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O crime de estupro de vulnerável e o direito à autodeterminação sexual do menor

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21/06/2014 às 14:33
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3     A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL AO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

3.1 O PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL

O princípio da adequação social está intimamente relacionado com o princípio da intervenção mínima, segundo o qual a intromissão do Estado no âmbito do direito penal deve ocorrer na medida estritamente necessária a fim de preservar os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade. [57]

 Destarte, no Estado Democrático de Direito, a liberdade individual é considerada um bem supremo, de forma que o poder-dever punitivo estatal no âmbito do direito penal deve buscar a preservação da dignidade da pessoa humana, por meio da proteção dos bens jurídicos mais relevantes. Isso porque o direito penal diz respeito à esfera de poder máximo estatal, correspondendo às mais graves sanções coercitivas à pessoa. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci:

Fosse o Direito Penal a primeira opção do legislador para a composição de conflitos e mediação de interesses contrapostos e estar-se-ia vulgarizando a força estatal, privilegiando o império da brutalidade, pois a todos os erros seriam impostas reprimendas máximas. [58]

Portanto, a intervenção penal deve ocorrer apenas quando não for suficiente a atuação dos demais ramos do direito, ou seja, as infrações às normas jurídicas devem ser inicialmente coibidas por instrumentos jurídicos extrapenais, reservando-se a tutela penal à última instância (ultima ratio).

Nesse contexto, é possível identificar os princípios correlatos e paralelos ao princípio da intervenção mínima, quais sejam, os  princípios da subsidiariedade, da fragmentaridade e da ofensividade.

O princípio da subsidiariedade indica que o direito penal possui caráter subsidiário em relação aos demais ramos do ordenamento jurídico. O princípio da fragmentaridade estabelece que o direito penal constitui apenas um fragmento do ordenamento jurídico, interferindo na liberdade individual quanto às condutas infratoras mais graves. O princípio da ofensividade ou da lesividade, por sua vez, preconiza que a aplicação da lei penal apenas legitima-se quando a conduta infratora se volte, com eficiência, contra bem jurídico tutelado. [59]

O princípio da intervenção mínima, nas suas vertentes acima indicadas, constitui parâmetro a ser observado pelo legislador na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, conforme esclarece Rogério Greco:

Na tarefa de proteção dos bens vitais e necessários ao convívio em sociedade, o legislador, encarregado da seleção desses bens, deve considerar como princípios norteadores da sua atividade a chamada intevenção mínima do Direito Penal, ressaltando-se a sua natureza subsidiária, bem como a lesividiade e a inadequação social do comportamento que se quer proibir ou impor sob a ameaça de uma sanção.[60]

O princípio da adequação social, elaborado por Hans Welsel, constitui uma causa supralegal de exclusão da tipicidade e sugere que a teoria do delito não pode se afastar da realidade social. Conforme relata Luiz Flávio Gomes, o mérito dessa construção doutrinária foi afastar a dogmática meramente positivista, cedendo espaço para a realidade social e privilegiando soluções justas para o caso concreto.

Com Welsel, então, pela primeira vez, vincula-se o sistema do fato punível com a realidade social e a hermenêutica. A consequência principal dessa conexão foi a construção de mais um critério delimitador do âmbito da normatividade do tipo penal por razões sociais (tradição, cultura, costumes de uma povo em determinado período histórico) ficam fora do âmbito do proibido (fora da literalidade dos tipos penais) algumas condutas até danosas mas só aparentemente típicas (leia-se: não materialmente típicas).[61]

De acordo com o princípio da adequação social, considerado regra interpretativa de cunho restritivo, condutas socialmente adequadas, embora formalmente típicas, devem ser excluídas da esfera de incidência do tipo penal, pela ausência de tipicidade material. [62]

A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, significa que, apesar de uma conduta se subsumir formalmente ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada [...]. [63]

A tipicidade material envolve o desvalor da conduta e o desvalor do resultado, de forma que a conduta, além de subsumir formalmente ao tipo penal, deve efetivamente provocar uma lesão ao bem jurídico protegido. O princípio da adequação social afasta a tipicidade material em razão do desvalor do resultado, considerando-se questões de índole ético-sociais, jurídicas e políticas dominantes. [64]

Assim, apenas devem ingressar no âmbito do tipo penal as condutas socialmente inadequadas, entendidas como aquelas contrárias às concepções ético-sociais que inspiram uma determinada sociedade em um determinado momento histórico.[65] Ao revés, conduta conformada socialmente é aquela aceita pela sociedade como um comportamento ajustado à realidade social, diante do padrão normal de convivência.

Hans Welsel esclarece que “as condutas socialmente adequadas não são necessariamente exemplares, senão condutas que se mantêm dentro dos marcos da liberdade de ação social” [66].            Destarte, vincula-se à noção de conduta socialmente adequada o contexto histórico-social da vida de um povo.

As ações socialmente adequadas, portanto, pelas suas características, não contrastam com as exigências da vida social, num determinado momento histórico, ainda que possam apresentar uma aparente contrariedade com os preceitos de uma legislação penal. [67]

A análise da adequação social da conduta é relevante em razão do descompasso existente entre as normas penais incriminadoras e os comportamentos socialmente permitidos ou tolerados, de sorte que as condutas socialmente adequadas não se revestem de tipicidade material.[68]

É possível identificar nítida correlação entre o princípio da adequação social e o princípio da intervenção mínima, no sentido de que devem ser afastadas do âmbito da intervenção jurídico-penal determinadas hipóteses que não são desvaloradas do ponto de vista social, embora sejam relevantes para outros setores do ordenamento jurídico. [69]

Conforme explicita Rogério Greco, na tarefa de selecionar as condutas objeto de incidência do direito penal, o legislador deve identificar aquelas que ofendem os bens jurídicos mais relevantes e necessários para o convívio em sociedade, ao passo que deve evitar criminalizar condutas aceitas ou toleradas socialmente, sob pena de compelir a população à prática de crimes.

[…] estando a socidade acostumada a praticar determinados comportamentos, não mudaria a sua normal maneira de ser pelo simples fato do surgimento de uma lei penal que não teve a sensibilidade suficiente para discernir condutas inadequadas socialmente daquelas outras que não são toleradas pela sociedade. [70]

Impende salientar, ainda, a necessidade de revogação de tipos penais quando as condutas consideradas socialmente inadequadas no passado passarem a ser adequadas. “Enfim, o princípio da adequação social será de grande valia para que não sejam proibidas, impostas ou mesmo mantidas condutas que já estejam perfeitamente assimiladas pela sociedade.” [71]

Por outro lado, o princípio da adequação social possui uma importante função interpretadora dos tipos penais,”[…] abarcando concepções de cunho político, social e jurídico que influem diretamente na tutela dos bens protegidos pela norma.” [72]. A adoção do princípio da adequação social como princípio de interpretação conduz à atipicidade material do fato.

No presente estudo, defende-se a possibilidade da incidência do princípio da adequação social ao crime de estupro de vulnerável, quando a conduta formalmente típica corresponder a um comportamento ajustado à realidade social, inexistindo ofensa ao bem jurídico tutelado.

3.2  A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL

Em relação ao crime de estupro de vulnerável, em muitos casos, embora a conduta seja formalmente típica, a ação não constitui ofensa ao bem jurídico protegido pela norma penal, não sendo possível, por conseguinte, considerá-la materialmente típica, tendo em vista a adequação social da conduta.

De acordo com o artigo 217-A do Código Penal pátrio, acrescentado pela Lei nº 12.015/09, ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos constitui crime de estupro de vulnerável, punível com reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Não obstante, o contexto social em que se caracteriza a conduta formalmente típica não pode ser ignorado pelos aplicadores do direito, que devem observar a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, sob pena de responsabilização objetiva, vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.

A respeito da aplicação do princípio da adequação social ao delito de estupro de vulnerável, asseveram Júlia de Arruda Rodrigues, Larissa Ataide Cardoso, Lina Marie Cabral e Marina Dantas Pereira:

Essa tipificação atenta flagrantemente ao Princípio da Adequação Social, de modo que se encontra desvinculado da realidade social brasileira, pois é inegável que os jovens iniciam sua vida sexual cada vez mais cedo, nos dias atuais, sendo esta uma prática já inserida no contexto social com as transformações dos valores e costumes. [73]

Nesse contexto, é relevante destacar as mudanças no comportamento sexual do jovem brasileiro, com o intuito de avaliar a caracterização de ofensa ao bem jurídico tutelado pelo crime de estupro de vulnerável e o valor do consentimento do menor na prática do ato sexual.

3.2.1     A mudança no contexto sexual do jovem

Acompanhando os diversos acontecimentos e mudanças ocorridas no mundo nas últimas décadas, tais como a eclosão de guerras mundiais, a evolução da tecnologia e das ciências humanas, entre outras, o campo da liberdade sexual também sofreu transformações.

No campo social, político e familiar, observa-se que a mulher alcançou uma maior liberdade, a partir dos movimentos feministas, em que se pleiteou a igualdade de direitos em relação aos homens. A mulher deixou de ter um papel secundário na família, passando a ter igualdade de direitos nas decisões a respeito dos filhos, no exercício do pátrio poder e no próprio casamento.

Na vida social, a mulher inseriu-se no mercado de trabalho e passou a acumular as atividades domésticas – que, aliás, não são mais de responsabilidade exclusiva da mulher – com o exercício de atividade remunerada, alcançando postos reconhecidos. Na política, foi reconhecido o direito de voto às mulheres, que passaram a influir de forma decisiva nos rumos das decisões do país.

A juventude também foi atingida pelas transformações resultantes da explosão demográfica, industrialização, progresso técnico científico, de forma que seus ideais, pensamentos, atitudes, gostos e valores sofreram e sofrem constantes mutações, determinantes para a transformação da moralidade pública. [74]

A liberdade sexual também foi afetada pelas mudanças sociais, em que se observou o afastamento dos tabus impostos pela sociedade outrora extremamente moralista. Esse aspecto é bem abordado por Márcio Bartoli, que ressalta que o tema sexo tornou-se realidade presente na sociedade:

Mas, o assunto sexo, que, para alguns ainda continua sendo um verdadeiro tabu, é uma realidade presente na sociedade; presente na vida das pessoas, assunto que de um tempo para cá passou a ser tratado com a maior e a mais ampla liberdade, porque, é claro, se tudo mudou, a visão das pessoas sobre tal tema também se modernizou. […] [75]

A evolução da sociedade no campo da moralidade e sexualidade é caracterizada pelo aumento do diálogo a respeito do tema nas instituições sociais e pela facilidade do acesso à informação.

Nos meios de comunição, o tema é amplamente explorado, abandonando-se antigos preconceitos. O surgimento e a popularização da rede mundial de comunicação – internet – contribuiu para que as informações relativas ao sexo fossem rapidamente e eficientemente divulgadas.

Na família, as questões relativas à sexualidade também são discutidas com maior liberdade, uma vez que o tema sexo deixou de ser um assunto proibido e passou a ocupar posição de relevo na criação e educação dos filhos. Os pais possuem atuação essencial no sentido de propiciar um saudável desenvolvimento sexual orientando os filhos a respeito das primeiras experiências.

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No âmbito educacional, o tema sexo passou a integrar o currículo escolar, sendo discutidos diversos assuntos nas instituições de ensino objetivando um desenvolvimento saudável da sexualidade, com responsabilidade. A principal preocupação é informar os jovens acerca dos riscos da prática de atos sexuais sem proteção, no que diz respeito às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez indesejada.

Por oportuno, destaca-se o seguinte trecho da obra de Tadeu Antônio Dix Silva, que sintetiza as referidas mudanças no âmbito sexual:

É mais do que claro que nos dias atuais não se pode mais afirmar que uma pessoa, no período da vida corresponde à pré-adolescência, continue, como em 1940, a ser uma insciente das coisas do sexo. Como antes mencionado, sexo, na atualidade, deixou de ser o tema preconceituoso e até ‘imoral’ de antigamente, para situar-se numa posição de grande destaque na família, onde é discutido livremente, até por questão de sobrevivência, em virtude de surgimento de uma moléstia letal; nas escolas, onde adquiriu o status de matéria curricular, e nos meios de comunicação de massa, onde se tornou assunto corriqueiro. [76]

Com efeito, o tema da sexualidade passou a ser debatido mais abertamente na sociedade, reconhecendo-se a liberdade sexual de homens e mulheres como aspecto relevante da própria dignidade humana. Confira-se a ponderação de Alessandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi:

[...] a sexualidade é para o ser humano, uma manifestação positiva. A revolução sexual e a existência de uma sociedade mais permissiva provocaram uma mudança dos valores e atitudes em face do comportamento sexual e hoje percebe a sexualidade como uma das diversas possibilidades de manifestações de realização pessoal do ser humano. [77]

Em relação às crianças e adolescentes, merece realce a realização de estudos sobre a sexualidade infantil e juvenil. “A ciência médica, por si, e através de seus ramos da psiquiatria e psicologia, passou a cogitar da sexualidade infantil e juvenil, como sendo o início do processo de formação da capacidade de autodeterminação sexual.” [78]

Conforme ressalta Solange Azevedo, a mudança social no comportamento sexual do jovem brasileiro é patente e cada mais visível no decorrer das gerações. “Os jovens brasileiros estão cada vez mais distantes dos tabus sexuais das gerações passadas. Mais da metade deles não dá importância à virgindade. Em geral, transam cada vez mais cedo e veem a sexualidade de homens e mulheres em pé de igualdade.”[79]

Antigamente, explicam as pesquisadoras, os jovens tinham modelos do que era certo ou errado. Mas foram desconstruídos pelas gerações anteriores, com as conquistas dos movimentos feministas e da revolução sexual. Agora, eles encontram uma sociedade com possibilidades mais amplas e precisam encontrar sua posição individual dentro dela. [80]

Os métodos contraceptivos anteciparam a primeira relação sexual dos jovens, contribuindo para desvincular a prática sexual da finalidade meramente reprodutiva. Sem a preocupação com a gravidez indesejada, a mulher alcança a libertação de sua sexualidade. [81]

A partir das mudanças constatadas no comportamento sexual do jovem, é possível afirmar que o sentimento médio público do pudor e vergonha se transformou.

Entretanto, as mudanças nos padrões de comportamento dos jovens brasileiros não ocorrem de forma generalizada em todas as regiões do país, diferenciando-se conforme a classe social e os costumes prevalecentes. Os valores tradicionais coexistem com a nova visão da sexualidade, resultando em peculiaridades no comportamento sexual do jovem brasileiro. [82]

Ademais, a partir dos estudos que afirmam de forma categórica um momento de maior permissividade sexual, revela-se duvidosa a possibilidade de reverter o quadro social mediante o aumento do rigor da legislação penal, sendo mais adequado buscar interferir no processo a fim de fornecer orientação e evitar consequências indesejadas de um comportamento sexual liberal.[83]

3.2.2     Redução da idade da primeira relação sexual

A UNESCO fez um estudo no ano de 2004 em parceria com o Ministério da Saúde, denominado “Juventudes e Sexualidade”, com a participação de jovens estudantes de 13 capitais brasileiras (Belém, Cuiabá, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Maceió, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória) e no Distrito Federal.[84]

O estudo abrange diversos aspectos da vida sexual dos jovens, incluindo-se a iniciação sexual. Os dados obtidos na pesquisa revelaram a queda na idade da primeira relação sexual na população brasileira.

A idade média da primeira relação sexual é significativamente mais baixa entre os alunos do sexo masculino do que entre as estudantes do sexo feminino. Os dados obtidos na pesquisa indicam que mais da metade dos jovens do sexo masculino iniciaram-se sexualmente na faixa entre 10 e 14 anos – em Manaus, cerca de 70% dos entrevistados; em Salvador, 68%; e em Belém, 66%. A proporção das jovens do sexo feminino que se iniciaram na mesma faixa etária é menor, embora ainda expressiva – em Porto Alegre, cerca de 39%; em Manaus, 36%; e em São Paulo, 34%.

No Distrito Federal, 61,6% dos indivíduos do sexo masculino e 21,9% do sexo feminino praticaram sua primeira relação sexual com menos de 14 anos, ou seja, 43,1% da população do Distrito Federal teve sua primeira relação com menos de 14 anos.

A sexualidade precoce das novas gerações é resultado de um conjunto de fatores, como a crise familiar, a liberdade cada vez maior dos jovens e a cultura da sensualidade existente no país. “A dificuldade dos pais em impor limites, a falta de orientação sexual eficiente nas escolas e uma cultura de massa extremamente erotizada são fortes estímulos” [85].

A pesquisa da UNESCO destacou que os jovens brasileiros sofrem pressão social quanto à iniciação sexual, relacionada com a construção da masculinidade, para que ocorra o mais rápido possível e mais intensamente. Por outro lado, as jovens brasileiras sofrem pressão social a fim de retardar o máximo possível a iniciação sexual. [86]

Considerando a redução da idade da primeira relação sexual pelos jovens brasileiros, é possível concluir que uma grande parte da população brasileira incide formalmente na prática do crime de estupro de vulnerável, considerado crime hediondo.

3.2.3     Gravidez na adolescência

Segundo o citado estudo da UNESCO, é considerável a porcentagem de gravidez na adolescência no Brasil. De acordo com o Relatório Mundial sobre População da ONU, o Brasil figura como um dos países que apresentam taxas acima da média mundial de gravidez na adolescência.

O percentual de jovens alunas de ensino fundamental e médio que afirmaram que já ficaram grávidas alguma vez é substancial em várias capitais brasileiras. Destaca-se que 33,3% de jovens de Fortaleza, 22,2% de Cuiabá e 20,0% de Manaus relataram que já engravidaram na faixa de 10 a 14 anos, correspondendo em números absolutos a 423, 669 e 567 alunas, respectivamente. No Distrito Federal, 14,2% das alunas do ensino fundamental e médio engravidaram na faixa etária entre os 10 e 14 anos. [87]

A pesquisa demonstrou que o aumento da porcentagem de adolescentes grávidas ocorreu em relação a todas as classes sociais, inclusive nas famílias mais favorecidas economicamente, com acesso a informação, orientação médica e anticoncepcionais. [88] Destacou, ainda, que embora se verifique uma queda geral da fecundidade na modernidade contemporânea, as taxas de fecundidade crescem entre as jovens, que estão gerando mais filhos do que as mulheres mais velhas. [89]

O aumento da gravidez na adolescência preocupa demógrafos e especialistas, tendo em vista a possível influência na vida reprodutiva futura, os problemas de saúde relacionados e o ônus para os serviços de saúde.

Nas regiões mais pobres do país, a gravidez na adolescência contribui para a perpetuação da pobreza, uma vez que a maior parte das adolescentes-mães ficam desempregadas. Não obstante, entre muitas jovens pobres a gravidez é considerada sinal de status, pois são mais respeitadas pela comunidade e obtêm liberdade para usufruir a sexualidade, embora ainda sustentadas pela família. Na classe média, a gravidez inesperada atrapalha os estudos, as perspectivas de carreira e de relacionamentos futuros. [90]

3.2.4     Os reflexos das mudanças sociais no direito penal

O momento histórico-cultural da sociedade deve ser observado pelo legislador, no momento de elaboração das normas jurídicas, bem assim pelo julgador, na tarefa de enquadrar o fato à norma. Em outros termos, as mudanças sociais devem influenciar o processo de criação e aplicação das normas jurídicas.

No âmbito do direito penal, o contexto social assume especial relevância no processo legislativo para a elaboração dos tipos penais, mormente considerando-se a relevância dos bens jurídicos tutelados e possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade.

Assim, a legislação penal deve refletir ao interesse social e a real necessidade da nação, bem assim as mudanças sociais propiciadas pela evolução social, pelo desenvolvimento científico e tecnológico, entre outros fatores, impondo-se a abolição ou a modificação do tipo penal que não seja condizente com a atual realidade da sociedade. Nesse sentido, expõe Adelina de Cássia Bastos Oliveira Cavalho:

Assim é que o legislador, para realizar a tipificação, tem que fazer criteriosa seleção dos comportamentos de inegável relevância social, não se esquecendo, também, de destipificar determinadas condutas, que, com o correr dos tempos, com o avanço cultural, científico-tecnológico, mutações de conceitos morais, de injusto, implementação de costumes, enfim, mudanças sociais em geral, passaram a ser aceitas e adequadas ao meio social, deixando, por esse motivo, de ser penalmente relevantes. [91]

Com efeito, a redução do limite etário da presunção de violência de 16 anos para 14 anos, estabelecida pelo Código Penal de 1940 em relação ao Código Penal de 1980 foi justificada pela necessidade de acompanhar as mudanças sociais da época, conforme expressamente disposto na exposição de motivos ao Projeto de 1940 (item 70):

[...] Com a redução do limite da idade, o projeto atende à evidência de um fato social contemporâneo, qual seja a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade ao negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem. [...] [92]

A discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da relatividade da presunção de violência dos menores de 14 anos de idade também foi motivada pela necessidade de compatibilizar a norma penal em face das constantes mudanças sociais, conforme destacado alhures.

Porém, com o intuito de afastar a discussão e atribuir um maior rigor penal à conduta, o legislador promoveu a alteração na legislação por meio da Lei n. 12.015/09, incluindo o novo tipo penal denominado estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), no qual a idade da vítima passou a ser elemento típico, consoante relata Plínio Gentil:

Não há como negar que o legislador, pretendendo o que pretendia, foi cuidadoso. Esmerou-se, para evitar a discussão sobre a eventual relatividade da presunção de violência, em definir a simples conjunção carnal ou o ato libidinoso com menor de catorze anos como crime, inclusive com o requinte de lhe dedicar uma redação diferente daquela adotada para a definição do crime de estupro simples [...] [93]

A alteração legislativa ignorou as mudanças sociais que ensejaram a construção doutrinária e jurisprudencial quanto à relatividade da presunção de violência. Porém, a compatibilização da norma penal à realidade social é impositiva, sob pena de criminalização de condutas que sequer representam ofensa ao bem jurídico protegido.

Nesse contexto, é possível concluir que a pretensão do legislador de evitar a discussão sobre a relatividade da presunção de violência ao considerar o limite de 14 anos de idade como elemento do tipo penal do crime de estupro de vulnerável, está em evidente conflito com a realidade social e por esse motivo não deve prevalecer.

3.2.5     O direito ao livre exercício da sexualidade pelo menor e a capacidade de consentimento na prática de atos sexuais

A sexualidade de crianças e adolescentes é comumente abordada pelo direito a partir de sua violação, especialmente quanto ao abuso e à exploração sexual, o que dificulta a aceitação e discussão, pela sociedade brasileira, de seu conteúdo afirmativo. [94]

O reconhecimento da sexualidade dos menores encontra obstáculos decorrentes de concepções morais e da prevalência dos interesses dos adultos. Nesse contexto, a legislação penal brasileira historicamente criminalizou condutas como crimes sexuais objetivando tutelar a moralidade prevalecente, negando-se a sexualidade infanto-juvenil.

Não obstante, diante das mudanças sociais, é imperioso avaliar a compatibilidade entre a idade fixada pelo legislador penal para a prática regular de atos sexuais e a liberdade autodeterminação sexual do menor.

A quantidade de informações, de esclarecimentos, de ensinamentos sobre o tema `sexo` flui rapidamente e sem fronteiras, dando às pessoas até com menos de 14 anos de idade, uma visão teórica da vida sexual possibilitando-a `rechaçar`as propostas e agressões que nessa área se produzem e uma consciência bem clara e nítida da disponibilidade do próprio corpo. [95]

A mudança da sociedade quanto à questão da sexualidade, dentre outros fatores sociais relevantes, indicam que para os adolescentes que já atingiram a maturidade quanto à matéria sexual, a repressão penal constitui um óbice para autodeterminação sexual. Sobre o tema, confira-se o entendimento de Adelina de Cássia Bastos Oliveira Carvalho:

A subtração ao adolescente que tenha consciência ética do ato sexual do direito de exercer sua sexualidade, por não ter ainda alcançado a idade fixada por lei para tanto, por imposição de concepções morais dominantes na sociedade, é meio de cerceamento do direito constitucional de liberdade.[96]

É importante ressaltar que a proteção penal das crianças e dos adolescentes nos crimes sexuais apenas possui respaldo constitucional e legal quando se tratar de situação de abuso, violência ou exploração sexual (Artigo 227, §4º, da Constituição Federal e artigos 4º e 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Embora a proibição do exercício da sexualidade das crianças e dos adolescentes possua seu fundamento na proteção do desenvolvimento regular da sexualidade, nem sempre o exercício da sexualidade pelo menor de 14 anos caracteriza-se como situação de abuso ou violência.

Ademais, a proteção ao desenvolvimento da sexualidade das crianças e adolescentes não significa necessariamente enquadrar o seu exercício como conduta a ser reprimida pelo direito penal, sendo cabíveis outras espécies de intervenção, incluindo-se o acompanhamento e a orientação. [97]

Deve-se reconhecer, assim, que o menor possui direito ao livre exercício da sexualidade, ou seja, ainda que não tenham atingido a idade prevista na norma penal, podem descobrir e desenvolver sua sexualidade por meio de práticas sexuais saudáveis, desde que possuam capacidade de compreensão. Conforme destaca Fabio Agne Fayet, deve-se destacar as situações de abuso sexual e o normal desenvolvimento da sexualidade do menor:

 [...] Destarte, nos parece mais aceitável e adequado aos tempos em que vivemos a norma punir com todo o seu rigor o sujeito que abusa sexualmente de indivíduo menor de catorze anos, não impedindo que o mesmo, consciente do ato e suas consequências, possa descobrir e desenvolver sua sexualidade.[98]

Portanto, é possível reconhecer a relevância do consentimento do adolescente à prática sexual quando inexistente a ofensa ao bem jurídico protegido, ou seja, quando caracterizada a capacidade de autodeterminação do menor na esfera da sexualidade. A respeito da capacidade de consentimento do menor à prática do ato sexual, confira-se a lição de Adelina de Cássia Bastos Oliveira Carvalho:

[...] No campo penal sexual; a capacidade de consentimento do menor refere-se ao momento em que o mesmo adquire capacidade para decidir, com liberdade, sua vida sexual, passa a contar com amadurecimento biológico (emocional, social, cognitivo) e fisiológico para assimilar a prática sexual, tornando-se válida a sua anuência para a relação carnal.[99]

Com efeito, o ordenamento jurídico veda o abuso sexual de crianças e adolescentes, de forma que a limitação à liberdade sexual do menor apenas é possível quando caracterizar um ataque à sua dignidade ou ao seu livre desenvolvimento, o que não pode ser valorado de forma genérica. [100]

Dessa forma, na hipótese de ausência de lesão à dignidade sexual, a caracterização do tipo penal deve ser afastada em razão da atipicidade material da conduta.

3.2.6     Incidência do princípio da adequação social: parâmetros de aplicação

Em várias hipóteses a conduta formalmente caracterizada como crime de estupro de vulnerável não ofende efetivamente o bem jurídico tutelado pela norma penal, tendo em vista a adequação social da conduta.

Quanto à possibilidade de se afastar a tipicidade do crime de estupro de vulnerável em face do princípio da adequação social, é necessário prevenir-se do indesejado subjetivismo exacerbado do julgador, mormente considerando-se que o tema está sujeito a controvérsias moralistas.

Por outro lado, é inegável a importância da análise do julgador em face do caso concreto, tendo em vista a impossibilidade do legislador de prever para todas as situações a capacidade do ofendido para consentir com a prática sexual. Na aplicação da lei, o juiz deverá avaliar com cautela e prudência a caracterização da tipicidade material do delito, em consonância com as mudanças sociais. Quanto ao papel do aplicador do direito no processo de interpretação da lei, Adelina de Cássia Bastos Oliveira Carvalho destaca:

Com efeito, o intérprete da lei não pode permanecer atrelado a um legalismo exacerbado e formal, que circunda o tradicionalismo jurídico, sob pena de gerar uma prestação jurisdicional ineficaz. Deve, sim, adotar uma postura flexível, de compromisso com a realidade social e a justiça.[101]

Assim, se de um lado não se pode desprezar a capacidade volitiva dos menores em todo e qualquer caso, é necessário estabelecer parâmetros razoáveis e proporcionais de aplicação do referido princípio, a fim de orientar a análise e a decisão do julgador.

De início, destaca-se que a possibilidade de se afastar a tipicidade penal do crime de estupro de vulnerável limita-se aos casos em que a vítima adolescente, embora menor de 14 (quatorze) anos, é maior de 12 (doze) anos. Esse entendimento encontra respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente, que diferencia criança (pessoa até 12 anos incompletos) de adolescente (pessoa entre 12 e 18 anos), atribuindo ao segundo certa capacidade de discernimento e de determinação. [102]

Portanto, considerando que o menor de 12 (doze) anos é criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, sua proteção penal quanto ao domínio da sexualidade deve ser considerada absoluta, conforme defendem Alessandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi:

Assim, a elementar da idade da vítima não é absoluta quando se estiver diante de um menor entre 12 e 14 anos, caso em que sua vulnerabilidade será constatada no caso concreto [...]. No entanto, em se tratando de menor de 12 anos, mantém a presunção de vulnerabilidade, jure et de jure, havendo a tipicidade. [103]

Para aferir se o comportamento do agente é adequado socialmente, é necessário levar em consideração os usos e costumes da população, na época e local em que ocorreu a conduta, investigando-se o sentimento da maioria da sociedade a respeito da capacidade de autodeterminação do adolescente na esfera da sexualidade.

Destarte, deve-se levar em consideração para a tipicidade material do crime de estupro de vulnerável aspectos sociais como a idade média da primeira relação sexual da população, o comportamento sexual dos adolescentes no contexto social em que a vítima vive, entre outros.

Deve-se, ainda, verificar aspectos individuais relativos ao caso concreto, a saber: o consentimento do ofendido, o contexto de relação de afeto, o conhecimento e a aceitação do relacionamento pela família da vítima, o nascimento de filhos, entre outros.

Nas hipóteses em que o adolescente tomar a iniciativa ou a provocação do ato sexual ou aderir prontamente ao convite de caratér sexual dirigido pelo agente, o consentimento deve ser levado em consideração, uma vez que a princípio é possível afastar a caracterização de abuso ou violência. [104]

Porém, o consentimento do ofendido, embora de especial relevância, não deve permitir, por si só, o afastamento da tipicidade da conduta, devendo ser analisados outros aspectos que, em conjunto, permitam concluir pela capacidade de autodeterminação da vítima na esfera da sexualidade. “Em suma, na aplicação da nova lei, deve o julgador verificar com espero se houve realmente um estupro ou apenas um inocente namoro” [105].

É necessário, outrossim, tomar precauções para não invadir a esfera de intimidade da vítima, sob pena de impor um verdadeiro julgamento a respeito de sua pessoa, seu comportamento e vida pregressa.[106] Dessa forma, embora seja necessário avaliar a conduta da vítima no caso concreto, deve-se evitar provocar uma vitimização secundária.

Nos casos em que do relacionamento sexual com menor de 14 anos decorre gravidez, além da discussão acerca da validade do consentimento da vítima, há outras questões a serem enfrentadas. Em primeiro lugar, deve-se verificar se o suposto agressor oferece apoio material e moral à vítima e ao filho em comum. Isso porque o artigo 229 da Constituição Federal preconiza a necessidade de assistência por parte do pai, que se tornaria impossibilitada caso o autor fosse condenado a pena privativa de liberdade.

Além disso, o artigo 226 da Carta Magna é categórico ao afirmar que a família é a base da sociedade e tem especial proteção ao Estado. Ainda que a vítima seja adolescente, se há relacionamento estável com o consentimento da família, dar ensejo à ação penal pode implicar a desconstituição da harmonia familiar pelo próprio Estado. Esse entendimento independe, outrossim, de casamento entre autor e vítima, uma vez que o §4º do mesmo artigo garante o direito à entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Ademais, os oficiais de registro, diante do dever de comunicar às autoridades a possível ocorrência de crime, são compelidos a levar a conhecimento das autoridades competentes qualquer registro de nascimento cuja mãe tenha idade inferior ou igual a 14 anos, em razão da descrição típica do crime de estupro de vulnerável.

Nessas situações, a aplicação irrestrita do artigo 217-A do Código Penal, além de inconstitucional, também é passível de gerar uma consequência social negativa, qual seja, a falta de registro de paternidade nas hipóteses que, em tese, se subsumiriam ao crime, em razão da natural resistência dos pais de assumirem a paternidade.

Assim, a questão da caracterização do delito em casos de gravidez da vítima deve ser avaliada pelo julgador com especial cuidado, buscando-se harmonizar os bens jurídicos envolvidos.

Por fim, é relevante ressaltar que ainda que o comportamento não atinja o bem jurídico penalmente tutelado, caracterizando a atipicidade material, não significa que deva ser incentivado. É necessária e relevante a atuação integrada do governo, da família e da própria sociedade no sentido de desestimular a atividade sexual precoce e informar os jovens acerca dos riscos e da necessidade de prevenção, para que exerçam sua sexualidade com responsabilidade.

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Sobre a autora
Vanessa de Souza Farias

Graduada em direito pela Universidade de Brasília. Pós-Graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Analista processual no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Vanessa Souza. O crime de estupro de vulnerável e o direito à autodeterminação sexual do menor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4007, 21 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29641. Acesso em: 22 dez. 2024.

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