Resumo: O presente texto aborda a evolução semântica do conceito de direito subjetivo, desde as primeiras tentativas pelos romanos, posteriormente corroborada pela igreja católica, passando pela concepção dúplice da escola psicológica, chegando-se às teorias negativistas de Duguit e de Kelsen. Por fim, questiona-se a reprodução acrítica de tais conceitos no ensino jurídico brasileiro, analisando alguns dos manuais de direito contemporâneo, que continuam identificando o direito subjetivo como proteção do interesse humano, o que nos parece ser um anacronismo redutor de complexidade.
Palavras chaves: Direito. Sujeito. Crítica.
Sumário: Introdução. 1. Sobre o surgimento do conceito de direito subjetivo. 2. Direito subjetivo: vontade ou interesse? 3. Teorias negativistas: direito subjetivo versus direito objetivo. 4. Crítica ao conceito de direito subjetivo reproduzido no ensino jurídico. Conclusão.
Introdução
O conceito de direito subjetivo apresenta-se como um dos mais reproduzidos pela teoria do direito, uma vez que representa a expressão máxima do ideal individualista. Tal conceito, contudo, merece ser problematizado, sendo esse o objetivo do presente artigo.
Para tanto, inicialmente, descrever-se-ão as polêmicas acerca do surgimento do conceito de direito subjetivo, demonstrando como o homem deixa de ser entendido como “sujeito a” para ser compreendido como “sujeito de”, com a superação do Estado Absolutista pelo movimento liberal burguês.
Após, serão abordadas as principais teorias acerca do direito subjetivo, como as teorias da vontade, do interesse, além das negativistas, para, por fim, verificar como tais conceitos se reproduzem, sem qualquer problematização, nos “manuais” de direito mais utilizados nas graduações em direito.
Por fim, questiona-se a reprodução acrítica de tais conceitos no ensino jurídico brasileiro, analisando alguns dos manuais de direito contemporâneo, que continuam identificando o direito subjetivo como proteção do interesse humano, o que nos parece ser um anacronismo redutor de complexidade.
1. Sobre o surgimento do conceito de direito subjetivo
Strauss advoga o nascimento romano do conceito de direito subjetivo, afirmando que Cícero, ao admitir a existência de uma centelha divina em cada homem, já reconhecia a liberdade humana de se harmonizar ou não com o fim que lhe era dado. Apesar do escatologismo herdado da Grécia, Cícero teria reconhecido pela primeira vez ao homem racional a liberdade e a vontade. (STRAUSS, 1986, p. 54)
Villey discorda dessa busca remota à concepção de sujeito de direito, uma vez que em Roma a noção de direito foi herança do jus grego, que provém do vocábulo justitia, utilizado para significar, sobretudo, a ideia de distribuição, equidade. Neste contexto, a noção de direito não corresponde ao ideal de “igualdade em liberdade e dignidade”, fundamental para o conceito de direito subjetivo. A justiça romana se referiria a questões exteriores ao indivíduo, tais como a partilha de bens materiais, de obrigações ou mesmo do exercício de funções públicas. O produto dessa partilha não seria isonômico, no sentido moderno, mas equitativo, uma vez que a proporção justa se daria em face da qualidade das pessoas e não da razão subjetiva igualmente comum a todos os homens (1983, p. 34-38).
A concepção romana reduz, portanto, o direito à realidade, caracterizando-o fundamentalmente por seu caráter objetivo. E “afirmar o caráter objetivo do direito é significar antes de tudo que este não radica primariamente no sujeito, senão em algo externo a ele, na ação exterior ou na coisa.” (GALLEGO, 1996, p. 145).
Tal modo de entender o direito é retomado pela teoria tomista clássica, que também vislumbra a justiça como sendo a distribuição de bens segundo o que é devido a cada um, fazendo do homem medieval um “devedor”, devedor de Deus, por tê-lo criado, e devedor da própria comunidade, já que a comunhão se dá exatamente para que a cada um sejam atribuídos os direitos necessários para que sejam perfeitos e completos. Para melhor aclarar essa ideia, reproduzimos a síntese de Gallego (1996, p.47-48):
O fundamento do direito descansa no modo próprio pelo qual fomos criados e do que nos é devido para nossa perfeição. Este modo próprio de ser é o da pessoa. Dizer ‘pessoa’ é, de algum modo, assinalar o nome próprio do humano. Vale dizer, do sujeito racional e livre e, portanto, consciente de ser devedor. De um modo primordial e religioso para com Deus; por consequência, de um modo decorrente da justiça para com outro como ele, para um igual. Se as coisas devidas, elas são devidas para realizar nossa perfeição, (...). O devido é a raiz da justiça. A concreta determinação do débito é o direito.
Tal noção objetiva estaria longe da concepção do direto como o poder de um sujeito sobre determinada coisa, a qual só seria desenvolvida com o nominalismo do franciscano inglês Ockham, no século XIV (VILLEY, 1964, p. 117). Ockham realizou uma releitura dos textos sagrados, lançando uma interpretação surpreendentemente libertária, com a defesa de uma concepção individualizada do direito natural, que rompeu com a tradição tomista (VILLEY, 1964, p. 124).
O desenvolvimento das ideias de Ockham, não sem razão, se deu num momento histórico extremamente particular da civilização ocidental, caracterizado pela ascensão da burguesia europeia e a formação dos Estados Absolutos em superação à crise feudalista. O nominalismo foi, portanto, contemporâneo do primeiro humanismo, de Dante, de Giotto, de Petrarca e de Boccaccio, bem como dos primeiros pós-glosadores no âmbito da ciência jurídica. São contemporâneos, ainda, da guerra dos Cem Anos, que consolidou as monarquias nacionais, e do exílio dos papas em Avinhão, que caracterizou o início da decadência da Igreja Católica Romana (LOPES, 2008, p. 148).
Esse cenário teórico e histórico é muito bem descrito por Boehner e Gilson (1970, p. 533):
Se o século XIII é dominado pelas grandes sínteses, no século XIV é a crítica que vem reivindicar os seus direitos. O exame das posições fundamentais e a revisão do patrimônio herdado, já iniciados por Duns Escoto, vão assumindo uma importância sempre crescente na obra dos seus sucessores. É claro que a filosofia ‘clássica’ do século XIII não desaparece de todo. Sobrevive no âmbito mais restrito das escolas. Um número mais ou menos considerável de discípulos permanece fiel a um S. Boaventura, a um Alberto Magno, a S. Tomás e a Duns Escoto; sua importância, porém, é diminuta. Os melhores espíritos voltam-se para novas idéias e novas orientações. Estamos no início da era burguesa. As questões de ordem prática passam a ocupar o primeiro plano. Descobre-se o valor do individual, cujos direitos começam a ser reconhecidos tanto na ciência, como na economia e na política.
Surgindo numa época de rupturas, o nominalismo criticou duramente o universalismo que fundamentava as teorias jurídicas e filosóficas até então - cujo expoente máximo era Tomás de Aquino - afirmando que os universais seriam conceitos apenas, não possuindo existência real, mas sim nominal, como instrumentos do pensamento.
Dessa forma, desenvolveram uma lógica diversa para a busca da verdade, que deveria evitar a ilusão causada pelo universo das palavras, buscando a realidade, que precisa ser compreendida e explicada. Em conseqüência dessa crítica, o nominalismo defende que não existe o mal ou o bem em si mesmo, em essência, mas em relação a um referencial, qual seja: a vontade de Deus.
De maneira diversa da teorizada por Tomás de Aquino, Ockham entende que mala quia prohibita, non prohibita quia mala (males porque são proibidos, não proibidos porque são males). Neste contexto, a vontade torna-se essencial para compreender o direito, dando-lhe uma tônica subjetivista. (LOPES, 2008, p. 148)
É neste contexto que Ockham desenvolve a distinção entre leis preceptivas, que conteriam um imperativo tal qual “ame a Deus e ao próximo”; leis interditivas, que trariam uma proibição como “não matarás”; e leis permissivas, decorrência da ausência de preceito ou interdição. E é exatamente no âmbito das leis permissivas que Ockham desenvolve sua idéia de direito subjetivo, isto porque, uma vez que não havendo imperativo ou proibição, abrir-se-ia espaço para a liberdade individual ordenada pela razão do sujeito (VILLEY, 1964, p. 124).
A concepção individualista de Ockham (VILLEY, 1975, p. 249-250) fica ainda mais clara quando da sua oposição ao Papa João XXII, que combateu o voto de pobreza praticado pelos franciscanos, pretendendo forçá-los a se tornarem proprietários. Para o Papa, seria juridicamente impossível a utilização dos bens pelos franciscanos sem que houvesse um direito de propriedade. Tal situação seria ainda mais clara quando um franciscano estivesse diante de bens consumíveis, sendo impossível separar uso e propriedade nestes casos. Ockham, ousando discordar da interpretação papal, entendia de forma diferente a relação entre direito e coisa. Para ele, o direito seria um poder do indivíduo que se projetaria sobre a coisa, poder esse renunciado pelos franciscanos, que, contudo, não renunciariam ao uso de fato sobre os referidos bens (VILLEY, 1975, p. 249-250).
Vê-se, portanto, que o Papa João XXII baseou-se na definição clássica de jus, herdada do direito romano e defendida por Tomás de Aquino, entendendo o direito como a partilha de coisas exteriores ao indivíduo, que teria a finalidade dar a cada um o que lhe é devido, numa perspectiva totalmente objetivista, tornando inseparáveis direito e coisa, o que impossibilitou uma compreensão subjetiva do direito, relacionada com a vontade do indivíduo. Como dito, Ockham inova ao alterar a concepção de direito identificando-a não mais com a distribuição ou partilha de bens, mas sim com o poder do indivíduo sobre a coisa, que permite com que distinga o domínio humano comum, dado por Deus a todo o gênero humano e presente no estado de inocência (anterior ao pecado original) e o domínio humano próprio, caracterizado pela avareza e ganância. Em suas palavras:
O primeiro domínio, aquele comum a todo o gênero humano, existiu no estado de inocência, e teria permanecido se o homem não houvesse pecado, mas sem conceder a algumas pessoas o poder de apropriar-se de alguma coisa, a não ser pelo uso, como foi dito. E não haveria necessidade nem utilidade em ter a propriedade de qualquer coisa temporal, porque naquelas Pessoas não havia nenhuma avareza, ou desejo de possuir ou de usar alguma coisa temporal contra a reta razão. Depois do pecado, porém, como proliferou entre os homens a avareza e o desejo de possuir e de usar de modo incorreto as coisas temporais, foi útil e conveniente que as coisas temporais fossem tomadas como próprias e não ficassem todas em comum, a fim de refrear o desejo imoderado dos maus de possuir bens temporais e – visto que as coisas comuns são em geral negligenciadas pelos maus – para evitar a negligência quanto à devida disposição e procura dos mesmos bens. Por isso, após a queda, juntamente com o domínio que havia no estado de inocência, houve também aquele poder de apropriar-se das coisas temporais (1988, p. 111-112).
O duelo entre o Papa João XXII e Ockham torna-se compreensível se considerarmos que no século XIII multiplicaram-se os movimentos de pobres no cristianismo, dado o aumento do seu número no mundo urbano. Em contrapartida, a Igreja, grande proprietária feudal, distanciava-se cada vez mais do meio dos pobres, com exceção dos franciscanos espirituais, que cumpriam rigorosamente o voto de pobreza e o ideal de Francisco de Assis, sendo declarados hereges e perseguidos pelo papado (LOPES, 2008, p. 149-155).
Dentro deste contexto, Ockham escreve sua obra em defesa dos franciscanos espirituais, a qual o leva em um primeiro momento à prisão, depois à fuga para Munique, onde passa a ser protegido pelo imperador Luís da Baviera. Tal aproximação com a monarquia faz com que Ockham inicie a produção de uma obra de justificação do poder do imperador, em detrimento do poder do papado (LOPES, 2008, p. 149-155).
Desafiando o poder do papa, Ockham (1988, p. 41) afirma que:
Não só é lícito investigar a respeito do poder do papa, mas também é lícito e convém julgar a respeito de suas obras, se forem manifestamente más, e tê-las como más e repreensíveis, e no tempo e lugar oportuno afirmar tal coisa e levar a conhecimento dos outros.
O nominalista defende uma monarquia universal, com autonomia do poder civil, sem interferência do papado, pela simples razão de considerá-la a forma de governo mais apta a garantir a utilidade da vida comum. Como se percebe, o voluntarismo defendido pelo franciscano o conduz a uma lógica individualista, utilitária e pragmática, bem descrita por McGrade nos seguintes termos:
Como toda a sua metafísica é dos indivíduos e coisas singulares, o universo jurídico também é de indivíduos singulares. É deles que se parte para falar em direito, e cada indivíduo tem uma liberdade correspondente à sua singularidade. Ockham é individualista: uma comunidade não se distingue da soma de seus elementos (1980, p. 158).
Contudo, por mais pragmático que nos possa parecer, o individualismo de Ockham está preso ao viés escatológico próprio da sua época, já que “a história da Cristandade, até o século XVI, é uma história das expectativas, ou, melhor dizendo, de uma contínua expectativa do final dos tempos” (KOSELLECK, 2006, p. 24). Até o século XVI o espaço da experiência nutria-se da perspectiva de uma única geração histórica, significando que presente e passado estariam circundados por um horizonte histórico comum (KOSELLECK, 2006, p. 21-22). Neste contexto:
(...) a ação jurídica nas sociedades arcaicas só podia apresentar-se como reação à expressão do passado através de frustração, ou como configuração da continuidade do presente, mas não como um comprometimento das expectativas ou da ação tendo em vista um futuro que não poderia processar-se de outra forma (LUHMANN, 1985, p. 166).
Sendo assim, apesar da apregoada liberdade do indivíduo em Ockham, esta tinha seus limites na história, na certeza do juízo final. Essas amarras temporais só se rompem definitivamente trezentos anos depois, quando as ideias iluministas atribuem ao homem a tarefa de “introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado” (KOSELLECK, 2006, p. 25). A Revolução Francesa, evidenciando o conceito de história da escola alemã, torna possível a erosão dos modelos do passado, transforma o futuro num campo de possibilidades finitas, limitadas, uma vez que organizadas racionalmente, segundo o maior ou menor grau de probabilidade (KOSELLECK, 2006, p. 31-32). O indivíduo vira protagonista da historia e do direito, consolidando a noção subjetiva deste.
O iluminismo fundante da Revolução Francesa, como sabemos, desenvolveu-se a partir da crítica ao Absolutismo, “no início como sua conseqüência interna, em seguida como sua contraparte dialética e como o inimigo que preparou sua decadência” (KOSELLECK, 1999, p. 19).
O postulado de que o monarca absoluto deteria o monopólio do restabelecimento da paz, tão evidente no Leviatã hobbesiano, leva à responsabilidade absoluta do soberano, pressupondo a dominação de todos os sujeitos. A estabilidade da ordem absoluta é conquistada com a aceitação de que a soberania política absoluta do monarca é uma necessidade moral (KOSELLECK, 1999, p. 22-35).
Dessa forma, a moral passa a ser subordinada à política e remetida ao “foro interno do sujeito para que, com isso, o poder possa se fazer presente pela lei que instrumentaliza o poder, a fim de efetivar a paz desejada” (MAIA in BRANDÃO; ADEODATO; CAVALCANTI, 2009, p. 6).
O homem só deixa de ser entendido como “sujeito a” para ser compreendido como “sujeito de” com a superação do Estado Absolutista pelo movimento liberal burguês, que, como dito, fez surgir uma nova forma de falar do futuro (MAIA in BRANDÃO; ADEODATO; CAVALCANTI, 2009, p. 7).
Surge a necessidade de conduzir o futuro para o progresso, fazendo gerar expectativas, que buscam antecipar-se ao futuro e transcender-se além daquilo que poderia ocorrer de forma inesperada. A normatividade do direito passa a ser utilizada para reforçar a indiferença contra eventos futuros imprevisíveis, de forma que o futuro torna-se a preocupação central do direito. A modernidade distancia-se, pois, do seu passado, abrindo-se muito mais ao seu futuro, pois são capazes de expelir mais incertezas em seu presente, de forma que “o direito historicamente dado torna-se criticamente controlável pela concepção básica de um direito natural, mas isso não o torna modificável em todos os sentidos” (LUHMANN, 1985, p. 166-167).
A importância do direito, portanto, intensifica-se com o desenvolvimento dessa consciência evolutiva, constituindo a concepção e a prática política de um planejamento da sociedade através dos meios jurídicos, buscando tornar as condições humanas independentes do acaso. Por isso, “essas sociedades já podem diferenciar seu futuro da simples continuidade da vida atual, tornando-se capazes de reconhecer as possibilidades evidentemente em aberto, e até mesmo a conceber um futuro diferente em escatologias” (LUHMANN, 1985, p. 166-167).
O futuro passa, então, a ser submetido a concepções de objetivos enquanto horizonte da disponibilidade do presente, sendo o homem sujeito racional capaz de concretizar tais objetivos. Neste contexto, o conceito de direito subjetivo surge para saciar as necessidades de validade e de justificação da forma moderna de poder, possibilitando o controle do futuro, possibilitando a manutenção do status quo do sujeito burguês recém conquistador do poder político (MAIA in BRANDÃO; ADEODATO; CAVALCANTI, 2009, p. 8-9; KOSELLECK, 2006, p. 25-32).
Inegável, portanto, a importância histórica do desenvolvimento do conceito de direito subjetivo como instrumento de controle de expectativas de futuro, fazendo com que as mais célebres e até hoje retomadas definições de direito subjetivo fossem construídas por juristas europeus do século XVIII e XIX, sendo necessário, sempre que se queira tratar do direito subjetivo, fazer menção à Teoria da Vontade e à Teoria do Interesse, uma vez que nos parece que houve uma estagnação da teoria do direito frente ao falso dualismo da “vontade” versus “interesse”, olvidando-se de que o direito subjetivo nada mais é do que um conceito construído, e não uma verdade ontológica.
2. Direito subjetivo: vontade ou interesse?
Inicialmente, a Escola Psicológica, mais conhecida como Teoria da Vontade, formulada por Windscheid e defendida, dentre outros, por Savigny, caracterizou o direito subjetivo pelo seu aspecto volitivo, opondo-o ao direito objetivo, cuja aplicação dependeria da vontade do sujeito concretamente considerado.
Para os teóricos que entenderam o direito como o poder da vontade, esta deveria ser encarada como um dado existencial, que integraria a natureza humana, servindo, portanto, para diferenciar o homem dos demais animais (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 147). Esta forma de compreensão do direito, contudo, sofre severas críticas, fundamentadas no argumento central de que, mesmo sem possuir vontade própria em algumas situações, o ser humano não deixaria de ser sujeito de direito.
Duramente criticada, a Escola Psicológica reformula seus conceitos, definindo o direito subjetivo como a vontade que pode se expandir dentro dos limites traçados pela ordem jurídica objetiva, ou seja, “o poder de ação somente se caracteriza como prerrogativa do titular, enquanto subordinado ao comando estatal” (PEREIRA, 2006, p. 34).
A vontade, portanto, não seria a do indivíduo, mas a do ordenamento jurídico. Dito de outra forma, o termo vontade deveria ser compreendido no seu sentido lógico, como vontade normativa, ou seja, como poder jurídico do querer, e não no sentido psicológico.
No prólogo ao extenso “Sistema do direito romano atual”, Don Manuel Durá e Bás introduzem ao leitor as já reformuladas ideias de Savigny destacando que uma dada relação não seria considerada jurídica sem um ato que, segundo a lei, influísse em seu estado, bem como não seria uma relação especial sem que houvesse uma regra de direito determinando a índole particular da situação dos seres que a formam. Neste contexto, cada ser encontraria na relação jurídica a extensão ou restrição de sua liberdade, ou seja, encontraria o direito subjetivamente considerado, que pode ser compreendido como “um poder moral para um fim racional” (SAVIGNY, 1878, p. XXXII).
Considerado subjetivamente, o direito deixaria, então, de se identificar com a lei, sendo percebido como um poder moral, decorrente da capacidade do indivíduo, mas limitado pela regra de direito, devendo ser exercido por meio de atos que põem em relação um ser com outro ser. Tal relação, que se desenvolve dentro dos limites das regras de direito, protegidas pela autoridade, deve manter-se na normalidade de seu estado (SAVIGNY, 1878, p. XXXII).
Contudo, há a possibilidade de violação desse estado de normalidade com a extrapolação do poder moral pelo sujeito. Nesse caso, o necessário reestabelecimento da normalidade deve acontecer com a aplicação das regras do ordenamento, possibilitando, assim, o entrelaçamento do fim subjetivo e do fim objetivo do direito em sua compreensão científica e nas realidades da vida. Dessa forma, o ordenamento jurídico responderia às duas necessidades externas que deve satisfazer: o desenvolvimento individual e a conservação social (SAVIGNY, 1878, p. XXXII – XXXIII).
Como se observa, o direito passa a ser encarado precipuamente sob a ótica subjetiva, sem olvidar dos seus limites objetivos, destacando o próprio Savigny (1878, p. 25-26) que:
O direito, considerado na vida real, abraçando e penetrando por todos os lados nosso ser, nos aparece como um poder do indivíduo. Nos limites deste poder, reina a vontade do indivíduo, e reina com o consentimento de todos. A tal poder ou faculdade chamamos direito, e alguns, direito em sentido subjetivo. O direito não se manifesta nunca mais claramente que quando, negado ou atacado, vem a autoridade judicial a reconhecer sua existência e extensão; mas um exame mais atento nos manifesta que a forma lógica de um juízo satisfaz só uma necessidade acidental, e que, longe de esgotar a essência da coisa, supõe dita forma uma realidade mais profunda, isto é, a relação diversa abstratamente considerada: assim, um juízo sobre um direito especial não é racional e verdadeiro, sim quando se deriva do inteiro conceito da relação de direito. Esta relação tem uma natureza orgânica que se manifesta, seja pelo conjunto de suas partes constitutivas que se equilibram e limitam mutuamente, seja por seus desenvolvimentos sucessivos, sua origem e seus descensos.
Tal percepção do direito subjetivo atrelado ao direito objetivo é reflexo da própria ciência jurídica alemã do século XIX, que se desenvolvia a partir do estudo do direito romano, ainda em vigor em várias partes do território alemão. Neste contexto, os juristas alemães ainda entendiam como absoluta a máxima de Celso, segundo a qual a ação deveria ser entendida como o próprio direito material colocado em movimento, ou seja, a ação não era nada mais que o direito de pedir em juízo o que é devido ao sujeito.
Ninguém havia pensado em por em dúvida a substancial afinidade entre a figura da actio – cuja referência é a outro momento histórico – e a figura moderna da ação, nem a legitimidade de reunir ambas em uma única definição compreensiva. (PUGLIESE in WINDSCHEID; MUTHER, 1974, p. XI).
Apenas com o desenvolvimento da teoria do interesse é que se ressalta a diferença entre a ação e o direito, uma vez que, para esta concepção, o poder de ação só se solidifica no momento em que o elemento volitivo encontra um fim prático de atuação, que se convencionou chamar de “interesse de agir”. Foi assim que Ihering deslocou o eixo da discussão da noção de vontade para a de interesse. O argumento é o de que a percepção anterior não serviria para explicar o direito dos que não possuíam ou não podiam expressar sua vontade, a exemplo do deficiente mental ou de quem ignora ter direito, como no célebre exemplo do herdeiro que desconhece a herança.
Em sua crítica, Ihering nega que o direito possa ser resumido à mera faculdade de obrigar, afirmando que há necessidade de que lhe seja dado um elemento substancial, que seria a utilidade, e um elemento formal, que seria a proteção, a garantia, chegando a conceituar o direito como o interesse juridicamente protegido. Adverte, ainda, contra aqueles que não vêem o essencial do fim do direito, que seria o de satisfazer as necessidades da vida de uma forma assegurada, independentemente da capacidade do indivíduo, ressaltando que, quanto menos capaz é uma pessoa de atender a essas necessidades, maior a responsabilidade do direito (IHERING, 2003, p. 14-15).
Tratando da possessão, Ihering afirma que o interesse dá movimento à relação jurídica, defendendo que não entramos em relação nem com pessoas, nem com coisas que não nos ofereçam qualquer interesse. O estabelecimento de uma relação implica, portanto, a expressão do interesse despertado no sujeito. Neste contexto, a relação possessória seria a afirmação do interesse que uma pessoa tem em uma coisa. O interesse, neste diapasão, seria indispensável para que houvesse proteção do direito à relação estabelecida. Isto porque, em seu sentido mais amplo, o interesse constitui a força motriz de toda ação humana e pressuposto de todo o direito, que “não protege relação alguma que não tenha a seus olhos interesse” (IHERING, 2003, p. 68).
Obviamente, haverá em sociedade conflitos de interesses, fazendo da luta uma condição indeclinável, não só do direito objetivo, mas, sobretudo, do direito subjetivo. Ihering coloca como dever do homem a luta pelo seu direito, uma vez que este corresponde à afirmação de sua inviolabilidade pessoal. De acordo com essa concepção, em todo direito individual estaria incluído um valor ideal, pois em todo direito estaria em jogo o direito como um todo, que não se confunde com o direito positivo. Isto porque não se luta pelo que já existe, mas sim para substituir o que existe, tendo como parâmetro um direito natural. Assim, a teoria do interesse defende a representação do direito natural que leva em si o elemento ativo e o fator individual na história, trabalhando com base na lei da causalidade, a qual, assim como governa todas as coisas, governaria também o processo do direito (IHERING, 2000, p. 22).
A causalidade de Ihering tem duas faces: a mecânica, que governaria a natureza, e a psicológica, que governaria o mundo da vontade. A primeira representa a noção de causa eficiente, que estabelece que não haja efeito sem causa. A segunda representa a noção de fim, segundo a qual não há vontade ou ato sem fim. Diferentemente da causalidade natural, a causalidade psicológica é espontânea, dirigida a um objetivo final, vislumbrado pela racionalidade humana em sua projeção de futuro (PETRONE, 1928, p. 60). Percebe-se claramente que o fim para Ihering é um termo puramente subjetivo e material, ou seja, sempre coincide com o resultado de fato da ação.
A compreensão do direito subjetivo como interesse, contudo, sofre críticas semelhantes às formuladas contra a teoria da vontade, afirmando-se que a teoria de Ihering peca uma vez que:
Existe, então, no direito subjetivo um poder de ação que está à disposição do seu titular, e que não depende do exercício, da mesma forma que o indivíduo capaz e conhecedor do seu direito poderá conservar-se inerte, sem realizar o poder da vontade e, ainda assim, é portador dele (PEREIRA, 2006, p. 24).
Não tendo a teoria do interesse solucionado os problemas apontados pela sua própria crítica, proliferaram-se teorias ditas “mistas”, que, como todo ecletismo, tendem a somar problemas. Jellinek, Michoud, Saleilles, Ferrara, Ruggiero, propuseram uma compreensão do direito subjetivo como um poder de querer, como a expressão de uma vontade que se realiza para perseguir um fim, visando à realização de um interesse. A própria utilização da palavra “querer” por estes teóricos pretende perpassar a ideia de uma vontade atrelada a uma finalidade, pois quem quer, quer alguma coisa. Com isso, pretende-se construir um conceito de direito subjetivo que leve em consideração o momento psíquico, interno, qual seja: a vontade; e o momento externo, finalístico: o interesse (PEREIRA, 2006, p. 36).
A elaboração da teoria mista parte do pressuposto de que haveria um antagonismo aparente entre a teoria da vontade e a teoria do interesse, quando na realidade uma abrangeria a outra. Como afirma Reale (2010, p. 255), “nem o interesse só, tampouco apenas a vontade, nos dão o critério para o entendimento do que seja direito subjetivo”. Sendo assim, a teoria mista:
(...) não vence as objeções formuladas contra cada uma de suas partes. O ecletismo é sempre uma soma de problemas, sem solução para as dificuldades que continuam nas raízes das respostas, pretensamente superadas. As mesmas objeções feitas, isoladamente, à teoria da vontade e à do interesse, continuam, como é claro, a prevalecer contra a teoria eclética de Jellinek.
Contudo, em que pesem as inúmeras críticas, após a elaboração das teorias da vontade, do interesse e mista, vislumbramos no campo da teoria do direito uma estagnação no que diz respeito aos elementos substanciais do direito subjetivo, identificados com a vontade ou com o interesse, ou ainda com a vontade e interesse. Neste sentido, afirmou Alessandro Groppali (1974, p. 126) que:
(...) a doutrina estagnou, pode dizer-se, nessas posições, e os esforços feitos para tentar dar-lhe um rumo novo têm sido vãos; de fato, definir o direito subjetivo como “uma faculdade de agir em ordem à satisfação de um interesse próprio” (...) ou como “uma possibilidade jurídica de assumir um comportamento determinado pela norma”, é sempre dar uma definição que não se afasta da comumente aceita a não ser nas palavras, porque substancialmente se concorda em admitir que a vontade e o interesse constituem os elementos do direito subjetivo.