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A atuação constitucional dos tribunais de contas e de seus magistrados (composição, atuação e deliberações): de Eisenhower a Zé Geraldo:

A natureza jurídica da proposta de decisão e do cargo de auditor (ministro ou conselheiro substituto)

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4. Natureza Jurídica da Proposta de Decisão: de Eisenhower a Zé Geraldo

É muito comum verificarmos, na recente doutrina e nas práticas administrativas brasileiras, o desvirtuamento de institutos alienígenas quando de sua introdução no sistema jurídico brasileiro. Os exemplos são muitos: o conceito de agências reguladoras, de contratos de gestão, de reputação ilibada, de preço módico, entre tantos.

Como visto alhures, a origem histórica e a natureza jurídica dos Auditores remontam à sua criação pelos legisladores francês e italiano das magistraturas especializadas de contas compostas por cidadãos dotados de altíssima competência técnica e escolhidos por meio de concursos públicos.          

Entretanto, no Brasil, tal inspiração veio a ser desvirtuada, seja pela interpretação amesquinhada do texto constitucional, a lhe mitigar seu sentido historicamente produzido, seja pela perpetração de práticas administrativas e a promulgação de legislações infraconstitucionais de duvidosa constitucionalidade a esvaziar o conteúdo de que trata  o artigo 73, §4°, da CR/88, de modo a garantir o domínio e a submissão dos órgãos controladores, consubstanciando a atualidade da advertência que inspirara Montesquieu, originária de Aristóteles, ao teorizar acerca da tripartição dos poderes, autor de frase que ficou famosa: “É uma experiência eterna que todo aquele que detém o Poder tende a abusar dele”.

Para abusar do poder, o gestor arbitrário precisa enfraquecer as instituições naquilo que lhes é mais caro: sua efetividade por meio do esvaziamento de sua força, de sua missão e de sua efetividade. Isso pode ser feito de maneira mais violenta ou de maneira mais eufemista, extraindo-se do alcance das prescrições normativas sua “mínima efetividade”.

Hodiernamente, isso se faz em alguns Tribunais de Contas por meio da criação de  distinções, entraves e teorias discriminatórias, de modo que as Cortes de Contas não funcionem adequadamente, menosprezando-se, inconstitucionalmente, seu corpo técnico.

Uma das mais emblemáticas é o sofisma de que “Proposta de Decisão” possui natureza jurídica de parecer.

É de se perguntar exordialmente: um Juiz, ou a ele equiparado constitucionalmente,  emite parecer?

Suas decisões, oriundas de um processo intelectivo e técnico de conhecimento, não são vinculantes e podem ser por outrem não aceitas, a lhes subjugar o livre convencimento motivado?

Essas indagações, aparentemente estapafúrdias, à luz das decisões judiciais, já trazidas à lume, revelam algumas idiossincrasias mais de ordem pessoal do que da equilibrada exegese da organicidade dos Tribunais de Contas, tal qual o desenho institucional imposto pelo constituinte.

Isto porque a denominada “Proposta de Decisão” não se constitui em uma criação do poder constituinte que não a menciona no texto da atual Constituição da República, porém, acabou se tornando realidade por uma interpretação inadequada da função dos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) dos Tribunais de Contas.

Tal fato traz à lembrança a história de domínio popular[41] de um cidadão assim batizado com o prenome de Eisenhower, uma vez que seu genitor, Geraldo, era um ardoroso admirador do 34º Presidente dos Estados Unidos Dwight David "Ike" Eisenhower, herói da Segunda Guerra Mundial, que serviu ao exército norte-americano como Comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa, inclusive no famoso desembarque aliado na Normandia-França, no inesquecível dia “D”, em 06 de junho de 1944.

Entretanto, a homenagem de família a uma das figuras mais emblemáticas do Século XX, acabou por ser corrompida, em face de uma prosaica dificuldade presente naquela comunidade: “Como se escreve Eisenhower? E pior, como se pronuncia? Como é que aquele magnífico nome poderia vir a ser compreendido?"

Quando na tenra infância, aquele cidadão tinha até vergonha de pronunciar seu próprio nome e foi assim que, apresentando-se aos novos amigos e colegas, começou a balbucia-lo.  

Com enorme dificuldade de entender o que ele dizia, os recém-apresentados amigos e colegas foram tentando compreender seu nome, porém, adaptando aquele nome livremente às suas realidades.

O tempo foi passando e cada um a seu jeito tentava chamar o menino: “É o Zerrauer, de Geraldo”, diziam alguns. Outros abreviavam: “É o Zé, de Geraldo”. Até que, finalmente, naquele longínquo rincão do país, para facilitar, o então menino, agora com quase trinta anos, entrou na Justiça buscando alterar o seu nome para “Zé Geraldo”, uma vez que assim era conhecido e reconhecido em toda região e em seus negócios que iam de vento em popa no ramo dos “secos e molhados”, tão comum nas pequenas localidades.

Desse modo, assim procedem alguns “intérpretes” da nossa Constituição, tentando transformar, seja por preconceito, seja por odiosa discriminação, seja por dificuldades pessoais de interpretar o sistema constitucional de controle, numa instituição de “Zés”, quando o Constituinte a elas reservou o mister de atuarem como “Eisenhowers”.                                

4.1  Proposta de Decisão e o Princípio do Livre Convencimento Motivado

Antes de adentrarmos especificamente na análise crítica das hipóteses para a fixação da natureza jurídica da “Proposta de Decisão”, sobreleva notar, preambularmente, que historicamente, vivenciava-se o sistema da íntima convicção, segundo o qual o Estado-juiz decidia livremente as causas que lhe eram submetidas, o que fazia de acordo com sua apreciação casuística dos fatos e do Direito.

Também já foi superado o período em que esteve vigente o sistema das provas tarifadas, que eram valoradas aprioristicamente pelo próprio legislador e segundo o qual cada tipo de prova tinha um valor pré-determinado na formação do convencimento do juiz.

Contemporaneamente, o Brasil se encontra sob a égide do sistema do livre convencimento motivado, também conhecido como sistema da persuasão racional, insculpido no art. 93, IX, da Constituição da República, in verbis:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

 [...]

 IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (Grifos nossos).

Como se sabe, é norma vetusta de hermenêutica que na interpretação deve-se sempre preferir a inteligência que faz sentido à que não faz, como nos afirma o Alberto Marques dos Santos[42], Juiz de Direito no Paraná, in verbis:

Na interpretação de uma norma frequentemente o operador deve optar entre mais de um possível sentido para o texto. Dentre os entendimentos que se pode extrair de uma norma, deve ser descartado aquele que conduz ao absurdo. Por absurda, aqui, se entende a interpretação que:

a) leva a ineficácia ou inaplicabilidade da norma, tornando-a supérflua ou sem efeito (como será visto, no item nº 0, infra, a lei não tem palavras nem disposições inúteis);

b) conduz a uma iniqüidade: o preâmbulo constitucional diz que a justiça é um valor supremo da sociedade brasileira, e o art. 3º, I, da Constituição diz que é objetivo permanente da República (e de suas leis, por extensão) construir uma sociedade justa;

c) infringe a finalidade da norma ou do sistema;

d) conduz a um resultado irrealizável, impossível, ou contrário à lógica;

e) conduz a uma colisão com princípios constitucionais ou regentes do sub-sistema a que se refere a norma: os princípios são vetores de interpretação, e constituem super-normas que indicam os fins e a lógica específica de um determinado sistema ou sub-sistema;

f) conduz a uma antinomia com normas de hierarquia superior, ou com normas do mesmo texto legal, situações onde não pode haver antinomia [...]

g) conduz a uma fórmula incompreensível, de inviável aplicação prática.

A lei não contém frase ou palavra inútil, supérflua ou sem efeito.      

Um dos expedientes de que se pode valer o mau intérprete para alterar, na interpretação, o sentido da norma, é o de “fechar os olhos” para uma palavra ou um trecho do texto. Nas questões onde a redação da norma é deficiente, em especial, acode a tentação de “esquecer” a palavra ou expressão que cria uma dificuldade interpretativa (ou conduz a um resultado indesejado pelo intérprete). Por isso é que a experiência jurídica multicentenária consagrou a regra em exame. Todas as palavras contidas na lei são lei, e todas têm força obrigatória. Nenhum conteúdo da norma legal pode ser esquecido, ignorado ou tido como sem efeito, sem importância ou supérfluo. A lei não contém palavras inúteis. Só é adequada a interpretação que encontrar um significado útil e efetivo para cada expressão contida na norma.

Se é correto afirmar então que a lei não contém palavras inúteis, qualquer relator, munido dos poderes da judicatura, nos exatos termos do at. 73, § 4º, da CR/88,  ao terminar a instrução dos autos, deve lançar no processo as razões do seu convencimento, de forma coerente e de maneira fundamentada, em consonância com seu futuro efeito decisório. É como explica Dinamarco[43], in verbis:

A exigência da inteireza da motivação (Michele Taruffo) não chega ao ponto de mandar que o juiz se manifeste especificamente sobre todos os pontos, mais relevantes ou menos, ou mesmo sem relevância alguma ou quase sem relevância, que as partes hajam suscitado no processo. O essencial é motivar no tocante aos pontos relevantes e essenciais, de modo que a motivação lançada em sentença mostre que o juiz tomou determinada decisão porque assumiu determinados fundamentos com que esta guarda coerência. A regra de equilíbrio é esta: motiva-se no essencial e relevante, dispensando-se a motivação no periférico e circunstancial. (Grifos nossos).

   No mesmo sentido, ensina Nelson Jorge[44], in verbis:                       

O princípio do livre convencimento motivado obriga ao magistrado explicitar as razões da conclusão adotada, com adequada motivação da decisão proferida, porque se assim não for ela estará com nulidade, por isso a motivação representa os elementos de convicção valorados pelo juiz. E essa motivação deve ser de tal maneira explicitada que tenha coerência e conclusão lógica apontando o dispositivo decisório de cada pretensão. Isso não representa, no entanto, estar o magistrado obrigado a se referir especificamente sobre todas as questões postas, porque deverá ele tomar conhecimento tão-somente daquelas consideradas relevantes e especiais.” (Grifos nossos).

Assim, uma vez proferido juízo meritório, com o rótulo que se queira dar (proposta de deliberação, proposta de decisão ou proposta de voto),  nada justifica alterar seu conteúdo ou motivação, posto que estar-se-ia contrariando o princípio do livre convencimento motivado, na esteira do aresto ora colacionado do  Supremo Tribunal Federal, o qual transcrevemos ipsis litteris:

O artigo 93 da CF não resta violado porquanto o juiz não está obrigado a julgar a questão posta a seu exame conforme o pleiteado pelas partes, podendo fazê-lo conforme o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso. (iura novit cúria) (Supremo Tribunal Federal. AI 794759 AgR / SC - Santa Catarina  Ag.Reg. em Agravo de Instrumento. Relator(a): Min. Luiz Fux. Julgamento: 13/04/2011. Órgão Julgador: Primeira Turma. DJe-088. Divulg 11-05-2011. Public 12-05-2011) (Grifos nossos).

No mesmo sentido, encontra-se a jurisprudência dominante do  Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

Não-ocorrência de irregularidades no acórdão quando a matéria que serviu de base à oposição do recurso foi devidamente apreciada, com fundamentos claros e nítidos, enfrentando as questões suscitadas ao longo da instrução, tudo em perfeita consonância com os ditames da legislação e jurisprudência consolidada. O não-acatamento das teses deduzidas no recurso não implica cerceamento de defesa. Ao julgador cumpre apreciar o tema de acordo com o que reputar atinente à lide. Não está obrigado a julgar a questão de acordo com o pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento (art. 131 do CPC), utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso. (Superior Tribunal de Justiça. EDCL no AgRg no REsp 977922 / MG Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Especial 2007/0204342-0 Relator(a) Ministro José Delgado (1105) Órgão Julgador T1 - Primeira Turma. Data do Julgamento 06/03/2008 Data da Publicação / Fonte DJe 07/04/2008) (Grifos nossos).

Resta ressaltar que o próprio Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no exercício de sua função fiscalizatória, também defende o livre convencimento dos magistrados, juízo esse que, em analogia, aplica-se a todo aquele que exerça, nos termos da Constituição da República, as atribuições da judicatura, em especial aos  Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos)  dos Tribunais de Contas, nos termos do art. 73, § 4º, da CR/88, in verbis:

Procedimento de Controle Administrativo. Ato Normativo nº 018/2009 do TJ/RJ.  Improvimento do pedido. 1) Frente à faculdade conferida pelo ato impugnado, de que se  extinga o processo sem apreciação do mérito, com fundamento na ausência de interesse processual, encontra-se o Princípio do Livre Convencimento, de acordo com o qual o Juiz está livre, no exercício da função jurisdicional, para analisar os fatos e as provas e decidir de acordo com sua convicção, devidamente motivada. 2) Não pode admitir-se a interferência deste CNJ perante os Tribunais, em ordem a os proibir de editar normas que visem ao cumprimento das metas traçadas por este Órgão no sentido de facultarem aos Magistrados a extinção de processos arquivados provisoriamente, em razão da ausência de realização de ato ou diligência pelas partes. 3) Pedido que se julga improcedente. (CNJ – PCA 200910000057196 – Rel. Cons. Leomar Barros Amorim de Sousa – 114ª Sessão – j. 05/10/2010 – DJ - e nº 185/2010 em 07/10/2010 p.17). (Grifos nossos).

Em outro paradigmático excerto, a posição do CNJ transparece o entendimento uníssono segundo o qual é inerente à judicatura a independência, in verbis:

Procedimento de Controle Administrativo. Alegações por parte de Juiz Titular de que, durante seu afastamento em razão de férias, a juíza substituta negou-se a cumprir seus deveres funcionais de instrução e julgamento de processos. Requerente sustenta que foi notificado pelo Corregedor-Geral de Justiça para que se abstivesse de constar nos autos tal comportamento. – “A independência dos Juízes na formação de suas convicções é direito essencial, garantia do cidadão e do próprio Estado Democrático de Direito, como defendido pelo Conselho Nacional de Justiça desde o seu nascimento. A atuação funcional do Magistrado – independente nas suas convicções – deve estar voltada para a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo fundamental da República e para o fortalecimento cada vez maior do Judiciário. [...]” (CNJ – PCA 227 – Rel. Cons. Ruth Carvalho – 28ª Sessão – j. 24.10.2006 – DJU 20.11.2006). (Grifos nossos).

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Assim, como visto, ao Relator, seja ele Ministro, Conselheiro ou Auditor dos Tribunais de Contas, incumbe conduzir o processo e presidir a instrução probatória, além de conduzir a votação no colegiado do qual participe, inclusive apresentando o primeiro voto, caso seja o Relator. Isso é corolário dos poderes investidos pelo Estado aos  membros das Cortes de Contas para enfrentar, em seu relatório e fundamentação, o que julgue necessário para o deslinde da causa.

Compete ao Relator, portanto, indicar, na plenitude da competência conferida pelo Estado Democrático de Direito e pela própria Constituição, entre outros, no art. 93, IX, quais os fatos e questões jurídicas que serão examinadas no seu relatório e fundamentação, antes que ele, de acordo com sua consciência e com as normas jurídicas, possa enfrentar o mérito do processo.

O Relator deverá determinar as questões principais que precisará enfrentar para o deslinde da causa que lhe é submetida, incluindo todas aquelas que sua consciência, em consonância com o Direito, determine como necessárias, incluindo condições da ação, pressupostos processuais e prejudiciais de mérito, até que ele chegue ao mérito do processo.

Tal técnica se aplica tanto ao juiz singular ou ao Desembargador do Judiciário, que deve expor as razões de fato e de direito de sua decisão, quanto ao Relator (Ministro, Conselheiro ou Auditor) no Tribunal de Contas, pois estes devem trazer para o colegiado, de maneira fundamentada, a apreciação das questões que considerem preliminares ou prejudiciais ao julgamento.

Em vista disso o Relator pode, inclusive, trazer de ofício argumentos jurídicos sobre as condições da ação, pressupostos processuais e até prejudiciais de mérito, rechaçando-as, ele mesmo, num desdobramento lógico com vistas a formar e robustecer o seu convencimento, bem como o entendimento dos demais membros do colegiado de que faz parte. Isso é inerente à formação da persuasão racional, consoante o art. 93, IX, CR/88 c/c o art. 131 do CPC.

Por meio de seu livre convencimento, somado à fundamentação em consonância com o Direito, atinge-se o livre convencimento motivado.

Por tudo isso, demonstra-se que o princípio da persuasão racional também se aplica aos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) e o motivo da existência de quaisquer garantias asseguradas a tais membros das Cortes de Contas é justamente o escorreito exercício de suas funções previstas constitucionalmente, em atenção à própria força normativa da Constituição.

4.2. Proposta de Decisão: Etimologia e Hipóteses

Como se sabe, qualquer perquirição da natureza de um objeto de estudo deve começar pela sua própria etimologia.

Sobre o vocábulo natureza ensinam Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar[45] que ele tem, dentre outras acepções, a de “caráter, tipo ou espécie”, bem como “o que compõe a substância do ser, essência”.

Natureza. Na terminologia jurídica, assinala, notadamente, a essência, a substância ou a compleição das coisas. Assim, a natureza se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com a própria coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de ser, seja do ato, do contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em evidência sua própria essência ou substância, que dela não se separa, sem que a modificação ou a mostre diferente ou sem os atributos que são do seu caráter. É, portanto, a matéria de que se compõe a própria coisa, ou que lhe é inerente ou congênere. (Grifos nossos).

    No que tange à natureza jurídica, também leciona Othon Sidou[46]: “Natureza jurídica. Filosofia do Direito. Diz-se da pesquisa em torno de um instituto jurídico, no sentido de enquadrá-lo pela comparação, numa grande categoria jurídica”.

Portanto, ao se indagar sobre a natureza jurídica de um instituto, questiona-se o significado daquele objeto especificamente para a ciência jurídica. Sem a compreensão da natureza jurídica de algo é impossível sua aplicação pelo Direito com cientificidade e precisão. Portanto, sem saber o que é natureza jurídica não se pode estar em sintonia com a finalidade do próprio Direito enquanto ciência social aplicada.

Atualmente, nos Tribunais de Contas brasileiros, existe a figura jurídica da proposta de deliberação ou decisão, conforme nomenclatura do Tribunal de Contas da União, equivalente às propostas de voto em diversos Estados da Federação, sendo incompreendido por alguns o real alcance dessas manifestações meritórias, dando azo para diversas linhas interpretativas, algumas com supedâneo constitucional, outras nem tanto, a demandar o enfrentamento da seguinte questão: qual seria a natureza jurídica da “proposta de decisão”?

Insta salientar que para que se compreenda a proposta de deliberação (ou proposta de voto) faz-se mister perpassar pela análise das atribuições constitucionais dos Auditores (Ministros  e Conselheiros Substitutos)  dos Tribunais de Contas, bem como perquirir acerca da natureza das elevadas funções que  exercem, conforme visto em tópico precedente.

André Luís de Carvalho[47], ao tratar do julgamento pelos Tribunais de Contas da União, contextualiza e tangencia o assunto, embora sem tratar diretamente das propostas de voto ou propostas de decisão:

[...] c) o julgamento, por sua vez, compreende as etapas de: discussão; votação e proclamação do resultado. Apresentado o processo pelo Relator, o presidente do Colegiado abre a fase de discussão, permitindo que ministros, auditores e o MPTCU promovam debates, se necessário, sobre a matéria contida no processo apresentado. Em seguida, estando os julgadores devidamente esclarecidos, o presidente do Colegiado abre a fase de votação, colhendo os votos dos auditores convocados para substituir ministro e, logo depois, dos ministros presentes à sessão. E, assim, após apurada a votação, o presidente deve proclamar o resultado, declarando a forma como a proposta sagrou-se vencedora (por unanimidade, por maioria, por voto de desempate etc); [...] (Grifos nossos)

Veja-se pois que a análise meritória no Tribunal de Contas da União apresentada indistintamente por Ministro ou Auditor, recebe a designação de proposta, apenas sendo denominada de “decisão”, após a apuração de votos, posto que, como órgão colegiado que é, todas as suas decisões plenárias necessitam ser coletivamente formadas.

Após a realização de expressiva revisão bibliográfica[48],  além de consulta aos demais referidos nesse texto, em busca da natureza jurídica da proposta de decisão, constatamos uma relevante lacuna que, de resto, deve ser enfrentada, sob pena de menoscabar as importantes “atribuições da judicatura” já citadas.

De fato, não se encontrou, na referida pesquisa, referência expressa à  natureza jurídica perquirida, a despeito de serem  referências para o estudo do Controle Externo brasileiro, especialmente no que tange à temática buscada.

Isso ilustra, portanto, a necessidade de  buscar  nas palavras voto[49] e proposta[50] alguma linha indutora de inferência,  conforme o magistério de Plácido e Silva, in verbis:

Proposta. Forma feminina de proposto, do latim propositus (exposto aos olhos, posto adiante), significa a ação de propor ou de oferecer a outrem alguma coisa, indicando, também, o conteúdo, ou objeto do que se propõe.

Voto. Do latim votum, de votare (prometer, fazer promessa, eleger ou escolher pelo voto), na linguagem jurídica, em amplo conceito, é a manifestação da vontade, ou opinião manifestada, pelo membro de uma corporação ou de uma assembleia, acerca de certos fatos e mediante sistema ou forma pré-estabelecida. Pelo voto, assim, dá a pessoa o seu parecer, manifesta sua opinião, delibera acerca de certo fato, sujeito a seu veredicto, ou sua decisão. [...] O voto, porém, é igualmente tido como a opinião manifestada, ou a ser manifestada, a respeito de outros fatos, indicando-se uma decisão, um parecer, ou uma deliberação. Neste caso, o voto é deliberativo, ou decisivo, e consultivo. É deliberativo se vem ou é emitido para servir de decisão de um negócio, ou de aprovação, ou deliberação acerca de um fato. É consultivo quando, não tendo feição de decisão ou deliberação, vem em caráter de consulta, de parecer, ou de orientação a decisão que, posteriormente, se deva tomar. (Grifos nossos)

Verificando-se a prática que atualmente tem sido levada a efeito, observa-se que a proposta de decisão  não é considerada  como voto nos julgamentos, possuindo, na praxis das Cortes de Contas, um caráter meramente opinativo. Esse é, ontologicamente, ou seja, no plano fático, o tratamento que vem sendo dispensado, embora outro seja, certamente, o fim para o qual foi criado o instituto.

Dependendo-se da fixação da natureza jurídica a ser realizada, haverá inúmeros efeitos, inclusive a questão do impedimento (ou não) para a atuação do Auditor nos autos. Tal tema, não se pode olvidar, é de extrema relevância para o correto exercício da atividade-fim dos Tribunais de Contas, já que a inobservância das causas de impedimento enseja nulidade do ato, nos termos do arts. 134 a 138 do Código de Processo Civil.

Assim, haveria que se indagar qual seria a natureza jurídica da proposta de decisão, cabendo-nos perscrutar criticamente as que tem se levantado com mais frequência, quais sejam: 1) natureza jurídica de parecer, ou seja, opinativa, não vinculante mas obrigatória;2) natureza jurídica de decisão interlocutória, definitiva ou terminativa[51]; ou 3) natureza jurídica semelhante ao voto.

4.2.1. Hipótese de Natureza Jurídica de Parecer ou Opinativa

Inicialmente, insta salientar que neste item não se cogita acerca da emissão do parecer prévio pelos Tribunais de Contas com espeque no art. 71, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil. Esse item trata, isso sim, da natureza jurídica da atuação dos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos)  dos Tribunais de Contas do Brasil no exercício ínsito ao que prescreve o inciso II do art. 71 da CR/88: “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis [...]”.

Com efeito, especificamente quanto ao exercício da atribuição prevista no art. 71, inciso I, da CR/88, não resta nenhuma dúvida da natureza jurídica da manifestação final dos Tribunais de Contas, através de seus órgãos colegiados, qual seja, natureza jurídica de Parecer Prévio, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal na Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade n. 1964[52], in verbis:

Tribunal de Contas dos Estados - competência - observância compulsória do modelo federal - inconstitucionalidade de subtração ao Tribunal de Contas da competência do julgamento das contas das Mesas das Câmaras Municipais - compreendidas na previsão do art. 71, II, da Constituição Federal, para submetê-las ao regime do art. 71, c/c art. 49, IX, que é exclusivo da prestação de contas do Chefe do Poder Executivo local (CF, art. 31, § 2º - precedente (ADIn 849, 11.2.99, Pertence) - suspensão cautelar parcial dos arts. 29, § 2º e 71, I e II, da Constituição do Estado do Espírito Santo. (Grifos nossos).

Assim, feita a distinção entre a manifestação sob a forma de parecer prévio, nos termos do art. 71, inciso I, da CR/88,  e o que se procura aclarar, passa-se a verificar o conceito de parecer para alguns doutrinadores renomados no Direito brasileiro, em busca de se perquirir acerca da natureza jurídica da forma pela qual, em regra,  se manifestam, no exercício das demais atribuições da judicatura,  meritoriamente, os  Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos).

De maneira sintética, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello[53] que parecer “é a manifestação opinativa de um órgão consultivo expendendo sua apreciação técnica sobre o que lhe é submetido.”

Já para Maria Sylvia Zanella Di Pietro[54], ao tratar da função do consultor e parecerista jurídico, “o parecer contém a motivação do ato a ser praticado pela autoridade que o solicitou” e, justamente em razão disso, “se acolhido, passa a fazer parte integrante da decisão”. Porém, para Di Pietro[55], a responsabilização dos referidos profissionais “não pode ocorrer a não ser nos casos em que haja erro grosseiro, culpa grave, má-fé”, não se justificando se o parecer estiver devidamente fundamentado, já que “a simples diferença de opinião – muito comum na área jurídica – não pode justificar a responsabilização do consultor”.

A seu turno, Hely Lopes Meirelles[56] examina profundamente o aspecto técnico da questão, o qual transcrevemos ipsis litteris:

Pareceres administrativos são manifestações de órgãos técnicos sobre assuntos submetidos à sua consideração. O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já então, o que subsiste como ato administrativo, não é o parecer, mas sim o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinária, negocial, ou punitiva. [...]

Parecer normativo: é aquele que, ao ser aprovado pela autoridade competente, é convertido em norma de procedimento interno, tornando-se impositivo e vinculante para todos os órgãos hierarquizados à autoridade que o aprovou. Tal parecer, para o caso que o propiciou, é ato individual e concreto; para os casos futuros, é ato geral e normativo.

Parecer técnico: é o que provém de órgão ou agente especializado na matéria, não podendo ser contrariado por leigo ou, mesmo, superior hierárquico. Nessa modalidade de parecer ou julgamento não prevalece a hierarquia administrativa, pois não há subordinação no campo da técnica.[57] (Grifos nossos)

A seu turno, ensina José dos Santos Carvalho Filho[58] que “os pareceres consubstanciam opiniões, pontos de vista de alguns agentes administrativos sobre matéria submetida à sua apreciação”, assim refletindo, in verbis:[59]:

Em alguns casos, a Administração não está obrigada a formalizá-los para a prática de determinado ato; diz-se, então, que o parecer é facultativo. Quando é emitido “por solicitação de órgão ativo ou de controle, em virtude de preceito normativo que prescreva a sua solicitação, como preliminar à emanação do ato que lhe é próprio”, dir-se-á obrigatório. Nesta hipótese, o parecer integra o processo de formação do ato, de modo que sua ausência ofende o elemento formal, inquinando-o, assim, de vício de legalidade.

Refletindo um juízo de valor, uma opinião pessoal do parecerista, o parecer não vincula a autoridade que tem competência decisória, ou seja, aquela a quem cabe praticar o ato administrativo final. Trata-se de atos diversos – o parecer e o ato que o aprova ou rejeita. Como tais atos têm conteúdos antagônicos, o agente que opina nunca poderá ser o que decide. (Grifos nossos).

Tratando-se da natureza jurídica opinativa, embora haja certa proximidade com o que se observa na prática, ela é absolutamente incompatível com as demais atribuições da judicatura nos termos do art. 74, § 3º, da Constituição da República. É como afirma Leonardo dos Santos Macieira[60], ao citar decisão do Tribunal de Justiça do Ceará, in verbis:

Reconhecendo que as atribuições de judicatura do Auditor-Magistrado não se coadunam com a emissão de parecer, visto que essa atividade é de caráter meramente opinativo, o ilustre Desembargador concedeu medida liminar suspendendo a eficácia da resolução daquele Tribunal por reconhecer a manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade:

"Não posso, por isso, entender, data vênia, o motivo pelo qual o Tribunal de Contas dos Municípios, na contramão de comezinhos princípios, aqui e ali, de vez em quando, resolve se atribuir função típica de órgão legislativo, disciplinando, algumas vezes, por via simples resolução, matéria reservada ao domínio estritamente legislativo, usurpando dessa forma, a competência que a constituição adjudica, privativamente, ao Poder Legislativo.

O parecer de auditoria é emitido pelo profissional da iniciativa privada da área contábil, denominado de auditor independente e regido por norma infralegal, no caso, a Norma Brasileira de Contabilidade T11. [...] (Grifamos).

Assim, não se pode confundir o exercício da função de emissão de parecer prévio prevista no próprio art. 71, inciso I, da Constituição da República de 1988, na qual não somente os Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) mas também os Ministros e Conselheiros emitem uma manifestação colegiada que, ao seu final, tem natureza jurídica de parecer, com aquelas  demais atribuições dos Tribunais de Contas, em especial a do art. 71, inciso II, nas quais a atuação dos Auditores não se coaduna com a atividade de parecerista pois, no exercício das demais atribuições da judicatura,  realizam funções de juízes,  nos termos do art. 73, § 4º, da Constituição da República de 05/10/1988.

Dessa maneira, conclui-se, a partir dos caracteres e distintivos trazidos pela doutrina que as propostas de decisão relatadas pelos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos), manifestações meritórias hauridas do livre convencimento motivado,  não podem ser consideradas opinativas pois são atos integrantes de um julgamento, frutos de um processo intelectivo de conhecimento calcado nas atribuições da judicatura (art. 73, § 4º, da CR/88) consistentes  naquelas previstas, entre outras, nos artigos 125 a 133 do Código de Processo Civil brasileiro, aplicável, mutatis mutandis, aos Tribunais de Contas.

4.2.2. Hipótese de Natureza Jurídica de Decisão

Sob a ótica do Direito Processual, são classicamente trabalhadas as manifestações emanadas de membros do Poder Judiciário da forma como, magistralmente, nos apresenta  Humberto Theodoro Júnior[61] in verbis:

‘Decisão, em sentido lato, é todo e qualquer pronunciamento do juiz, resolvendo uma controvérsia, com o que abrange, em significado, as próprias sentenças.’[62]

A decisão interlocutória, porém, tem um conteúdo específico, diante do conceito que o Código lhe emprestou de maneira expressa. Corresponde, assim, ao “ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente”.

[...] ‘Despachos são as ordens judiciais dispondo sobre o andamento do processo’, também denominadas ‘despachos ordinários ou de expediente’.[63] Com eles não se decide incidente algum: tão-somente se impulsiona o processo. [...]

O titular do interesse em conflito (sujeito da lide) tem o direito subjetivo (direito de ação) à prestação jurisdicional, a que corresponde um dever do Estado-juiz (a declaração da vontade concreta da lei, para pôr fim à lide).

É através da sentença que o Estado satisfaz esse direito e cumpre o dever contraído em razão do monopólio oficial da justiça.

A sentença, portanto, “é emitida como prestação do Estado, em virtude da obrigação assumida na relação jurídica processual (processo), quando a parte ou as partes vierem a juízo, isto é, exercerem a pretensão à tutela jurídica”.[64] (Grifos nossos)

Não fosse isso bastante, em estrita consonância com as lições de Humberto Theodoro Júnior estão as lições de Ovídio A. Baptista da Silva[65], consagrado processualista brasileiro, in verbis:

Sentença é o ato jurisdicional por excelência e consiste no provimento por meio do qual o juiz põe termo ao processo decidindo ou não o mérito da causa. Tendo em vista esta circunstância, subdividem-se as sentenças em terminativas – quando extinguem a relação processual sem decidir a respeito do mérito da causa – e definitivas – quando encerram a relação processual decidindo o mérito da causa.

Finalmente, Ovídio A. Baptista da Silva[66] traz o que seria, no seu entender, a diferença entre decisão interlocutória e despacho, bem como o seu conceito de sentença, in verbis:

[...] se houver controvérsia entre as partes a respeito da legitimidade da prática de tal ato processual, o provimento já não será um simples despacho, mas uma verdadeira decisão interlocutória, e, como tal, recorrível.

Não se deve esquecer que no conceito de sentença, que é o provimento jurisdicional emanado do juiz de primeiro grau de jurisdição, incluem-se também os acórdãos, que são atos similares originados das decisões colegiadas tomadas pelos tribunais superiores. (Grifos nossos)

Desse modo, revela-se induvidoso, que as decisões tomadas ao longo da instrução processual pelos Ministros, Conselheiros ou Auditores, nos processos que lhes são distribuídos, possuem naturezas jurídicas, conforme o caso, de decisões interlocutórias e despachos.

Com efeito, as atividades desempenhadas pelos Ministros, Conselheiros e Auditores rotineiramente (proferir despachos, proferir decisões interlocutórias e instruir o processo e o relatar para julgamento) são atividades da judicatura de contas, sob pena de afronta ao ordenamento jurídico vigente com fulcro no art. 73, §§ 3º e 4º da Constituição de 1988.

Assim, partindo-se das lições acima trazidas, verifica-se também que as opiniões meritórias dos Ministros, Conselheiros e Auditores em sessões de julgamento assemelham-se às sentenças de 1º grau de jurisdição e aos votos que compõe os acórdãos em 2º grau, conforme previsto nos arts. 267 e 269 do Código de Processo Civil, em que se cuida das decisões com e sem resolução de mérito.  Porém, não obstante o conteúdo semelhante a sentenças, elas não são proferidas no colegiado de forma isolada pelos Ministros, Conselheiros e Auditores dos Tribunais de Contas, mas sim de forma coletiva, nos órgãos colegiados instituídos para tal, o que remete aos votos do Poder Judiciário em suas sessões de julgamento.

Nada obsta portanto, coerentemente com a natureza jurídica de decisão, que a manifestação final dos Ministros, Conselheiros e Auditores, ao menos nos órgão fracionários, deva ser computada como voto nas sessões de julgamento dos Tribunais de Contas.

Assim, as decisões tomadas pelos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) ao longo da instrução processual possuem naturezas jurídicas, conforme o caso, de decisões interlocutórias ou despachos, porém sua manifestação final não tem recebido o delineamento de voto na praxis dos Tribunais de Contas, como seria de se esperar de uma correta compreensão do tema. É o que se passa e estudar a seguir.

4.2.3  Hipótese de Natureza Jurídica de Voto

Como visto alhures, é possível constatar que o Juiz que instrui o processo tem direito a exprimir, fundamentada e livremente, o seu juízo meritório acerca da matéria controversa de que tomou conhecimento, fazendo-o de modo racional e sopesando as razões fáticas e de Direito.

Verifica-se que os Tribunais de Contas são compostos por Ministros, Conselheiros e  Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos) , nos termos do art. 73, caput, e parágrafo 4º, da Constituição da República de 1988. Tal intelecção decorre de um raciocínio simples: estaria, conforme o modelo constitucional preconizado no artigo 75, um Tribunal de Contas que se organizasse, se compusesse e exercesse sua fiscalização sem a presença de Auditores? A resposta é óbvia: não!

As decisões judiciais já colacionadas  esclarecem que os Auditores, como não poderia deixar de ser, são membros, detentores de todas as garantias, impedimentos (previstos expressamente no art. 95 da CR/88 e densificados nos artigos 25 a 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional) e atribuições da judicatura, inclusive de votar nos processos em que presidiram a instrução, em conformidade com os poderes, dos deveres e a responsabilidade do Juiz, estabelecidos quando da direção dos processos que lhes são incumbidos, insculpidos, notadamente, nos artigos  125 a 138 do Código de Processo Civil Brasileiro.

Em nenhum dispositivo constitucional atinente aos Tribunais de Contas está determinado que “apenas pelos votos de seus Ministros (ou Conselheiros) deliberarão os Tribunais de Contas”. Mesmo o artigo 73, em seu caput, e o parágrafo único do artigo 75, ao estabelecerem o número de integrantes dos Tribunais de Contas, assim não estipularam de modo absoluto. Com efeito, isso seria violador da própria estrutura de funcionamento das Cortes de Contas, cujos plenários são compostos indistintamente por Ministros, Conselheiros e Auditores. Nesse sentido, é esclarecedora a lição de Cláudio Canha[67], in verbis:

Conforme já visto anteriormente no item nº 06, apenas em 1977 (com a adoção de um novo Regimento Interno - Resolução Administrativa nº 14, de 12 de dezembro de 1977) ficou estabelecido um aparente avanço no papel dos auditores, os quais, além de relatar os processos, passavam a apresentar “proposta de decisão” (art. 73, inciso IV), que poderia ser acatada como solução para a questão em apreciação.

[...]

Entretanto, a partir da promulgação da Constituição Federal, em 05/10/1988, o que poderia ser considerado avançado passou a ser retrógrado, já que os Auditores foram inseridos no seio da magistratura, não sendo possível, à luz do bom direito, usurpar-lhes a prerrogativa de votar nos processos em que foram relatores.

Esse preceito é rigorosamente observado nas cortes judiciárias brasileiras. O magistrado relator sempre vota, sem que haja previsão de quaisquer exceções.

Na verdade, o instituto da “proposta de decisão” é uma espécie de voto consultivo, instituto que não existe no ordenamento jurídico brasileiro e já não existia à época em que foi adotado no TCU. Vale lembrar, entretanto, que o art. 7º do Decreto nº 966-A, de 07/11/1890, estabelecia que o regulamento do TCU determinaria quais funcionários do corpo administrativo teriam voto consultivo nas deliberações do Tribunal.

Assim, é possível inferir que a “proposta de decisão” era compatível quando os Auditores eram servidores públicos, mas perde a compatibilidade quando se tornam magistrados.

Nas Cortes de Contas europeias, fontes de inspiração para a criação do Tribunal de Contas federal brasileiro, as garantias da magistratura são sempre atribuídas a seus membros, sem exceções. No que tange à Corte dei Conti, por exemplo, assim consta de sua Lei Orgânica:

“5. (art. 9, legge 14 agosto 1862, n. 800; art. 1, legge 3 aprile 1933, n. 255.) - I primi referendari e i referendari hanno voto deliberativo oltre che nel caso in cui siano chiamati dal presidente ad integrare il collegio giusta il terzo comma del precedente articolo, anche negli affari dei quali sono relatori.

Possono essere chiamati dal presidente a supplire i consiglieri assenti od impediti, compreso quello avente l'incarico di segretario generale, ed anche in questo caso hanno voto deliberativo.”[68] (Grifamos).

Cláudio Canha[69] cita ainda as razões de ordem lógico-processual levantadas por lições lapidares dos mais autorizados processualistas brasileiros, entre eles Pontes de Miranda,  in verbis[70]:É de grande relevância que o relator seja claro e preciso, porque a má exposição pode levar a erros no julgamento. Ainda não se trata do seu voto, porém os fundamentos que apresentaram as partes têm de ser mencionados com exatidão e igual tratamento.  (Grifamos).

José Carlos Barbosa Moreira[71], também citado por Cláudio Canha[72], ressalta ser consectário lógico da marcha processual que antes de proferir o seu voto deva o relator enfrentar os pontos obscuros, mediante o relatório e fundamentação expostos,  in verbis:

353. Exposição do relator – O relator terá, naturalmente, feito nos autos, consoante o disposto no art. 549, parágrafo único, a "exposição dos pontos controvertidos sobre que versar o recurso" – ou a causa, entende-se. Semelhante exposição deve ser reproduzida oralmente na sessão de julgamento, a fim de que se inteirem do que se vai discutir e decidir todos os componentes do órgão colegiado, inclusive aqueles que porventura não hajam lido a cópia do relatório escrito (art. 553), ou não tenham retido na memória, com a desejável nitidez, os vários aspectos da matéria. Aliás, o relator não fica adstrito, na exposição oral, à pura repetição do que consta do relatório escrito: pode acrescentar pormenores esclarecedores e deve, se for o caso, proceder a retificações ou suprir omissões relevantes.

A clareza e a precisão da exposição do relator são condições essenciais para que se possa julgar bem. Avultam aqui a delicadeza e a importância da função cometida ao relator. Uma exposição incompleta ou pouco fiel pode levar o colegiado a perpetrar graves injustiças. É necessário que ela contenha todos os dados relevantes, dispostos em ordem que lhes facilite a apreensão e a memorização, sem contudo perder-se em minúcias fatigantes que desviem a atenção do essencial. (Grifamos).

Ao final, conclui Cláudio Canha[73], de modo esclarecedor na crítica que faz a práxis de algumas Cortes de Contas Brasileiras, in verbis:

[...] Portanto, à luz dos ensinamentos desses eminentes doutrinadores, é inconcebível que o relator, pela relevância desse papel, não tenha direto a voto deliberativo nos processos a seu encargo. E como não há previsão de revisor nos Tribunais de Contas, o papel do relator se torna ainda mais relevante, ao lado do princípio da verdade material e da peculiaridade da instrução processual, que é mais ampla que no Poder Judiciário.

O caso paranaense do “novo relator” (quando a proposta de decisão de auditor não é acatada pelo Colegiado) e o caso sergipano de atribuir critério subjetivo a conselheiro em relação à proposta de decisão de auditor, [...] são demonstrações de desvalorizações dos auditores, porquanto tais disposições diminuem a relevância de seu papel nas decisões que submetem aos órgãos colegiados.

Assim sendo, a proposta de decisão ontologicamente possui o mesmo conteúdo jurídico e portanto a mesma natureza jurídica do voto, exceto quanto ao efeito do seu cômputo para a declaração do resultado do julgamento da sessão colegiada,  na sui generis práxis adotada pelos Tribunais de Contas no Brasil de desprezar todo o livre convencimento motivado expressado tecnicamente por um de seus membros,  a quem o constituinte, expressamente,  frise-se, reconheceu o “exercício das atribuições da judicatura”.

Tal prática, sem supedâneo constitucional, violadora, em ultima ratio, dos princípios da eficiência e da celeridade processual, desconsidera por fim que a proposta de decisão possui os mesmos requisitos de validade e existência do voto, quais sejam, o relatório, a fundamentação e a conclusão, nos termos dos arts. 163, 165 e 458 do Código de Processo Civil.

Portanto, salvo quanto à proposta de decisão, as atuais atribuições conferidas aos Auditores (Ministros e Conselheiros Substitutos), notadamente no Tribunal de Contas da União e na grande maioria dos Tribunais de Contas Estaduais e de Municípios, guardam observância ao exercício das demais atribuições da judicatura, o que constitui um verdadeiro paradoxo.

A Constituição da República de 1988 não expressou, nem quis expressar que aos Auditores, enquanto magistrados das Cortes de Contas, estaria relegada outra função, qual seja, a de meros instrutores sem função de judicatura. O que a Constituição dispôs foi, expressamente, o contrário.

Dessa maneira, como corolário do princípio da força normativa da Constituição,  não se pode retirar de membros da Magistratura de Contas o exercício das funções de judicatura, transformando os  Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas em meros juízes instrutivos, pois isso seria diminuir a sua missão e sua efetividade constitucional.  Não foi isso que o constituinte quis e não é isso que a sociedade deseja!

Assim, urge repensar o atual modelo de participação nas sessões de julgamento dos Tribunais de Contas pelos membros da Magistratura de Contas,  conferindo-se a necessária eficiência na implementação do modelo insculpido pelo Poder Constituinte da República, até para que isso desague  numa mais efetiva atuação dos Tribunais de Contas, que precisa devolver à sociedade, em atendimento aos princípios mais caros atinentes à administração pública (insculpidos no art. 37, caput, da CR/88), a satisfação de seus interesses.

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Sobre os autores
Licurgo Mourão

Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas de Minas Gerais. Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP), Mestre em Direito Econômico (UFPB) com extensões universitárias na The George Washington University (USA), na Fundação Dom Cabral (MG) e na Universidade del Museo Social Argentino (ARG); pós-graduado em Direito Administrativo, Contabilidade Pública e Controladoria Governamental (UFPE). Coautor dos trabalhos técnico-científicos ganhadores do Prêmio Internacional conferido em 2009 e 2013 pela OLACEFS.

DIOGO RIBEIRO FERREIRA

Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas de Minas Gerais. Doutorando e Mestre em Direito Processual (UFMG). Especialista em Direito Público Constitucional e em Direito Privado (UCAM). Graduado em Direito (UFMG). Autor de livros e de artigos em várias disciplinas jurídicas. Coautor do trabalho técnico-científico ganhador do Prêmio Internacional conferido em 2013 pela OLACEFS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURÃO, Licurgo ; FERREIRA, , DIOGO RIBEIRO FERREIRA. A atuação constitucional dos tribunais de contas e de seus magistrados (composição, atuação e deliberações): de Eisenhower a Zé Geraldo:: A natureza jurídica da proposta de decisão e do cargo de auditor (ministro ou conselheiro substituto). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4013, 27 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29760. Acesso em: 26 abr. 2024.

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