entre os co-réus pessoa que deve ser processada pelo Supremo Tribunal Federal, sua competência se prorroga em relação aos demais acusados, salvo se esta Corte declinar de sua competência, na hipótese de demora na manifestação da Casa Legislativa sobre o pedido de licença para processar o parlamentar.
É de ser tida por afrontoso à competência do STF o ato da autoridade reclamada que desmembrou o inquérito, deslocando o julgamento do parlamentar e prosseguindo quanto aos demais.
Reclamação que se julga procedente. (Apud GOMES, 2002, p. 159).
Há quem entenda que o cancelamento em nada alterou a competência dos Tribunais, conforme entende TOURINHO FILHO que assim dispõe, in verbis:
Se a Constituição, nos arts. 29, X, 96, III, 102, I, b e c, 105, I, e 108, fixou a competência especial por prerrogativa de função para as pessoas ali citadas, evidente que essa competência persistiria mesmo após a cessação do exercício funcional, desde que a infração houvesse sido cometida durante o exercício do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal fossem instaurados após a cessação da função. (2002, p. 139). (grifo nosso).
Salienta ainda TOURINHO FILHO que sempre vigorou o princípio de que o acusado deve ser processado e julgado por autoridade competente ao tempo da infração, apontando para a garantia constitucional que dispõe “ninguém será processado nem sentenciado senão pela a autoridade competente”. E entende-se como autoridade competente:
... não só o Juiz constitucionalmente competente, como, inclusive, aquele com competência fixada ante factum[6]. Com razão observa Julio Maier: el único tribunal competente para el juicio es aquel designado como tal por la ley vigente ao momento en que se comete el hecho punible objeto del procedimiento[7] (Derecho procesal penal argentino; 1b, fundamentos, Buenos Aires, Ed. Hammurabi, 1989, p. 491).
[...]
Assim, data maxima venia[8], não cremos pudesse a Excelsa Corte determinar a remessa dos autos à primeira instância de todos os processos instaurados com fulcro naquela Súmula, mormente aqueles que estavam em curso.
[…]
A crítica maior que se faz ao foro pela prerrogativa de função repousa na circunstância de se omitir o duplo grau, princípio de valor relevantíssimo. Mas o problema pode ser perfeitamente e facilmente contornável; basta que a competência para esses casos fique afeta à Câmara ou Turma, com recurso para o Pleno ou Órgão Especial. (2002, p. 140-142).
Continuando, dispõe ainda que:
... mesmo cessada a função, o foro deve continuar, malgrado tenha o Excelso Pretório cancelado a Súmula 394. E assim pensamos em respeito ao princípio do Juiz natural, dogma de fé. Por isso entendemos, com Frederico Marques (Da competência em matéria penal, Saraiva, 1953, p. 230), que, se a infração for cometida durante o exercício funcional, o foro especial persiste mesmo que cessada a função. (2002, p. 127).
Diferentemente do que foi exposto, NUCCI (2003, p. 208) não está convencido, como quer a maioria da doutrina, de que a existência do foro privilegiado se justifica como maneira de dar especial relevo ao cargo ocupado e jamais pensando em estabelecer desigualdades entre os cidadãos. E, mais adiante, arremata com o seguinte raciocínio:
Se todos são iguais perante a lei, seria preciso uma particular e relevante razão para afastar o criminoso do seu juiz natural, entendido este como o competente para julgar todos os casos semelhantes ao que foi praticado [...] O fato de se dizer que não teria cabimento um juiz de primeiro grau julgar um Ministro de Estado que cometa um delito, pois seria uma ‘subversão de hierarquia’ não é convincente, visto que os magistrados são todos independentes e, no exercício de suas funções jurisdicionais, não se submetem a ninguém, nem há hierarquia para controlar o mérito de suas decisões [...] O juiz de 2º grau está tão exposto quanto o de 1º grau em julgamentos dominados pela política ou pela mídia [...] Por outro lado, caso deixe-se levar pela pressão e decida erroneamente, existe o recurso para sanar qualquer injustiça. Enfim, a autoridade julgada pelo magistrado de 1º grau sempre pode recorrer, havendo equívoco na decisão, motivo pelo qual é incompreensível que o foro por prerrogativa de função mantenha-se no Brasil [...] Entretanto, a competência por prerrogativa de função está constitucionalmente prevista, razão pela qual deve ser respeitada. No futuro, havendo amadurecimento suficiente, tal situação merecerá ser alterada. (2003, p. 209-210). (grifo nosso).
Por tudo que foi visto até agora, é inconcebível que ex-políticos uma vez encerrado o mandato eletivo continuem a gozar de foro por prerrogativa de função, não havendo mais razão de subsistir tal prerrogativa face ao princípio da isonomia constitucional.